Chile: a batalha para que a água seja um Comum

Liderança da luta pela desmercantilização aponta: Pinochet colocou recursos hídricos no balcão dos especuladores. À população, a seca. Aos ruralistas e mineradoras, a abundância. Mas Constituinte propõe: é hora de reapropriar os mananciais

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Víctor Hugo Bahamonde Brintrup em entrevista a Marcos Helano Montenegro

Nenhum país levou tão ao extremo a mercantilização das águas como o Chile. A atual Constituição – herança da ditadura militar de Pinochet (1973-1990) e que, desde o ano passado, começa a ser revista pela Convenção Constituinte – faz uma única menção aos recursos hídricos do país, mas apenas para garantir a primazia da propriedade privada sobre o direito humano à água. Já o Código das Águas, promulgado em 1981, desacoplou da terra os direitos de uso da água e privatizou o saneamento, inaugurando um mercado especulativo sobre as águas chilenas. Desse modo, grande parte das vazões dos rios foram atribuídas a grandes companhias hidrelétricas e transnacionais, que desde então podem usá-las ou vendê-las. Uma mirada truculenta sobre o Comum bem ao gosto da Escola de Chicago, que orientou toda a política econômica pinochetista e impactou diversas outras áreas, como a Saúde, a Educação e a Previdência Social.

Hoje, 90% dos direitos de aproveitamento da água são controlados por empresas mineradoras e agroexportadoras, enquanto praticamente 100% dos direitos de aproveitamento da água de uso não consuntivo (não consumível, como a pesca ou a navegação) estão nas mãos de empresas transnacionais como a espanhola Endesa. O resultado: dezenas de milhares de famílias não têm acesso à água potável; as tarifas são abusivas; algumas regiões do país enfrentam secas severas devido ao uso predatório dos recursos hídricos pela mineração (de lítio e cobre) e pelo agronegócio, especialmente com a produção do abacate (para se ter uma ideia, são necessários 2 mil litros de água para cultivar apenas 1 kg de abacate). Em Petorca, por exemplo, polo produtor da fruta, o governo declarou uma “emergência hídrica”, permitindo a cada residente o uso de apenas 50 litros por dia.

Mas a situação pode mudar em breve. Em 12/1, após 11 anos de tramitação, o Senado aprovou a reforma do Código de Águas de Pinochet – instituindo um novo regime jurídico para as águas chilenas, que agora aguarda a promulgação do novo presidente da República, Gabriel Boric. Porém, ela é insuficiente. “Já foram privatizadas 90% das águas; ela [a reforma] busca mudar o regime para concessões de água com caducidade para os 10% da água que resta para ser entregue, sem poderes expropriatórios e sem tentar redistribuir as águas mal alocadas”, aponta o professor de história chileno Víctor Bahamonde Brintrup, em entrevista a Outras Palavras. Ele é o dirigente nacional do Movimento de Defesa para o Acesso à Água, à Terra e à Proteção Ambiental, o Modatima, entidade que desde 2009 atua na luta pela desmercantilização dos recursos hídricos no país. Presente na onda de protestos que tomou o país desde 2006, inclusive no “estallido social” de 2019, o movimento conseguiu o notável feito de eleger oito deputados constituintes e o governador de Valparaíso, uma das regiões com mais pujança econômica do Chile.

Agora, o país se prepara para um passo maior. Em 3/2, a Comissão de Meio Ambiente e Modelo Econômico (uma das sete que compõem a Convenção Constituinte do Chile) aprovou em votação preliminar o artigo transitório que faz caducar os direitos de aproveitamento e uso da água no país, vigentes atualmente e que foram delegados sob o Código de Águas de 1981, durante a ditadura de Augusto Pinochet. Em outras palavras, propõe: é hora de expropriar os rios, lagos e mananciais que do capital privado – e torná-los Comum. A direita, auxiliada pela velha mídia, lembra Víctor Brintrup, tenta sua última cartada: desacreditar o processo constituinte, taxando-o de “não sério” ou “esquerdizado”, para que nada mude. Mas efervescência popular para derrubar a Constituição de Pinochet, e encerrar décadas de neoliberalismo, inaugurando um novo Chile, mostra que possivelmente eles terão mais uma derrota. “Para tanto, o Modatima propõe uma grande marcha nacional para 22 de março, o Dia Internacional da Água”, conta o dirigente nacional. “Este é o primeiro ano em que a data ocorre com um processo constituinte e com governos subnacionais do movimento, portanto, devemos colocar toda a força na recuperação das águas para os povos e ecossistemas do Chile”. (Apresentação: Rôney Rodrigues)

Víctor Bahamonde Brintrup

O que é, como é organizado e qual é a plataforma de luta do Modatima?

O Modatima é um movimento social que existe desde 2009, nascido na província de Petorca, na região de Valparaíso, cujas comunidades estão em conflito com a apropriação privada de água do modelo agroexportador, que nessa área do país cultiva principalmente abacate. Na época, começamos a percorrer o Chile, de norte a sul, e percebemos que o problema estava em todos os territórios: a apropriação privada das águas da Constituição Política de 1980 e do Código de Água de 1981, herdado da ditadura Pinochet e mantido pelos governos da Concertación e da direita até hoje.

Agora estamos mudando a Constituição com o processo constituinte que estamos vivenciando a partir das mobilizações maciças do ano de 2019. A privatização da água está no centro da acumulação [capitalista] devido ao modelo de expropriação com o qual as elites chilenas saqueiam o país; e os povos vão ficando sem seus bens comuns. Mas esse modelo vive uma crise estrutural. O Modatima foi criado, portanto, para que os povos do Chile recuperem suas águas.

Hoje, estamos organizados como movimento em quase todas as regiões do país, temos oito camaradas constituintes que estão elaborando essa nova Constituição e somos o único movimento social que tem um governo regional, liderado pelo nosso porta-voz nacional, Rodrigo Mundaca, na região de Valparaíso, o segundo mais importante do país e o mais importante do ponto de vista da economia nacional, onde passa 80% do movimento de carga de e para o Chile. Além disso, conseguimos camaradas que são vereadores de diferentes municípios do país.

O mais importante é que continuamos a ser um movimento social, uma comunidade organizada e seguimos lutando pela recuperação da água, da terra e do cuidado com o meio ambiente, enfrentando esse modelo capitalista predatório.

A reforma do Código de Água, em vigor há 41 anos, tramitou durante onze anos nas duas casas do Congresso. Quais setores se beneficiaram da privatização das águas chilenas? Como as populações pobres das cidades e aldeias tradicionais foram prejudicadas?

O Código de Água do Chile remonta a 1981 e permaneceu em vigor no retorno à democracia que aprofundou o modelo de desapropriação dos bens comuns dos povos do Chile, incluindo suas próprias águas. Hoje estamos em um ponto sem retorno, onde as águas foram absolutamente saqueadas e onde o modelo neoliberal criou um mercado especulativo que elevou drasticamente os preços da água nos territórios, deixando as águas nas mãos da indústria e a população sem ter água para beber.

Hoje, a solução da direita e da comunidade empresarial é que mais água seja produzida a partir da dessalinização da água do mar, porém, a água dessalinizada está sendo destinada às comunidades e a água doce vai para a agroexportação, a mineração, a indústria energética e para as empresas de saneamento, porque no Chile tanto as fontes de água quanto sua distribuição foram privatizadas, ou seja, as empresas de saneamento também foram privatizadas em 1998, quando o modelo foi consagrado.

Os principais beneficiários desse modelo neoliberal no ciclo da água são claramente as empresas agrícolas, mineradoras, florestais, energéticas e de saneamento, em cumplicidade com os setores políticos tradicionais de direita e a antiga coalizão da “Concertación de partidos por la democracia” que governava com a Constituição de Pinochet, comprometeu a justiça e aprofundou o modelo desde 1990, quando a ditadura saiu formalmente, mas manteve seu modelo consagrado que, na prática, é o modelo promovido pelos EUA através da diplomacia e da política comercial.

Quero deixar claro que a premissa do Código das Águas de 1981, elaborado pela ditadura e pela direita, é assegurar a propriedade àqueles que registraram “direitos de uso da água” em caráter perpétuo e livre, separando a propriedade da água da propriedade da terra – e gerando um mercado especulativo onde os rios são superoutorgados, acima de sua capacidade ecológica. Com isso, o que é negociado no mercado são os papéis que conferem propriedade de um ou mais litros por segundo do rio. A atual reforma que está no Congresso é absolutamente insuficiente, pois já foram privatizadas 90% das águas; ela busca mudar o regime para concessões de água com caducidade para os 10% da água que resta para ser entregue, sem poderes expropriatórios e sem tentar redistribuir as águas mal alocadas. Se não houver reapropriação do público, não há sequer a possibilidade de abordar a crise hídrica que estamos passando. O empresariado, organizado em associações agrícolas, bancárias, mineração e silvicultura, tem utilizado a mídia para criticar até mesmo essa pequena reforma, afirmando que é preciso dar segurança jurídica aos atuais donos das águas, ou seja, que em nenhum caso eles podem perder a propriedade sobre elas, e ameaçando os poderes legislativo e executivo.

Do que depende a sanção presidencial da lei que modifica o Código de Água, instituído durante a ditadura de Pinochet, já aprovado pelo Congresso Nacional?

Apesar das ameaças das grandes empresas – organizadas, no caso das agroexportadoras, na Sociedade Nacional de Agricultura (SNA) ou na Sociedade dos Exportadores de Frutas (ASOEX), para citar algumas como exemplo – avançou no Congresso uma reforma insuficiente e que não terá muitas repercussões na crise que estamos vivenciando. Hoje não há mais água para distribuir ou para consumo humano, mas os direitos de exploração continuam a ser dados aos projetos industriais, e o abastecimento das comunidades é feito por meio de caminhões tanques, que distribuem a água que os mesmos grandes proprietários de água vendem aos governos regionais.

Hoje existe no país um grupo de “aguatenientes”, similar ao de “latifundiários”, que faz desse modelo algo absolutamente absurdo e insustentável. Há casos tão graves de escassez que o Estado teve que sair e comprar água a preços altos para entregar água doce às comunidades locais, quando este mesmo estado deu esses direitos de uso gratuitamente. Há um medo institucionalizado de expropriar ou considerar expirados esses direitos, apesar da crise. O presidente da República tem apoiado essa reforma através de seus parlamentares, no entanto, a lei chilena concede ao presidente o poder de veto, ou seja, não promulgar uma lei apesar de ter passado pelo processo legislativo no Congresso. Neste caso, é difícil para o presidente vetar essa lei, uma vez que ele foi um dos promotores de sua reforma, incorporando as indicações da comunidade empresarial, já que a lei é apenas para os direitos de uso da água que ainda faltam ser entregues, sendo que a única grande novidade é que os direitos a serem concedidos expirarão em 30 anos.

O Modatima considera satisfatório o texto submetido à sanção presidencial?

Acreditamos que este projeto de reforma é insuficiente e que não influenciará em nada a situação hídrica de escassez e desapropriação que as comunidades chilenas estão vivenciando, uma vez que o modelo privado de água é mantido do ponto de vista das fontes, gestão e tratamento da água. Continuamos a ter um modelo profundamente desigual, com acumulação, que não toca nos direitos de uso já concedidos e que aprofunda o absurdo de um modo de gestão da água obsoleto e em crise. Nossa aposta está no processo constituinte que estamos vivenciando, pois a Constituição Política que está sendo elaborada deve ser refletida na água como um direito humano e como um bem de uso e domínio público, mas isso implica que toda a água do país entra nesse regime, afetando o modelo privado de água que temos atualmente, no qual grandes proprietários especulam sobre o preço.

Como a Modatima está trabalhando com a Convenção Constitucional?

Temos oito camaradas constituintes: Ivanna Olivares, Carolina Vilches, Cristina Dorador, Manuel Royo, Yarela Gómez, Aurora Delgado, Gloria Alvarado e Cristóbal Andrade, que formularam a iniciativa popular da norma, que a chamaram de “água, direitos da natureza e geleiras”. Eles tiveram 28.379 apoios de cidadãos com assinatura legal e mais de 2,8 milhões de apoios na página da Convenção Constitucional. Esse processo constituinte tem enfatizado a participação social e nossos companheiros têm trabalhado duro para isso, promovendo diálogos territoriais, articulação social, audiências públicas e sessões de assembleia em diferentes regiões do país. Levar a assembleia da Convenção Constitucional aos territórios é necessário para ouvir as demandas populares daqueles que as vivem. Isso é inédito nos processos constituintes no Chile, todas as Constituições anteriores foram elaboradas entre quatro paredes, pelas costas dos povos. Esta Convenção Constitucional é paritária, com assentos reservados aos povos indígenas e com representação das regiões, e nossos camaradas estão orientados pelo movimento para recuperar as águas e torná-las um direito humano, além de avançar na recuperação dos bens comuns como minerais, terra, água, mar e florestas.

Doze dos dezenove membros da Comissão do Meio Ambiente e do Modelo Econômico definem-se como eco-constituintes. Na avaliação do Modatima, condições políticas para garantir que a desprivatização das águas chilenas, com a expiração dos direitos de propriedade vigentes, seja aprovada em sua totalidade a partir da Convenção Constituinte, onde serão necessários dois terços dos votos?

Consideramos que há condições para a Convenção Constitucional aprovar a reapropriação das águas no Chile por maioria superior a 2/3. No entanto, isso não será fácil, porque os setores empresariais e políticos dos que governaram com essas condições exercerão pressão e influência. Eles tentarão defender seus interesses, mas a demanda pela recuperação da água no contexto da crise hídrica e climática é provavelmente uma das demandas mais sinceras do processo constituinte. De fato, as pesquisas que foram publicadas antes e durante o processo de convenção constitucional dão uma adesão popular acima de 80% a essa alternativa. Mas, apesar disso, é uma questão altamente sensível para os setores produtivos que estão exercendo pressão midiática e política. Não será fácil, mas será alcançado.

Como é a mobilização dos setores populares e sindicais para incluir os direitos humanos à água e ao saneamento, garantias indispensáveis para uma vida digna, na nova Constituição do Chile?

As mobilizações sociais, sem dúvida, declinaram com a pandemia, o verão, o processo eleitoral presidencial e o próprio processo constituinte. Há um sentimento popular de que as coisas estão mudando, lentamente, mas mudando. Há muita expectativa sobre o novo governo de Gabriel Boric e, sobretudo, alta expectativa do texto constitucional, apesar da campanha da mídia e das direitas objetivando desacreditar o processo, qualificando-o como não sério, esquerdizado ou absurdo na abordagem de algumas iniciativas. A direita é uma minoria, mas deixa claro na mídia que eles controlam: eles não gostam do que está acontecendo e estão jogando sua última cartada para desacreditar o processo de vitória no plebiscito obrigatório de setembro, no qual poderia eventualmente ganhar a rejeição da nova Constituição. No entanto, essa hipótese é altamente improvável considerando a elevada votação que aprovou a mudança da Constituição e, porque, uma vez instalado o novo governo, deve haver melhores condições institucionais para o trabalho da Convenção Constitucional.

Se Piñera não apoiou esse processo, deixando-os sem recursos para funcionar, Gabriel Boric deveria melhorar essas condições mínimas e reencantar os povos com o processo em si. Para tanto, o Modatima propõe uma grande marcha nacional para 22 de março, o Dia Internacional da Água. Este é o primeiro ano em que a data ocorre com um processo constituinte e com governos subnacionais do movimento, portanto, devemos colocar toda a força na recuperação das águas para os povos e ecossistemas do Chile.

Como é a gestão das concessões de serviços de água e saneamento pela Assembleia Constituinte? Qual é a posição do Modatima sobre esse tema?

O Modatima afirma que a água deve ser manejada e usada de acordo com prioridades, privilegiando o consumo humano. Além disso, sua distribuição deve considerar critérios precisos de necessidade da produção. Por exemplo, se um produtor tem dois hectares plantados, ele precisa de cerca de dois litros por segundo para irrigação. O mesmo critério deve ser aplicado às empresas de mineração, silvicultura, energia e saneamento. Não faz sentido que elas tenham direito de usar vazões superiores ao que precisam para sua atividade produtiva, usando o excedente para vender e especular com a água, jogando com escassez em seu benefício. O Estado deve ter mais e melhores poderes de fiscalização, regulação e sanções para proteger as águas para as gerações e ecossistemas futuros. É sua responsabilidade. O novo modelo de gestão da água no Chile deve contemplar a caducidade das atuais alocações de água, sob o conceito de títulos de uso ou concessões por um determinado número de anos, derrogáveis sem indenização pelo não uso do mesmo. A água é um bem natural comum de uso e domínio público e seu acesso deve ser garantido como direito humano.

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