A fábrica de crises do neocolonialismo
Não é possível enxergar os impasses do governo Lula sem olhar para a sabotagem do financismo global – que se utiliza da velha mídia para fabricar consensos. Investimento público em uma nova indústria nacional pode ser caminho de resgate da autonomia
Publicado 05/06/2024 às 18:29 - Atualizado 12/06/2024 às 16:19
[1] A disseminação de desinformação é uma característica intrínseca do neofascismo. A pretensa crise que a mídia corporativa está criando para o governo Lula é mais uma tentativa de manter o torniquete apertado no orçamento da seguridade social e nos investimentos, visando sangrar o país com o pagamento de juros. A banca tenta dar o golpe final na seguridade social com a desvinculação da previdência dos ganhos do salário-mínimo e do fim dos pisos constitucionais da educação e saúde.
O alarme de crise é uma estratégia para interromper a lenta queda dos juros e, posteriormente, retomar o ciclo de alta. Este sempre foi o jogo dos banqueiros. Basta assistir e ler os principais veículos que pautam o debate nacional no eixo Rio-São Paulo (Grupo Globo, Grupo Folha, Grupo Band, Record, Estadão etc.). Conforme matéria do jornal Hora do Povo o setor público já gastou com os juros da dívida pública R$ 776,3 bilhões (7,00% do PIB), no acumulado de doze meses até abril. Nos doze meses até abril de 2023, esse gasto foi de R$659,5 bilhões.
[2] O governo Lula está em crise? Não creio. Nosso presidente tem conduzido o Congresso e o Judiciário com a habilidade que lhe é peculiar. As supostas derrotas, como a recente derrubada do veto à “saidinha” dos presos, já estavam “precificadas”, como dizem os neoliberais, e devem fazer parte do acordo de governabilidade do país. Lula conduz, segundo o ex-ministro José Dirceu, um governo de centro-direita. Trata-se do possível dadas as circunstâncias internas e externas, cujo traço de união é o neofascismo.
A agenda neoliberal da equipe econômica do governo parece ser parte do acordo político com os setores do capital financeiro que apoiaram Bolsonaro, que tentou organizar um governo neofascista no Brasil. Nossa sorte é que parte da elite viu que isso era mau negócio devido à estupidez, boçalidade e falta de racionalidade administrativa de Bolsonaro. No entanto, se Bolsonaro tivesse sido reeleito, também haveria um acordo de “ganha-ganha” com o governo, pois os banqueiros mandam no Brasil. Além disso, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e as ministras do Planejamento, Simone Tebet, e da Gestão e Inovação, Esther Dweck, parecem se afiliar ideologicamente ao obsoleto conceito da austeridade fiscal.
[3] Nosso problema estrutural são os Estados Unidos da América (EUA), a cujo poderio político e econômico estamos submetidos há quase um século, especialmente desde o golpe militar de 1964. O foco principal da política externa dos EUA após a II Guerra Mundial tem sido o controle das fontes de energia e a circulação de bens e mercadorias produzidos por eles. Essa doutrina foi estabelecida pelos irmãos Dulles: Allen Welsh Dulles, primeiro diretor da CIA durante o governo Eisenhower, e John Foster Dulles, Secretário de Estado no mesmo governo. A estratégia de derrubar presidentes por meio de terrorismo midiático e agitação política começou com eles no Irã em 1953.
Os EUA, a maior potência militar da história, não precisaram usar diretamente seu poderio bélico — embora estivessem prontos para tal em 31 de março de 1964 — para derrubar o governo Jango. O mesmo terrorismo midiático e político fora realizado no Brasil, com fartas evidências documentais da ação do governo dos EUA. No entanto, o império estadunidense está em franco declínio — porém mais violento – e não é mais possível esconder que ele patrocina o neofascismo no mundo com o financiamento à Ucrania e Israel.
[4] A neocolonização na fase neoliberal do capitalismo constitui-se principalmente no controle dos Estados Nacionais pela dolarização do comércio global. Neste processo, nas economias ocidentais-liberais com alto grau de financeirização, como o caso do Brasil, os atores-chave são os bancos. Eles passaram a ser os maiores agentes de política externa do protetorado estadunidense. Grandes fundos de investimento, como a BlackRock – com valor estimado de 9.4 Trilhões de Dólares americanos – podem exercer influência significativa na política externa dos EUA em relação a economias periféricas como a do Brasil de diversas maneiras:
I. Pressão sobre o governo americano: Fundos de investimento com grande poder econômico podem pressionar o governo americano a adotar políticas que favoreçam seus interesses em países periféricos. Isso pode ocorrer através de lobby direto, financiamento de campanhas políticas e influência sobre think tanks e grupos de pesquisa que moldam o debate público.
II. Condicionamento de investimentos: Fundos de investimento podem condicionar seus investimentos em países periféricos à adoção de determinadas políticas econômicas, como a abertura comercial, a desregulamentação financeira e a privatização de empresas estatais. Essa prática, conhecida como “diplomacia do dólar”, pode levar os governos desses países a ceder às demandas dos investidores em troca de acesso ao capital estrangeiro.
III. Influência sobre organismos internacionais: Grandes fundos de investimento podem influenciar as decisões de organismos internacionais, como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial, que desempenham um papel importante na definição das políticas econômicas dos países periféricos. Essa influência pode se dar através da participação em conselhos consultivos, do financiamento de projetos e da pressão sobre os líderes dessas instituições.
IV. Manipulação do mercado financeiro: Fundos de investimento com grande poder de mercado podem influenciar a cotação de moedas e títulos de países periféricos, afetando a estabilidade econômica e a capacidade de financiamento desses países. Essa manipulação pode ser utilizada como forma de pressão para a adoção de políticas favoráveis aos interesses dos investidores.
V. Financiamento de projetos estratégicos: Fundos de investimento podem financiar projetos estratégicos em países periféricos, como a construção de infraestrutura e a exploração de recursos naturais. Essa prática pode dar aos investidores grande poder de barganha com os governos locais, que dependem do capital estrangeiro para financiar seus projetos de desenvolvimento.
Embora a BlackRock seja o maior gestor de ativos do mundo, com grande influência em diversos mercados, sua atuação no Brasil é mais limitada em comparação a outros fundos e gestoras. No entanto, existem outros grandes fundos de investimento com forte presença no Brasil e potencial para influenciar a política econômica e financeira do país. Alguns deles são:
- Capital Group: Uma das maiores gestoras de ativos do mundo, com grande participação em ações de empresas brasileiras e títulos da dívida pública. Sua influência se dá principalmente pela capacidade de movimentar grandes volumes de capital e pressionar por mudanças nas políticas econômicas.
- Fidelity Investments: Outro grande gestor de ativos global com investimentos significativos no Brasil, tanto em ações quanto em renda fixa. Sua influência se dá pela participação em assembleias de acionistas e pela pressão sobre as empresas para adotarem práticas de governança mais transparentes e responsáveis.
- Vanguard Group: Conhecido por seus fundos de índice de baixo custo, a Vanguard também possui investimentos relevantes no Brasil, principalmente em ações de grandes empresas. Sua influência se dá pela capacidade de movimentar grandes volumes de capital e pela pressão por maior eficiência e transparência no mercado de capitais.
- Pimco: Especializada em investimentos em renda fixa, a Pimco possui grande participação em títulos da dívida pública brasileira. Sua influência se dá pela capacidade de afetar a cotação dos títulos e pela pressão sobre o governo para manter a estabilidade fiscal e monetária.
- Franklin Templeton: Gestora global com investimentos diversificados no Brasil, incluindo ações, renda fixa e private equity. Sua influência se dá pela participação em empresas de diversos setores e pela pressão por melhorias na gestão e na governança corporativa.
O tamanho dos fundos de investimento, medido pelo valor total dos ativos sob gestão (AUM) em trilhões de dólares americanos, é o seguinte:
Fundos de investimento | AUM (USD trilhões) |
Capital Group | 2.7 |
Fidelity Investments | 4.5 |
Vanguard Group | 8.1 |
Pimco | 1.9 |
Franklin Templeton | 1.4 |
[5] No Brasil, minha suspeita é que o capital financeiro controla as mídias corporativas de massa, principalmente do eixo Rio-São Paulo. Não é novidade que os noticiários de economia e política no Brasil, desde a Nova República, parecem (e concretamente são) assessorias de imprensa do “mercado”, que nada mais é do que um pequeníssimo grupo de banqueiros super ricos que compram espaço na mídia, e por conseguinte, a linha editorial. Basta assistir aos noticiários para ver quem os patrocina: (1) os tradicionais Bradesco, Itaú e Santander; (2) os contemporâneos outrora fintechs como C6 do JP Morgan Chase (EUA) além dos fundos de investimentos que se alvoroçaram no varejo também, como BTG e XP Investimentos. Os comentários de economia nos grandes veículos são feitos por economistas dos bancos (incluindo os fundos de investimento). Por conseguinte, eles moldam as análises conforme o interesse do patrão. A forma de conduzir a macroeconomia pelo arcabouço neoliberal (“controle” da dívida pública, “responsabilidade” fiscal e “não intervenção” estatal no mercado) é dada como como 1+1=2. Mas eles não dizem e não explicam como se dá a emissão de moedas na fase neoliberal do capitalismo: tanto por dívida pública pelos Estados nacionais (moeda fiduciária), quanto por dívida privada pelos bancos que são emissores de moeda não fiduciária.
[6] A atuação dos banqueiros é amplamente conhecida. Eles promovem terrorismo fiscal na mídia por meio dos “economistas chefes” dos bancos, criando a impressão de uma crise profunda e imediata do “descontrole” da dívida pública e da inflação. Em artigo publicado no jornal Hora do Povo, intitulado O financismo ataca mais uma vez, Paulo Kliass descreve sociologicamente o funcionamento dos agentes do terror financista no Brasil contra o governo Lula. Ele cita exemplos específicos: (…) “despesas obrigatórias vão anular espaço para gastos ou ampliar déficit” (…) [Folha/UOL] (…) “o peso das vinculações de despesas no problema fiscal do país” (…) [Valor Econômico/Globo] (…) “pisos de saúde e educação vão consumir todo o espaço das despesas não obrigatórias até 2028” (…) [Estadão] (…) “a cruzada solitária de Fernando Haddad e Simone Tebet” (…) [Veja] (…) “Regras automáticas de crescimento de despesas tornam mais difícil ajuste fiscal” (…) [Isto É]. Kliass descreve o chamado “falso consenso em torno da austeridade fiscal”, constatando que o núcleo econômico do governo pratica a austeridade fiscal.
[7] Soma-se a isso a vigilância do comportamento dos agentes de Estado, que precisam ser “imparciais” e obedientes às leis universais do liberalismo econômico no Brasil: “responsabilidade fiscal”, meta de inflação, câmbio flutuante, “não intervenção” do Estado na economia. Por exemplo, já circula também a chamada intervenção do Estado na economia pelo presidente Lula. No editorial do Estadão de 29/05/24, intitulado provocativamente “Vem aí o Arrozbrás”, o jornal criticou a decisão do governo de importar 1 milhão de toneladas de arroz para ser vendido no varejo a R$ 8,00 por saco de 2kg, através da CONAB.
O editorialista descreveu a medida como voluntarista, eleitoreira e tresloucada. Segundo o jornal, o anúncio dessa iniciativa já causou um aumento de 30% no preço do arroz nos supermercados, ao anunciar que faria leilões públicos para comprar o equivalente a 10% do consumo anual brasileiro. Sem fornecer provas concretas para suas alegações, o editorial demonstrou, na melhor das hipóteses, ignorância por parte de quem o escreveu, ao desconsiderar que a intervenção estatal visa justamente corrigir distorções de mercado e garantir a segurança alimentar da população, especialmente em um período de alta inflação.
[8] A desinformação midiática realizada contra o governo Lula é parte de uma estratégia maior para manter a acumulação por espoliação do povo brasileiro pelos banqueiros. Taticamente, a desinformação visa reduzir e parar a lenta queda da taxa de juros. Na última reunião do COPOM, houve uma disputa acirrada entre os diretores que queriam uma redução menor de 0,25%, posição vencedora, e os que queriam uma redução de 0,5%, posição perdedora.
O impacto da redução de 0,25% na taxa SELIC alivia a dívida em torno de R$ 5,25 bilhões. Uma redução de 0,50% na Selic teria o dobro do impacto na dívida pública em comparação com a redução de 0,25%, aliviando a dívida em R$ 10,5 bilhões.
A taxa em maio foi reduzida para 10,50%. A expectativa de inflação para 2024, de acordo com o Boletim Focus do Banco Central do dia 26/05/2024, é de 4,98%. A taxa Real de Juros (SELIC descontada a inflação) é de 5,52%. Boa parte desses títulos de vencimento de 10 anos são pré-fixados, ou seja, a taxa de juros é definida no momento da compra e não se altera ao longo do tempo, independentemente das flutuações da Selic.
Estrategicamente, os banqueiros, para cumprir seus interesses gananciosos alinhados com o capital transnacional, bloqueiam o debate sobre a taxação de lucros e dividendos, grandes fortunas e a reversão da regressividade do imposto sobre a renda. Para ajudá-los, a equipe econômica do presidente Lula enviou ao Congresso, no ano passado, uma reforma tributária focada no consumo, em vez de uma taxação progressiva da renda e da riqueza, conjugada com o “novo arcabouço fiscal”. Ou seja, manteve-se o torniquete no orçamento público, que poderia arrecadar muito mais com a progressividade dos impostos sobre a renda e riqueza, e limitou o crescimento do excedente monetário (veja o artigo O mito da austeridade fiscal e a troika à brasileira) para aumentar o investimento público no país.
[9] Limitar ou barrar o desenvolvimento do Brasil é o objetivo dos EUA. O economista e professor Nilson Araújo de Souza avaliou o programa do governo Lula, Nova Indústria Brasil. Para o professor Nilson, para que o plano funcione, é necessário reduzir os juros e aumentar o investimento público, redirecionando o excedente monetário das mãos dos banqueiros para o investimento em políticas sociais de reconstrução nacional.
Contrariando a doutrina Dulles, que prega o controle das fontes de energia pelos EUA, Nilson destaca a questão central na luta anti-imperialista, conforme descrevo a seguir:
“O programa propõe o uso do investimento público como uma das alavancas do processo de reindustrialização. Isso é mais do que correto. Mas, para isso, é imprescindível remontar a Petrobrás e recuperar a Eletrobrás, empresas que têm uma larga experiência em estimular a criação e desenvolvimento de empresas nacionais.” (Nilson Araújo de Souza, entrevista ao jornal Hora do Povo, 31/01/24).
A retomada da Petrobrás e a recuperação da Eletrobrás são lutas que não podemos olvidar. Ela necessariamente passará pela luta anti-imperialista. A Eletrobrás deve ser recuperada pela Petrobrás, como propõe o professor Belluzzo, para formar uma gigante de energia no mundo. Essa fusão precisa ir além para formar uma empresa brasileira de Inteligência Artificial, sem a qual nós não seremos soberanos, como alerta o professor Fábio Borges de Oliveira, diretor do Laboratório Nacional de Computação Científica (LNCC).
No hoje, os adversários da luta pela soberania do Brasil são EUA e os banqueiros, com a mídia corporativa aliciada por eles. Esse consórcio pôs em marcha o neofascismo Brasil e no resto do mundo. O neofascismo é uma das faces do neocolonialismo promovido pelos EUA.
A análise criteriosa da conjuntura atual, aliada à paciência e ao trabalho conjunto com a população, utilizando exemplos concretos como norte, aumentam nossas chances de construir um Brasil desenvolvido e socialmente justo.
Parabéns pelo trabalho numa perspectiva crítica sobre temas nacionais e de caráter eminentemente ideológico. Excelente pegada.
Excelente trabalho de qualificação da informação.