Os suíços querem frear suas multinacionais
No país-sede de corporações como a Syngenta, iniciativa com grande adesão popular propõe lei que penaliza empresas que cometem crimes em outras partes do mundo. Diante da voracidade do capital, visam, ao menos, regular suas práticas mais nefastas
Publicado 05/02/2025 às 18:34
Por Sergio Ferrari | Tradução: Rose Lima
Uma aliança de mais de 90 sindicatos, associações religiosas e culturais, entre outras, e Organizações Não Governamentais (ONGs) no campo dos direitos humanos e do meio ambiente atingiu um marco histórico na Suíça em janeiro passado. A partir de uma mobilização cidadã nunca antes vista, em apenas duas semanas essa coalizão coletou mais de 183.000 assinaturas – em um país de menos de 9 milhões de habitantes – em apoio à Iniciativa Popular em favor das Multinacionais Responsáveis.
Para isso, cerca de 10 mil voluntários foram mobilizados e instalaram mil estandes e pontos de coleta de assinaturas em todo o território nacional no segundo e terceiro finais de semana de janeiro. Se aceito nas urnas, o texto da Iniciativa Popular será integrado à Constituição. A partir de então, as grandes empresas suíças, ou empresas sediadas na Suíça, bem como suas subsidiárias e contratadas locais, terão que respeitar os direitos humanos e ambientais em todos os países onde fazem negócios e cumprir os mesmos requisitos e obrigações que na Suíça. Isso significa que qualquer pessoa ou organização prejudicada por essas empresas em qualquer país poderá buscar reparações. Além disso, será criada uma entidade independente para a supervisão e o controle das práticas comerciais.
O comitê que promove essa mudança constitucional é composto por personalidades de um amplo espectro político (dos socialistas e verdes à direita liberal, incluindo o centro democrata-cristão), empresários e representantes de várias ONGs. Falando a repórteres, Claude Ruey, ex-senador nacional do Partido Liberal Radical de direita e membro do comitê, reconheceu que em sua longa vida política nunca viu “uma causa pela qual tantas pessoas se envolvam”. E ele descreveu como “extraordinário” o fato de que 183.661 assinaturas foram coletadas em apenas 14 dias. “Isso mostra claramente”, enfatizou Ruey, “até que ponto a população apoia [esta proposta] e como nossos concidadãos compartilham um grande senso de justiça”. O significativo dessa mobilização cidadã é que ela conseguiu quase o dobro das 100 mil assinaturas exigidas pela Constituição e em um tempo recorde de apenas duas semanas. A Carta Magna Suíça concede um prazo de 18 meses para obter essas assinaturas.
Café “escravo”
Os argumentos e exemplos que serviram aos promotores para realizar a coleta de assinaturas são contundentes.
A Nutrade Comercial Exportadora Ltda., subsidiária da multinacional suíça de agroquímicos Syngenta, bem como o programa Nucoffee, também de propriedade da Syngenta, comercializaram café de fazendas brasileiras onde prevalecem condições de trabalho análogas à escravidão.
46% do café do Brasil –maior produtor e exportador mundial– vem do Estado de Minas Gerais. Vários estudos concluem que mais de dois terços da força de trabalho nas fazendas de café naquele Estado são informais: eles não têm direito a um salário mínimo, pagamento de horas extras ou bônus sociais. No setor cafeeiro brasileiro, casos de trabalho forçado e violações trabalhistas muito graves, bem como trabalho infantil, são regularmente denunciados.
Uma investigação conjunta da Coalizão Suíça para Multinacionais Responsáveis e do coletivo de pesquisa WAV denuncia 6 casos de exploração laboral e trabalho forçado no Brasil ligados à Nutrade ou ao programa Nucoffee. A Sucafina continuou a comprar esse produto da Nutrade mesmo depois que as autoridades brasileiras comprovaram graves irregularidades trabalhistas.
A Syngenta também é acusada de violações em outros países, como a contaminação da água nas cidades de Cipreses e Santa Rosa, nas terras altas da Costa Rica, devido ao uso de seus pesticidas. Valores de clorotalonil até 200 vezes superior ao limite legal foram detectados nas águas. Esse fungicida altamente tóxico é proibido na União Europeia e na Suíça porque é suspeito de ser cancerígeno.
Ouro “assassino”
A menos de 3.000 quilômetros das plantações de café de Minas Gerais está a mina de ouro La Esperanza, no sul do Peru. Situada a cerca de 2.000 metros acima do nível do mar, em uma área muito isolada do Departamento de Arequipa, a mina é de propriedade da empresa peruana Yanaquihua SAC. Todo o minério que extrai é vendido para a Metalor, uma controversa refinaria de ouro suíça, que o transforma em barras de ouro com destino final nos cofres da União dos Bancos Suíços (UBS), a principal instituição financeiro-bancária do país. A UBS e várias marcas de luxo suíças que lidam com esse metal precioso afirmam que ele é indiscutivelmente “sustentável”, ou seja, produzido em condições justas. No entanto, a realidade parece negá-lo, como evidenciado por uma série de acidentes dramáticos em La Esperanza.
O primeiro deles, um grave incêndio na galeria I, quando 27 mineiros morreram asfixiados. De acordo com a Coalizão Suíça para Multinacionais Responsáveis, a refinaria suíça Metalor, a única compradora desse ouro, deveria ter garantido que os padrões básicos de segurança fossem respeitados durante a extração para que nenhum trabalhador ficasse ferido. Além disso, conforme destacado pela Coalizão, as graves deficiências de segurança eram bem conhecidas, pois entre 2011 e 2022 ocorreram 196 acidentes com ferimentos e deficiências significativas e entre 2019 e 2022 três trabalhadores perderam a vida devido ao desabamento do telhado de uma galeria.
Um relatório das autoridades peruanas sobre o incêndio de 2023, ainda não publicado, revela a gravidade dos problemas de segurança naquela empresa. A mina não tinha um sistema de alarme para facilitar a evacuação coordenada em caso de desastre. Também não tinha um plano formal de evacuação de emergência e as rotas de evacuação e saídas de emergência careciam de sinalização. Por fim, não possuía um sistema adequado de proteção contra incêndio, como extintores, areia e tanques de água, e os abrigos de segurança estavam mal equipados. Tal estado de negligência poderia ter levado a consequências ainda mais graves, dado o número de detonadores e explosivos que os investigadores encontraram nas profundezas da mina, largados, sem a menor proteção. De qualquer forma, a empresa que opera a mina nega que os requisitos de segurança não tenham sido respeitados.
Da Namíbia à Argentina, passando pelo Amazonas
Exemplos de desrespeito absoluto aos direitos humanos e ambientais por parte de empresas suíças são reiterados e abundantes.
Entre eles, as 300.000 toneladas de resíduos tóxicos na Namíbia, onde a multinacional canadense Dundee Precious Metals processa cobre com alto teor de arsênico para abastecer a multinacional IXM, com sede em Genebra. Bem como o impacto desastroso sobre o desmatamento na Amazônia e no Cerrado pelas multinacionais do setor de agroalimentos Cargill, Bunge, Cofco International e Amaggi, todas com sede na Suíça.
Na Argentina, as emissões de poeira da fábrica Sika, multinacional suíça especializada em produtos químicos para construção, estão poluindo o bairro de Las Mercedes, a cerca de 35 quilômetros da cidade de Buenos Aires. A Coalizão Suíça confirmou que exames médicos realizados em 48 moradores do bairro mostram que essa poeira está deixando a população doente. Entre outros elementos nocivos, esse resíduo tóxico inclui partículas de dióxido de silício, elemento que a Organização Mundial da Saúde classificou como cancerígeno de altíssimo risco.
Um pouco de história
Em novembro de 2020, após uma mobilização muito ampla, cidadãs/ãos suíços votaram em uma primeira Iniciativa sobre Multinacionais Responsáveis. Embora o resultado tenha sido de 50,7% a favor, a proposta não teve o apoio da maioria dos cantões (províncias), como exige a Constituição. A oposição, em particular os setores de extrema direita e pró-negócios, argumentou que, se aprovada, essa iniciativa introduziria uma responsabilidade civil única e muito exigente na Suíça e que, como resultado, importantes grupos econômicos emigrariam para outros países com menos demandas. O Poder Executivo, cuja maioria é de direita, também se opôs, argumentando a necessidade de agir “de forma coordenada em nível internacional” para colocar as empresas suíças e da União Europeia “em pé de igualdade”. Ele então promoveu, como alternativa, um contraprojeto. Na realidade, um simples álibi para tranquilizar as consciências, pois visa apenas fazer com que as multinacionais informem sobre suas atividades, mas sem qualquer obrigação legal a cumprir.
Em julho de 2024, entrou em vigor na União Europeia a Diretiva sobre a devida diligência empresarial em matéria de sustentabilidade, que visa promover um comportamento empresarial sustentável e responsável nas operações das empresas e suas respectivas cadeias de valor globais dentro e fora da Europa. Esse passo adiante para controlar o comportamento das multinacionais europeias em questões de direitos humanos e normas ambientais até agora não teve impacto na política suíça, que nem sequer o incorporou como referência.
Por isso, a sociedade civil suíça está mais uma vez levantando sua voz para relançar um princípio essencial da justiça internacional e propor essa nova iniciativa. E, fundamentalmente, exigir, com a força de um altíssimo nível de mobilização, que muito em breve seja decidido nas urnas como devem se comportar no futuro as multinacionais suíças que, até agora, têm sido irresponsáveis e violadoras dos direitos básicos.