Bifo: Desejo, revolução e os ecos de 1968

Na impotência e depressão políticas estão raízes da ascensão do fascismo. Livro inédito do filósofo italiano, escrito no calor das revoltas dos anos 60, convida: o imprevisível e a imaginação pós-capitalista são chave para superar visões fatalistas

FRANCE. Paris. 11th arrondissement. Worker and student demonstration from Republique to Denfert-Rochereau. (about 1000000 demonstrators) May 13th, 1968.
.

A Sobinfluencia Edições, parceira de Outras Palavras, está em campanha de financiamento coletivo para publicar, pela primeira vez em português, Desejo e Revolução, livro publicado na Itália em 1977 a partir dos diálogos entre Paolo Bertetto, Franco Bifo Berardi e Félix Guattari. Você pode contribuir aqui. Vladimir Moreira Lima Ribeiro, professor assistente na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, o organiza.

No momento de rasgo da história que transitou os anos 60 e 70, mais especificamente em 1977, Paolo Bertetto, Franco Bifo Berardi e Félix Guattari se encontram para confidenciar e elaborar a imaginação e o bombardeio do real que erguia-se nestes anos de fúria. Em uma conversa profunda, os três tecem afetos fumegantes e radicais que compõem um diálogo afiado sobre microfascismo, subjetividade, agenciamento revolucionário, violência, psicanálise e insurgência. E, acima de tudo, a frente de produção de um desejo radicalizado.

Este texto inflamado de uma paixão e imaginação fecunda, ganha novos textos, organizados e traduzidos por Vladimir Moreira Lima, que conjugam esta collage de imagens do que é a potência dos ecos do “movimento 68”. A seguir, trecho da entrevista inédita feita pelo organizador da obra a ser publicada no Brasil com Franco Bifo Berardi que estará disponível na íntegra na edição brasileira de Desejo e Revolução.

Há uma grande e evidente imbricação entre Desejo e revolução e a autonomia italiana. Trata-se de uma conversa entre você, Paolo Bertetto e Guattari que ocorre em julho e em setembro de 1977 e é imediatamente publicada. Por sua vez, março e setembro do mesmo ano são dois pontos de intensidade do movimento autonomista, precedido e sucedendo tantas outras experiências. Para não falar de O anti-Édipo, que já circulava, e da primeira edição de A Revolução Molecular que logo seria traduzida para o italiano. Você poderia falar um pouco sobre este contexto? Quais efeitos esta conversa provocou nos movimentos de luta italianos? Algo novo aconteceu no modo de fazer funcionar isso que empobrecidamente chamamos de “teoria”?

O contexto no qual esta entrevista ocorreu foi completamente excepcional. Em março, o movimento estudantil havia ocupado as universidades contra o compromisso histórico, contra a aliança da esquerda com a Democracia Cristã, ou seja, contra o conformismo do regime, contra o desemprego massivo, contra a repressão que visava os militantes da esquerda autônoma. Após a sublevação de março (em Bolonha, três dias de confronto entre a polícia e os estudantes, um estudante assassinado pela polícia militar, demonstrações de força em todos os lugares do país, uma grande manifestação em Roma, cem mil pessoas na rua, guerrilha no centro da capital…). Após a insurreição de março, fui obrigado a fugir para Paris, pois os jornais me apontavam como o responsável pela revolta e a polícia me procurava.

Conheci Félix Guattari em Paris e, juntos, decidimos lançar um encontro contra a repressão que aconteceu no mês de setembro em Bolonha. Esse texto fez parte da discussão que se desenrolou durante o ano da revolta: a relação entre a tradição operaísta e a nova concepção da esquizoanálise, o papel da classe operária como sujeito central do processo histórico e a complexidade da molecularidade no movimento social.

Qual foi a influência desse texto? Isso eu não sei. O que posso dizer é que o movimento de 77 foi a ocasião para uma renovação da perspectiva filosófica e, por outro lado, o pensamento desejante de Deleuze e Guattari abriu uma nova perspectiva para a luta social. Uma perspectiva centrada sobre os processos de subjetivação, sobre o desejo e sobre a felicidade como energia e como questão do movimento social.

Em Futurability, você fala de uma “era da impotência”. E você vem pensando a singularidade do fascismo contemporâneo como um “fascismo da impotência”. Nas circunstâncias atuais, como funciona o ato de desejar esse fascismo?

É cada vez mais evidente que a vontade política é impotente. O ano de 2021 nos apresentou um panorama caótico, infernal: o meio ambiente está fora de controle, o aquecimento global é irreversível, a difusão do vírus está produzindo efeitos caóticos na máquina social, a geopolítica está transtornada com a derrota do Ocidente no Afeganistão, o que significa que a era da democracia terminou e a ordem internacional não pode mais ser dominada pelas potências ocidentais e, além do mais, não há mais nenhum centro, nenhuma ordem. Tudo pode ocorrer em todos os níveis. E o que outrora era a potência da vontade política, perdeu toda a eficácia.

Depois, o declínio do Ocidente é evidente no nível demográfico, e a onda de migrações é inevitável, crescente e intolerável para o espírito infeliz da maioria da população dos países colonialistas, particularmente para a maioria dos europeus.

Impotência e depressão, eis aí as raízes da ascensão do fascismo que ocorre em todo lugar, sobretudo na Europa. O fascismo do século XX era a agressividade de uma população masculina jovem, humilhada pela derrota na guerra, mas determinada e capaz de reagir. Hoje, a população branca está envelhecida, a fertilidade masculina está em queda de mais de 50%, a impotência sexual se mistura com a impotência política. O fascismo em ascensão é o fascismo desesperado dos colonizadores que continuam a explorar os recursos do sul do mundo, mas não tem mais energia (física, sexual, política, intelectual) para se impor. Nessa situação, tudo se torna possível: a agressividade alimentada pelo ressentimento pode levar à ações extremas.

Você também pensa um futuro “tecno-totalitário” como sendo da ordem do provável. Como você vê a relação entre esta impotência e a intensificação da abstração capitalista no que diz respeito aos modos cada vez mais desterritorializados de produção da subjetividade planetária?

Na medida em que a sociedade se afunda na impotência e no desespero, a única força que pode manter uma ordem é o autômato: a conexão das máquinas inteligentes com enormes massas de dados, a penetração dos automatismos técnicos no interior do espírito dos indivíduos e nas relações interindividuais. Uma sociedade de indivíduos deprimidos, solitários, pobres, governados pelos automatismos técnicos. O pior pesadelo da ficção científica distópica está em vias de se realizar.

Por outro lado, em um texto recente, você diz algo muito importante sobre ir além do provável e pensar o possível. Em The Uprising, você remarca que Deleuze, Foucault e Guattari cartografaram o nível de abstração e desregulamentação do capitalismo atual mas também tentaram imaginar outros possíveis. Há algo a se fazer entre o fatalismo, o derrotismo, o game over, a depressão, o suicídio e a recusa de restaurar futuros promissores, redentores? Como pensar a criação política, a resistência, prescindindo do progresso?

Se posso ser sincero, diria que, atualmente, não se vê uma saída do labirinto: o caos da vida social e do psiquismo coletivo, a automação das relações linguísticas e produtivas… A extinção entrou no léxico da política porque a extinção é, hoje, a perspectiva mais provável para o século no qual vivemos. A extinção da civilização mas, talvez, também a extinção da realidade biológica do humano.

Mas isso é apenas o provável, até mesmo o inevitável.

Por outro lado, me lembro que geralmente, na história humana, o inevitável não se verifica, pois o imprevisível toma conta. O imprevisível é a força maior. Mas onde está o imprevisível?

É esta a tarefa que nós temos no presente: imaginar o inimaginável, se dispor ao imprevisível. Onde encontramos os recursos para isso? Na poesia, na arte, mas também na ciência inovadora que não aceita os limites conceituais do crescimento econômico e da acumulação capitalista.

Você ressaltou em diversas ocasiões como o movimento autonomista italiano de 77 afirmou uma luta anticapitalista que passava pela luta contra o trabalho: uma potente recusa da “ética do trabalho”. Me parece este ser um ponto de inflexão importante no modo pelo qual podemos descrever o capitalismo e, sobretudo, a resistência a ele, uma vez que não se trata apenas de uma luta por justiça contra a exploração econômica mas sim um movimento de reativação e criação de uma vida digna de ser vivida – uma dimensão fundamental do gesto guattariano que conecta desejo e revolução. Será que existe, nesta recusa do trabalho, não o único, mas um importante elemento para pensar de outro modo e novamente o comunismo?

Com a onda neoliberal, muitas coisas mudaram após a derrota operária nos anos 80, como a precarização do trabalho e a fragilização do tecido social. E, principalmente, a criação do trabalho inútil pelo capitalismo. O movimento operário não foi capaz de impor o interesse social sobre a tecnologia, de dobrar a tecnologia na direção da redução do tempo de trabalho.

O consumismo foi utilizado para obrigar os trabalhadores a produzir o inútil, para produzir armas e gadgets de destruição em massa da inteligência e da socialidade.

A recusa do trabalho era uma prática progressiva porque essa prática estimulava os engenheiros a inventar técnicas de redução do tempo de trabalho. Mas a recusa do trabalho se tornou impossível por conta da precarização. A relação entre trabalhadores estava fundada na solidariedade, já na era da precariedade ela se funda na competição perpétua.

Este é o núcleo mais duro da derrota operária: o fim da solidariedade e, entretanto, o fim da recusa da exploração.

Leia Também:

3 comentários para "Bifo: Desejo, revolução e os ecos de 1968"

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *