Economia: A verdadeira pauta “Robin Hood”

Governo entra em choque com o Congresso, que tenta colocar-lhe corda no pescoço. Mas três dias das despesas com juros bastariam para compensar as perdas de receitas do IOF. Lula ainda tem tempo de mudar a essência da política econômica

Arte: Freepik
.

O ministro Fernando Haddad insiste em sua narrativa relativa à falácia da austeridade fiscal. O responsável maior pela condução da política econômica do terceiro mandato do presidente Lula não perde a oportunidade de se apresentar como um interlocutor confiável aos olhos da Faria Lima e da Febraban. Ao vestir a fantasia de bom moço na defesa dos interesses do financismo na Esplanada, ele faz questão de repetir, dia sim e outro também, que tem a responsabilidade fiscal cega e burra como uma de suas maiores obsessões da vida.

O roteiro desta farsa vem sendo construído de forma meticulosa antes mesmo da posse de Lula. Durante o período posterior à proclamação dos resultados do pleito no final de outubro de 2022, Haddad assumiu o comando da área econômica no processo da transição de governos. Assim, ele convenceu Lula de que não seria correto apenas revogar o Teto de Gastos de Michel Temer, consubstanciado na EC 95. O professor do Insper argumentou a seu chefe que o melhor caminho seria condicionar a revogação daquela medida à aprovação de uma lei complementar disciplinando um suposto Novo Arcabouço Fiscal (NAF). Esta foi a primeira armadilha preparada por ele e aceita por Lula.

Quanto ao desenho do modelo da nova austeridade fiscal, Haddad ouviu atenciosamente as sugestões do então presidente do Banco Central (BC), Roberto Campos Neto, bem como as valorosas colaborações de alguns dirigentes e presidentes de bancos e instituições financeiras. Tudo foi criteriosamente consolidado nos termos dos dispositivos daquilo que se tornou a Lei Complementar 200/2023. Isso significa a manutenção de regras de austeridade fiscal bastante draconianas, focando na redução de despesas e direcionando para a prática de obtenção de superávit primário. As despesas só poderiam crescer no ritmo máximo de 70% do aumento das receitas, comum limite máximo de 2,5% ao ano. Esse é o atual teto do Haddad. A medida se constitui na segunda armadilha montada pelo auxiliar de Lula para seu chefe.

Austeridade fiscal: o samba de uma nota só

Na sequência da implementação do NAF, Haddad propôs a Lula que seu governo assumisse a bandeira de “zerar o déficit fiscal primário” a partir de 2024. Trata-se de uma medida de natureza claramente suicida para um governante que havia prometido realizar “mais e melhor do que nos dois primeiros mandatos”, além de assegurar na campanha eleitoral que iria realizar “40 anos em 4”. Já cumprimos dois anos e meio e, até o momento, muto pouco foi apresentado pelo governo à sociedade a esse respeito. É bem possível que o não cumprimento de tais expectativas esteja na base do crescimento da insatisfação popular, tal como aferem as pesquisas de opinião.

Não satisfeito com as consequências políticas e sociais decorrentes dos cortes de despesas orçamentárias nas políticas no ano passado e no atual, Haddad ainda propõe aprofundar a tragédia. O Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) para 2026 encaminhada pelo Poder Executivo ao Congresso Nacional propõe a meta de um superávit fiscal de 0,25% do PIB em pleno ano eleitoral. A matéria está tramitando no âmbito da Comissão Mista do Orçamento (CMO) sob o rótulo PLN 2/2026. Uma loucura! Um verdadeiro devaneio neoliberal em meio a um embate que corre o grave risco de permitir o retorno da extrema direita ao governo federal.

Ora, tendo em vista as obrigações decorrentes das sucessivas armadilhas propostas por Haddad, o governo veio colecionando uma série de medidas de cortes de despesas na área social e nos investimentos, seja para atender às regras do NAF, seja para cumprir as metas do resultado fiscal primário. Assim vieram inúmeros cortes, tais como: i) eliminação paulatina do abono salarial; ii) reduções no acesso ao Benefício de Prestação Continuada (BPC); iii) diminuição nos índices de reajuste do salário mínimo tal como prometido por Lula desde sempre; iv) abolição do piso constitucional da educação, na prática, por meio da inclusão ilegal do “Programa Pé de Meia” nos gastos obrigatórios com a área; e, v) abolição do piso constitucional da saúde, na prática, por meio da incorporação de serviços do SUS como contrapartida das dívidas de sonegação de tributos das empresas privadas da área.

Em maio foram R$ 92 bi de despesas com juros

Em razão das dificuldades enfrentadas pelo governo para conseguir aprovar medidas, visando a elevação das receitas tributárias no Congresso Nacional, as opções todas se mantiveram no campo de cortes de gastos. Ao invés de reconhecer a natureza absolutamente irrealista da meta fiscal por ele proposta, o governo insiste na tecla do austericídio. Com isso, segue martelando contra a própria cabeça e contra as necessidades da grande maioria da população brasileira – cortes, mais cortes e ainda mais cortes nas rubricas sociais.

Neste caso, porém, fica completamente desnudada a falácia da narrativa da austeridade fiscal. No último dia 30 de junho, o BC divulgou seu mais recente Boletim das Estatísticas Ficais. De acordo com as informações ali apresentadas, o governo federal realizou um volume de despesas financeiras – apenas durante o mês de maio – no valor de R$ 92 bilhões. Esse montante foi 24% maior do que os R$ 74 bi registrados no mesmo mês do ano passado. Ou seja, poucas rubricas orçamentárias tiveram um aumento desta monta, quando todas as outras são comprimidas sob a justificativa mentirosa de que “não existem recursos” e de que governo segue a lógica da “responsabilidade fiscal”.

Com formalização do boletim de maio, a consolidação dos dados relativos aos últimos 12 meses mantém o nível acumulado dos gastos com os juros da dívida pública no perigoso patamar próximo a um trilhão – mais exatamente R$ 946 bi. O detalhe maldoso é que Haddad insiste em se manter na lógica do resultado fiscal “primário”. Desta forma, em função de um artifício de tautologia metodológica, ele se permite retirar da contabilização as despesas “não-primárias”. O resultado de tal estratégia é que todo o esforço realizado pela equipe econômica para obter algum tipo de equilíbrio fiscal não passa de uma grande falácia. Afinal, a despesa financeira, com juros da dívida pública, é uma despesa orçamentária como qualquer outra. Ou seja, apesar da narrativa para agradar ao povo da Faria Lima, o governo segue apresentando – de fato – um déficit trilionário.

A enganação da vez refere-se ao debate a respeito do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF). O governo havia introduzido algumas alterações nas regras de aplicação do tributo logo depois da apresentação do resultado fiscal do segundo trimestre. Como não está fácil cumprir a armadilha do “equilíbrio fiscal primário” que ele mesmo propôs a Lula, Haddad apresentou a fórmula de elevação de receitas ao lado do corte de despesas. A introdução da vigência do IOF sobre aplicações de fundos de brasileiros no exterior foi imediatamente bombardeada no dia da entrevista coletiva de 22 de maio passado e o ministro da Fazenda recuou de forma vergonhosa da proposta, ao longo da tarde e noite daquela quinta-feira.

As forças conservadoras do Congresso Nacional sentiram a oportunidade de avançar ainda mais e colocaram a corda no pescoço do governo. O desenrolar da chantagem foi a revogação do conjunto do Decreto a respeito do IOF, invalidando outras aplicações do tributo para além daquela que o próprio Haddad já havia desistido. A perda estimada de receitas tributárias com tal avanço da direita é de R$ 13 bi. A opção do governo foi a de recorrer ao Supremo Tribunal Federal (STF), uma vez que as análises jurídicas demonstram que a decisão do Congresso Nacional é claramente inconstitucional.

Risco nas eleições de 2026: mudança na política econômica

No entanto, o que chama a atenção é a insistência de Haddad em buscar se explicar frente às elites do financismo e apresentar a alternativa de redução de despesas em programas da área social. Um verdadeiro absurdo! Na verdade, a contradição das prioridades do governo é tão flagrante que apenas 3 dias úteis de despesas com juros durante o mês de maio correspondem a essa suposta perda de receitas do IOF. A conta é simples: 3 x R$ 4,6 = R$ 13,8 bi. Mas o governo segue com a obsessão de cortes nos programas sociais.

Todas as pesquisas de opinião estão apontando que o governo vem perdendo popularidade em sua base de apoio político e eleitoral. Uma das razões para esse movimento de desilusão e frustração nos setores até mesmo da base da nossa pirâmide da desigualdade refere-se à redução da intensidade dos programas de serviços públicos e de apoio à grande maioria da população. Exatamente por isso é que não cola mais o discurso demagógico de “governo dos pobres” versus “Congresso dos ricos”. Afinal, todos sabem que a equipe de Lula tem governado prioritariamente para atender aos interesses das classes dominantes e tem cortado sistematicamente as verbas orçamentárias de programas voltados à maioria da população.

A austeridade fiscal é uma falácia. A insistência em permanecer fiel a ela pode custar muito caro ao projeto da reeleição de Lula em 2026. Estamos encerrando dois anos e meio deste mandato. Apesar da urgência do calendário, ainda há tempo para mudar a essência da política econômica.

Sem publicidade ou patrocínio, dependemos de você. Faça parte do nosso grupo de apoiadores e ajude a manter nossa voz livre e plural: apoia.se/outraspalavras

Leia Também:

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *