PCC & Faria Lima: E o papel do Banco Central?

A conexão entre a nata do rentismo e do crime organizado é conhecida no mundo – assim como a fé cega das elites na impunidade. Por isso, retórica de “independência total” do BC – que fiscaliza e regula o financismo – só abriria espaço para mais ilegalidades

Arte: Rankia Brasil
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A gravidade, a amplitude e a profundidade das denúncias envolvidas nas recentes ações desenvolvidas por diversos órgãos de controle e policiamento na seara do sistema financeiro causaram enorme surpresa na opinião pública. Durante os primeiros dias, a questão ganhou espaço nos grandes meios de comunicação, mas pouco a pouco, os jornalões, as revistonas e as grandes redes de televisão foram se esquivando de dar às operações o destaque merecido. Na verdade, as revelações soaram como novidade apenas para quem não estava muito enfronhado no cotidiano de empresas que operam no circuito da chamada Faria Lima.

Uma das principais razões para esse esfriamento na divulgação das novidades obtidas com as operações reside no fato de que grandes interesses econômicos começaram a ser tragados para o olho do furacão. Aquilo que aparecia inicialmente apenas como denúncias de que o crime organizado estaria atuando por meio de instituições financeiras começa a ganhar corpo e forma de uma coexistência articulada e orgânica entre o Primeiro Comando da Capital (PCC) e o mundo do financismo. É amplamente sabido que a acumulação de capital realizada pelos grupos do tráfico é muito volumosa. Também é generalizado o conhecimento de que esse tipo de atividade ilegal e criminosa necessita de mecanismos elaborados e sofisticados na institucionalidade econômica e financeira. Esse é o mecanismo conhecido genericamente como “lavagem de dinheiro”, cujo intuito primordial é conseguir legalizar esse dinheiro todo e conferir ares de normalidade a um processo de acumulação de capital cuja base e origem são criminosas.

Ziegler: a Suíça lava mais branco

A questão em debate atualmente no Brasil nos remete, sem sombra de dúvida, ao escritor e militante de diversas causas progressistas, Jean Ziegler. Ele é um cidadão de nacionalidade suíça que ocupou, ao longo da vida, diversos cargos de relevo no interior das Nações Unidas. Dentre suas obras mais conhecidas figura “A Suíça lava mais branco”, livro publicado em 1990, que expõe de forma aberta e cristalina o envolvimento do sistema bancário e financeiro suíço junto ao crime organizado. Graças à estrita observância do segredo e da privacidade dos correntistas e dos valores envolvidos, a banca daquele país conseguiu manter um elevado poder de atração das fortunas e dos patrimônios espalhados pelos vários continentes do globo.

Apenas em 2018, o Estado suíço decidiu colocar um fim às regras do sigilo bancário e passou a compartilhar as informações com outros países e com as agências internacionais de controle. Assim, tornou-se público aquilo que era sabido por todo mundo na esfera do financismo internacionalizado. O sistema do país da suposta neutralidade abrigava recursos bilionários e trilionários oriundos de práticas de corrupção, de atividades ilegais ligadas às drogas e às armas, do tráfico de pessoas e de pedras preciosas — além dos valores de roubo e contrabando, dentre tantos outros itens que compõem o amplo arco de ação da criminalidade internacional.

Em entrevista publicada em 2015, portanto alguns anos antes do fim do sigilo bancário na Suíça, Ziegler aponta alguns elementos centrais na organização das relações entre o financismo suíço e os recursos originados nas atividades criminosas de todo o tipo:

(…) “Existe uma corrupção institucional na Suíça. Na maioria dos países, o órgão que regula os bancos é uma entidade estatal. Na Suíça, trata-se de uma empresa semi-privada e que é paga pelos bancos. Uma agência que regula bancos bancada pelos bancos.” (…) [GN]

Por outro lado, Ziegler jamais se intimidou em oferecer, de forma aberta e cristalina, as origens de boa parte da dinheirama que chegava à Suíça para ser lavada e legalizada. O pequeno país europeu, de difícil acesso, localizado nos Alpes e distante de qualquer porto marítimo, converteu-se desde meados do século XVIII em magneto atrator de fortunas pelo mundo afora. As denúncias apresentadas por Ziegler foram tão graves que ele chegou a ser cassado de seu mandato no parlamento suíço, em razão do incômodo causado junto às elites do financismo de lá.

(…) “A raiz disso é ainda o papel que tivemos na Segunda Guerra e a cumplicidade com o regime de Hitler. Desde então, temos as maiores fortunas do mundo. Hoje, 27% da riqueza global está na Suíça. Mas como é que podemos estar entre os dez maiores PIBs do mundo em termos per capita e viver num país sem recursos naturais? Aqui, a matéria-prima se chama dinheiro estrangeiro, que vem de fraudadores internacionais, dinheiro do crime ou dinheiro do sangue, que é como eu chamo o dinheiro das ditaduras.” (…) [GN]

As lições a serem extraídas do terrível caso da institucionalidade do sistema financeiro do país helvético, que aceitou por séculos a conivência com os recursos de origem criminosa, ao que tudo indica, ainda não aportaram por aqui em nossas praias. Apesar de não termos incorporado na nossa legislação e nas práticas do Poder Judiciário o sigilo absoluto das aplicações bancárias, o fato é que permanece uma fé cega, por parte das nossas elites, nas regras informais da impunidade e do jeitinho brasileiro de ser e de operar no mundo dos negócios. Isso vale para a sonegação aberta e deslavada, assim como vale também para métodos nada ortodoxos ou éticos do planejamento tributário empresarial. Em um caso, sempre vem um simulacro de anistia sob a forma do rotineiro e sempre aguardado programa de refinanciamento das dívidas tributárias (REFIS). No outro caso, sempre vale apostar nas decisões a favor do sonegador, quase sempre obtidas nas instâncias da tecnocracia no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF).

E a independência do BC? Faria Lima & PCC

As operações e investigações do momento atual trazem à baila revelações muito graves a respeito das relações incestuosas que foram sendo estabelecidas entre a nata do financismo e a elite do crime organizado. A empresa que se apresenta como a maior gestora independente de fundos foi denunciada como receptadora de recursos do PCC e como operadora de tais volumes em nome da facção do crime. Trata-se da Reag Investimentos, que foi imediatamente abandonada pela holding Reag Participações. O grupo controlador optou por colocar à venda a unidade que passou a receber todas as atenções dos grandes meios de comunicação, em razão das suspeitas envolvidas em sua própria gestão.

Além disso, o conglomerado do Banco Genial também se viu sob os holofotes das denúncias da assim chamada “Operação Carbono Oculto”. A empresa do ramo bancário e financeiro gozava de certo prestígio no interior da Faria Lima, bem como contava com uma boa imagem para fora do universo do financismo. Ela era uma das financiadoras das pesquisas eleitorais e de opinião pública de marca Genial/Quaest. Por outro lado, para reforçar os perigosos laços apontados por Ziegler, a Genial figura como uma das empresas que respondem de forma sistemática ao questionário da pesquisa Focus, organizada semanalmente pelo Banco Central. Uma loucura!

Ora, se sob as atuais condições do modelo institucional, o BC nada fez, o que imaginar caso estivesse em vigor a independência plena do banco, tal como previsto na PEC 65? O órgão, atualmente presidido por Gabriel Galípolo, tem sido sistematicamente conivente há muito tempo com esse tipo de prática e não tomou as medidas necessárias para impedir a convivência tóxica e criminosa entre o espaço que ele mesmo deveria fiscalizar e o mundo do crime organizado. Se estivéssemos sob a égide jurídica da independência quase total, tal como proposto pela fina flor do financismo, aí sim é que as consequências teriam sido ainda mais graves. Em busca da rentabilidade segura e elevada, os gestores dos fundos financeiros não respeitam limites éticos nem legais. Esta é a razão para a exigência democrática e republicana de uma fiscalização rigorosa, de uma legislação sólida e da condenação dos envolvidos nas atividades ilícitas e criminosas.

A sociedade deve ter mecanismos de controle sobre o BC. Trata-se de um órgão público com atribuições e poderes para fiscalizar e regular o mercado bancário e financeiro, além de ser o responsável pela política monetária e pela política cambial. Por isto é que o governo legitimamente eleito pelo voto soberano e popular deve ter o poder de definir sua composição e as políticas ali definidas. Um BC independente significaria conferir ainda mais espaço para ilegalidades e práticas criminosas, como revelado por este escândalo das relações entre o PCC e a Faria Lima.

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