Vietnã, 50: “O horror, o horror”

Terceiro texto da série sobre a vitória contra os EUA. O três milhões de vietnamitas mortos; a maioria, civis. O Massacre de My Lai que chocou até soldados americanos. O agente laranja que ainda adoece a população. E vários outros crimes de guerra transmitidos ao vivo e a cores…

Foto de Horst Faas, fotojornalista alemão e duas vezes vencedor do Prêmio Pulitzer, conhecido por sua cobertura da Guerra do Vietnã

Capítulo 3 – Ao vivo e a cores: a brutalidade da agressão do imperialismo dos Estados Unidos [1]

.

“A tecnologia tornava suas vítimas invisíveis, como não podiam fazer as pessoas evisceradas por baionetas ou vistas pelas miras de armas de fogo. Diante dos canhões permanentemente fixos da Frente Ocidental estavam não homens, mas estatísticas – nem mesmo estatísticas reais, mas hipotéticas, como mostraram as “contagens de corpos” de baixas inimigas durante a guerra americana no Vietnã. Lá embaixo dos bombardeios aéreos estavam não as pessoas que iam ser queimadas e evisceradas, mas somente alvos” (Eric Hosbsbawm) [2].

O capítulo mais macabro e perverso da covarde e irracional ofensiva militar estadunidense no Vietnã foi a força desproporcional empregada em um país pobre, subdesenvolvido e rural – dos cerca de 37,12 milhões de habitantes em 1965, apenas 6,21 milhões (ou 16,7% do total) viviam no meio urbano [3]. Uma brutalidade que chegou a superar, em tonelagem de bombas lançadas e em custos (tabelas 1 e 2), os números da Segunda Guerra Mundial (1938-1945). Nada menos do que cerca de 7.700.000 toneladas de bombas foram lançadas pelas Forças Armadas dos EUA sobre o Vietnã, cuja energia total equivale a de 385 bombas de Hiroshima [4]. E, sempre cabe lembrar, com ampla cobertura midiática. Além de empregar um alto número de soldados recrutados nos EUA (sobretudo entre 1966-1969) e da montagem de um amplo exército de soldados e oficiais sul-vietnamitas, as forças militares para tentar derrotar o Viet Minh também contaram com o apoio de outros países (tabela 3).

Tabela 1 – Tonelagem de bombas lançadas pela Força Aérea e

Marinha dos Estados Unidos no Vietnã (1965-1972)


19651966196719681969197019711972
Sul21.800302.000598.0001.059.000957.000511.000238.000561.700
Norte30.000200.000270.000200.0003.60013.40010.300210.000
Total51.800502.000868.0001.259.000960.600524.400248.300771.700

Fonte: Museu de Reminiscências da Guerra (1º fev. 2020).

Tabela 2 – Comparativo da participação estadunidense nas guerras


2ª Guerra MundialGuerra da CoreiaGuerra do Vietnã
Duração do conflito3 anos e 8 meses3 anos e um mês17 anos e 2 meses
Soldados em serviço ativo16.112.5665.720.0008.744.000
Pico das tropasn/d327.000 (jun. 1953)549.500 (abr. 1969)
Toneladas de bombas e projéteis de artilharia5.000.0002.600.00014.300.000
Custo da guerra (em USD)341 bilhões54 bilhões676 bilhões
Vítimas405.399 mortos 671.846 feridos36.407 mortos 103.284 feridos58.159 mortos1 304.000 feridos

Obs.: 1. Inclui 12 generais, 89 coronéis, 295 tenentes-coronéis e 696 majores.

Fonte: Museu de Reminiscências da Guerra (1º fev. 2020).

Tabela 3 – Quantidade de soldados da Força Expedicionária dos EUA, países satélites e forças militares marionetes sul-vietnamitas (1964-1972)


196419651966196719681969197019711972
Marionetes sul-vietnamitas1514.000643.000735.900798.800820.000897.000968.0001.046.2501.048.000
Estados Unidos23.310184.310385.300485.600536.000549.500335.790158.12024.000
Coreia do Sul20020.62025.57047.83050.00048.87048.54045.70036.790
Tailândia0202402.2006.00011.57011.5706.00040
Austrália2001.5604.5306.8207.6607.6706.8002.000130
Filipinas20702.0602.0201.580190705050
Nova Zelândia3012016053052055044010050

Obs.: 1. Inclui infantaria, Marinha, Força Aérea, fuzileiros navais e forças regionais e populares. Exclui a Polícia Nacional.

Fonte: Museu de Reminiscências da Guerra (1º fev. 2020).

Entre 1961 e 1971, o Exército dos EUA conduziu 19.905 missões, pulverizando cerca de 80 milhões de litros de substâncias químicas tóxicas (das quais 61% eram Agente Laranja, totalizando 366kg de dioxina) sobre aproximadamente 26 mil vilas, em uma área de 3,06 milhões de hectares, que equivale a quase um quarto da área total do Vietnã do Sul. Em 86% dessa área, a pulverização ocorreu duas vezes – e em 11%, mais de dez vezes. Dioxina é o nome comum de um químico chamado 2, 3, 7, 8 ou tetraclorobenzeno-p-dioxina (ou TCDD). Na família dioxina existem 75 diferentes componentes, mas o mais perigoso deles é o encontrado no Agente Laranja. Cientistas concordam que a dioxina é o mais prejudicial e tóxico químico já descoberto pela Humanidade e alguns argumentam que um litro com 85g de dioxina pode matar uma cidade inteira com uma população de 8 milhões de pessoas.

Tabela 4 – Desfolhantes utilizados pelos Estados Unidos no Vietnã (1961-1971)

SubstânciaQuantidade de TCDD (em ppm)1
Agente Rosa65,6
Agente Verde65,6
Agente Roxo32,8 a 45
Agente Laranja e Laranja II (Super Laranja)1,77 a 40
Agente Branco0
Agente Azul0

Obs.: 1. Um ppm equivale a um mg/kg de desfolhante.

Fonte: Museu de Reminiscências da Guerra (1º fev. 2020).

Fotos – Armas químicas usadas no Vietnã, efeito do desflorestamento e mapa das missões

Fonte: Museu de Reminiscências da Guerra (1º fev. 2020)

Cerca de 4,8 milhões de vietnamitas foram expostos ao Agente Laranja, sendo que cerca de 3 milhões acabaram se tornando vítimas. O resultado dos estudos conduzidos no Vietnã e no mundo indicaram que essa substância pode causar danos severos e complexos em todas as partes do corpo, incluindo câncer de pele, danos na pele, fígado, tireóide e diabetes; danos aos sistemas respiratório, digestivo, circulatório, neurológico e endócrino; além de contribuir para alterações e mutações genéticas que causam complicações reprodutivas e deformações no nascimento.

Doenças comuns em crianças e netos de vítimas do Agente Laranja incluem paralisia completa ou parcial, cegueira, mudez, surdez, retardo mental, doenças mentais, câncer e deformações no corpo. O Agente Laranja, particularmente, pode ser transmitido ao longo de gerações, cuja sequelas alcançaram até a 4ª geração no Vietnã. Estatísticas incompletas, com coleta de dados em todo o país, apontam, parcialmente, que existem mais de 150 mil vítimas da 2ª geração, 35 mil da 3ª e 2 mil da 4ª.

Fotos – Consequências da exposição ao Agente Laranja e outras armas químicas

Fonte: Museu de Reminiscências da Guerra (1º fev. 2020)

Outro artifício de brutalidade foi a utilização em larga escala da bomba de Napalm, um tipo de bomba incendiária de gasolina gelatinosa que gera temperaturas entre 800°C e 1.200°C e queima tudo ao redor em um raio de até 500 metros. De acordo com estatísticas do Departamento de Defesa dos EUA, mais de 176 mil toneladas de Napalm foram usadas pelo Exército estadunidense no Vietnã. A chocante e icônica foto da menina Phan Thi Kim Puch – que ficou com partes do corpo seriamente queimadas quando corria para escapar de um ataque de Napalm –, tirada em 8 de junho de 1972 pelo jornalista Nick Ut, da agência Associated Press, ajudou a impactar a opinião pública e condenar o uso desse instrumento.

O horror da guerra, muitas vezes transmitido ao vivo em redes de televisão e estampado em fotografias coloridas em revistas e jornais, desencadeou uma campanha para que fosse instituído um tribunal, a fim de condenar as atrocidades e chamar a atenção mundial para as inúmeras violações cometidas. As fotos da ofensiva publicadas pela revista Time no pequeno vilarejo de My Lai, no sul do Vietnã, ocorrida em 16 de março de 1968 – que resultou no assassínio covarde e brutal de 504 civis vietnamitas (dos quais 182 mulheres e 173 crianças) –, chocaram a opinião pública. O crime só veio à público um mês depois, por conta de denúncias vindas dos próprios soldados, e quando as fotos da chacina, de autoria de Ronald Haeberle (fotógrafo de destacamento de informações públicas do Exército dos EUA que acompanhava a Companhia Charlie naquele dia), chegaram à mídia. Detalhe: Haeberle estava com duas câmeras. A com rolo colorido era de uso pessoal.

Fotos – Brutalidade do Massacre de My Lai

Fonte: Museu de Reminiscências da Guerra (1º fev. 2020)

Cabe ressaltar ainda que vários movimentos contra a guerra se esparramaram por todo o mundo, inclusive nos EUA, como visto no capítulo 2. O Tribunal Bertrand Russell, como ficou conhecido, realizou duas sessões em 1967 (em Estocolmo, entre 2-10 de maio; e Copenhague, entre 20 nov. e 1º dez.), com o seguinte veredicto:

“Os Estados Unidos suportam a responsabilidade pelo uso da força no Vietnã, e têm, portanto, empenhado contra o país por um crime de agressão, um crime contra a paz. Ao sujeitar a população civil e os alvos civis da República Democrática do Vietnã do Norte a intenso e sistemático bombardeio, os EUA cometeram crime de guerra. Isso pela parte em que as forças armadas dos EUA utilizaram ou testaram armas proibidas pelas leis de guerra (CBUs, napalm, bombas de fósforo, gases de combate, químicos tóxicos).

Os prisioneiros de guerra capturados pelas forças armadas dos EUA estão sujeitos a tratamentos proibidos pelas leis de guerra.

As forças armadas dos EUA sujeitaram a população civil a tratamentos inumanos, proibidos pelas leis de guerra.

O governo dos EUA é culpado de genocídio vis-à-vis ao povo vietnamita” [5].

Também impressiona a moderna máquina de guerra levada pelos EUA ao Sudeste Asiático, com armamento e veículos aéreos, terrestres e aquáticos (marítimos e fluviais) de última geração para aquele contexto. Bombas destinadas a matar e a mutilar as pessoas (como a “bomba abacaxi”, composta por 250 pelotas de metal inseridas em uma pequena caixa metálica), aviões B-52 (cuja altura de voo o impossibilitava de ser visto ou ouvido), tanques Patton M48A3, helicópteros UH-1 Iroquois e fuzis M16 são alguns exemplos (fotos 29-37).

Fotos – Moderna máquina de guerra dos EUA utilizada no Vietnã

Fonte: Museu de Reminiscências da Guerra (1º fev. 2020)

Os números da mortandade são superlativos [6]. Durante a guerra, 3 milhões de vietnamitas foram mortos (cerca de 2 milhões civis) e 2 milhões ficaram feridos, com o registro de 300 mil pessoas desaparecidas. Apenas no Vietnã do Norte, as perdas imputadas pelos ataques da força aérea e da Marinha dos EUA registraram:

  • Em vidas humanas: 200 mil mortos ou feridos e 70 mil órfãos;
  • Em termos econômicos: 100% das plantas de energia; entre 1,5-1,6 mil plantas de irrigação; cerca de 1.000 vãos de barragens ou diques; 6 linhas férreas; inúmeras pontes e sistemas de esgoto; entre 66-70% das fazendas estatais; aproximadamente 40 mil cabeças de gado; além de dezenas de milhares de terras devastadas;
  • Em termos sociais: 350 hospitais (10 totalmente destruídos); 1.500 enfermarias; 2.923 escolas (do nível fundamental ao superior); 465 pagodes e santuários; 484 igrejas; e mais de 5 milhões m2 de casas de alvenaria;
  • 30 cidades foram atacadas e seriamente danificadas (12 totalmente destruídas), dentre as quais as seis maiores do país; 116 distritos e 5.788 comunas (300 totalmente destruídas).

Após o final da guerra, 800 mil toneladas de bombas foram deixadas em solo vietnamita, com 6,1 milhões de hectares de terras e 9.284 comunas contaminadas com bombas e explosivos. Entre 1975 e 2002, 42.135 pessoas morreram e 62.143 ficaram feridas por bombas e explosivos. Um trauma que o país carrega até hoje, mesmo cinco décadas após o fim do conflito.


Notas:

[1] Salvo informação em contrário, os dados quantitativos expostos neste capítulo foram extraídos do Museu de Reminiscências da Guerra (1º fev. 2020).

[2] HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos: o breve século XX (1914-1991). 2. ed. 50. reimp. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p.57.

[3] Vide <https://www.worldometers.info/world-population/vietnam-population/> Acesso em: 20 mar. 2025.

[4] Informação extraída do Museu Ho Chi Minh de Danang (06 jan. 2024).

[5] Texto extraído do Museu de Reminiscências da Guerra (1º fev. 2020).

[6] Apenas a título de complementação, os ataques ao Camboja entre 1969 e 1973 totalizaram cerca de 500 mil toneladas de bombas, além de 70 mil hectares pulverizados com substâncias químicas desfolhantes, ocasionando a perda de 30% dos seringais do país. Cem mil civis cambojanos teriam morrido. No Laos, “o país mais bombardeado da história”, segundo a Voz da América, foram 2,5 milhões de toneladas de bombas em 600 mil voos, com a morte estimada de 30 mil laocianos. Vide GRANDIN, Greg. A sombra de Kissinger. Rio de Janeiro: Anfiteatro, 2017, p.82-83.

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