Periferias: o projeto-limpeza da ditadura

Dicionário Marielle Franco sugere: nos 60 anos do golpe, é preciso relembrar violações do regime nas favelas. Militarização do cotidiano e remoções eram políticas da alta cúpula; e não exceções. E ela temia as “subversivas” associações comunitárias

Foto publicada no site do Conselho Regional de Serviço Social-RJ
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Presentes em todos os grandes centros urbanos do país, as favelas e periferias são parte da história do Brasil, bem como a luta constante de seus moradores e moradoras por direitos de cidadania. A estrutura racista e classista do Estado, desde o início da ocupação e da organização política das favelas, tem trabalhado para sua remoção – ou para sua criminalização, seja pelo apagamento ou pela marginalização. Isto ocorre porque estamos falando de um Brasil fundado em uma lógica colonial que ainda não se preocupou em reparar as populações que sobrevivem nesses territórios vulnerabilizados. Pelo contrário, a cada ano, governos municipais, estaduais e federais gastam montantes de recursos públicos para controlar de diversas formas a população favelada e periférica.

Hoje, no Brasil, temos aproximadamente 11.403 favelas, onde vivem cerca de 16 milhões de pessoas e, mesmo assim, toda essa população ainda é criminalizada, marginalizada e violentada pelos governantes, com apoio de uma mídia empresarial – que enquadra essas populações no imaginário de um povo que deve ser combatido. Uma das formas de controle da favela e da população favelada é por meio do que os governos chamam de “segurança pública”, o que, no fim das contas, significa a militarização da vida e dos territórios racializados. Infelizmente, na história, estas são as políticas que chegam nos espaços populares.

E, por falar em história, vimos, por exemplo, muitas práticas coloniais militares sendo praticadas durante os últimos anos, direcionadas, em especial, a estes territórios. Nos anos de 1990, por exemplo, poucos anos após o fim da ditadura civil-empresarial-militar no país, policiais militares passaram a receber a chamada gratificação “faroeste”, em que ganhou destaque o dispositivo legal conhecido como “auto de resistência”. De acordo com a publicação “Auto de resistência: A omissão que mata”, lançada em 2019: “presente desde a época da ditadura militar, tal classificação administrativa passou, progressivamente, a ser empregada para designar as mortes resultantes das ações policiais e, durante o governo Marcelo Alencar, seu uso chegou a ser estimulado por uma remuneração concedida a policiais militares intitulada ‘premiação por bravura’ ou ‘gratificação faroeste’”. Não, por acaso, foi neste período em que foram cometidas pelas polícias militares e civis, inúmeras chacinas nas periferias e favelas de todo o Rio de Janeiro.

Naquela época, além do atraso na questão do direito à segurança pública dentro das favelas, remoções e despejos também passaram a ser recorrentes. De acordo com verbete publicado no Dicionário de Favelas Marielle Franco, de autoria de Lucas Pedretti, só entre 1962 e 1974, mais de 140.000 pessoas foram removidas de suas casas, em especial nos bairros que se tornavam mais atrativos para o mercado imobiliário, como a Lagoa Rodrigo de Freitas e o Leblon. Se a política de remoções sistemáticas foi iniciada com o então governador Carlos Lacerda – um dos principais articuladores civis do golpe – ainda antes da ditadura, foi em 1968, com a criação da Coordenação de Habitação de Interesse Social da Área Metropolitana do Rio de Janeiro (CHISAM), órgão federal subordinado ao Ministério do Interior, que a ditadura passou a dirigir o processo, garantindo recursos, força política e o uso irrestrito da repressão para viabilizá-lo.

Em recente pesquisa divulgada pela Iniciativa de Direito à Memória e Justiça Racial (IDMJRacial), especializada na pauta de segurança pública na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, em apenas um dia deste ano de 2024, mais de 10 favelas e periferias do Rio de Janeiro sofreram com operações policiais. De acordo com nota pública divulgada pela organização: “As polícias realizam operação em mais de 13 favelas, afetando 62 escolas, mais de 20 mil alunos, além do transporte público e serviços de saúde”.

Importante chamar atenção que, durante um dia de operações policiais como estas ocorridas em 13 favelas – em fevereiro de 2024 -, toda a vida de uma favela é interrompida. Ou seja, a juventude negra e pobre perseguida pelas polícias é assassinada, e a vida material da favela também. Em dias como esses, postos de saúde, escolas e comércios são fechados, impossibilitando o trabalho e o circuito de economia auto-organizada nas favelas. São dias em que não é possível sair nem chegar. Além disso, militares invadem as casas, há roubos de pertences dos(as) moradores(as) e materiais de trabalho são quebrados. Moradores(as) apanham, outros(as) são colocados dentro dos carros blindados das polícias, os chamados caveirões, e acabam mortos ou desaparecidos.

De acordo com o relatório parcial da pesquisa realizada pelo Instituto de Segurança Pública (ISP) e do Disque Denúncia (100), só na Baixada Fluminense, foram registrados 361 denúncias de desaparecimentos forçados entre 2016 a 2020, com cerca de 46% do total de casos. Na cidade do Rio de Janeiro, que tem quase o dobro da população, o quantitativo foi de 417 no mesmo período.

Recentemente, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva – uma representação política e histórica do nosso país – orientou que não houvesse manifestações em memória contra os duros anos da ditadura civil-empresarial-militar no Brasil. Silenciar um movimento tão importante como este significa não avançar na luta pela reparação daquelas pessoas que sofreram naquele período – e nem dessas que ainda sobre com as violações até os dias de hoje. Não se manifestar neste ano, em que se completam 60 anos do golpe a duras custas, é anistiar, mais uma vez, os algozes e não permitir avançar no cumprimento de uma democracia plena, capaz de incluir o direito à vida e aos direitos humanos da população negra e favelada de nosso país. Como aponta o pesquisador Lucas Pedretti, em verbete publicado no Dicionário de Favelas Marielle Franco, desde então, o lobby dos militares é um entre muitos elementos de uma “transição inacabada”, que explicaria a militarização da sociedade brasileira atualmente. Para dar mais destaque à história das favelas e periferias e, em especial, à permanência das violações de direitos a suas populações nos dias atuais, trazemos (abaixo), um verbete, do mesmo pesquisador, sobre “Ditadura e violência nas favelas”. (Introdução: Gizele Martins e Clara Polycarpo)

Ditadura e violência nas favelas

Por Lucas Pedretti [1].

Relatório da Comissão da Verdade

Órgão criado para investigar violações de direitos humanos do regime militar afirma que militarização do cotidiano dos moradores e remoções forçadas são práticas do passado que se repetem hoje.

“Fomos tirados dessas comunidades [Favela da Praia do Pinto, Ilha das Dragas e Ilha dos Caiçaras] como animais. O governo, a Polícia Militar e a COMLURB iam botando nossas coisas pra cima dos caminhões de lixo, metendo pé de cabra e marreta nos barracos, derrubando.” Com essas palavras, Altair Guimarães narrou para a Comissão da Verdade do Rio (CEV-Rio) como foi a remoção forçada que vivenciou durante a ditadura civil-militar (1964-1985), quando tinha apenas 14 anos.

A CEV-Rio foi criada pela lei estadual 6.335/2012 para investigar as graves violações de direitos humanos ocorridas no regime de exceção e para subsidiar os trabalhos da Comissão Nacional da Verdade (CNV). Após dois anos e oito meses de trabalho, a comissão entregou seu Relatório Final ao governo do Estado em cerimônia realizada no Palácio da Guanabara no dia 10 de dezembro de 2015. O governador Pezão cancelou sua participação na última hora. Na ocasião, também lançou seu novo portal, onde o relatório e os documentos que o embasaram podem ser acessados.

Assim como as outras medidas adotadas pelo Estado brasileiro para lidar com as violações de direitos humanos do período, a CNV foi criada com limites bastante claros. Após um início turbulento, a comissão logrou ter tranquilidade para trabalhar e avançou — timidamente — em alguns pontos. Teve o grande mérito de colocar o assunto da ditadura na pauta da opinião pública, alavancada pela efeméride do cinquentenário do golpe. No entanto, seu Relatório Final foi entregue à presidenta Dilma Rousseff — ela mesma uma ex-presa política — sem que o destino das mais de centenas de vítimas de desaparecimento forçado fosse identificado.

Contudo, esta não foi a única lacuna deixada pela CNV. Muito se falou sobre como a comissão reafirmou certa visão sobre a ditadura, segundo a qual as vítimas do regime teriam sido somente os militantes políticos da esquerda armada — em sua maioria homens, brancos e oriundos das classes médias e altas. Embora também tenha efetuado um pequeno avanço nesse campo, ao dedicar capítulos de seu relatório à violência cometida contra os setores LGBT, os indígenas e os trabalhadores urbanos e rurais, a Comissão Nacional da Verdade não teve força para alterar esse perfil usualmente identificado como as vítimas da ditadura.

Algumas comissões estaduais, no entanto, se debruçaram mais detidamente sobre estes aspectos. Nesse contexto, a CEV-Rio buscou se dedicar à pesquisa sobre a violência de Estado nas favelas cariocas durante o regime. Para tanto, contou com a colaboração dos historiadores Juliana Oakim e Marco Pestana. Após a coleta de depoimentos de vítimas e a análise de centenas de páginas de documentos obtidos no Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro e no Arquivo Nacional, os pesquisadores produziram um artigo que subsidiou um capítulo do relatório da Comissão Estadual da Verdade sobre a temática. No documento, a CEV-Rio afirma que as violações de direitos humanos nas favelas durante a ditadura se estruturaram a partir de dois eixos: as remoções forçadas e a presença militarizada do Estado no cotidiano dos moradores.

A ditadura e o projeto de erradicação de favelas

Entre 1962 e 1974, mais de 140 mil pessoas foram removidas de suas casas, em especial nos bairros que se tornavam mais atrativos para o mercado imobiliário, como a Lagoa Rodrigo de Freitas e o Leblon. Se a política de remoções sistemáticas foi iniciada com o então governador Carlos Lacerda — um dos principais articuladores civis do golpe — ainda antes da ditadura, foi em 1968, com a criação da Coordenação de Habitação de Interesse Social da Área Metropolitana do Rio de Janeiro (CHISAM), órgão federal subordinado ao Ministério do Interior, que a ditadura passou a dirigir o processo, garantindo recursos, força política e o uso irrestrito da repressão para viabilizá-lo. Nesse contexto foram removidas as favelas citadas por Altair Guimarães, e da Lagoa Rodrigo de Freitas, ele foi transferido para a Cidade de Deus, em Jacarepaguá. “[O bairro] era sem nenhuma infraestrutura, era barro puro. Eu e os meus amigos fomos separados, alguns foram para Cordovil e outros foram para outro lugar. Vivi uma vida muito ruim na minha adolescência com essa mudança de um lugar para o outro,” conta ele.

As remoções, contudo, não ocorreram sem a resistência dos moradores. A CEV-Rio localizou documentos inéditos que comprovam a prisão de lideranças da Federação de Associações de Favelas do Estado da Guanabara (FAFEG) que se articulavam para combater o processo. Em um caso emblemático, os moradores da Favela do Esqueleto, ameaçada de remoção poucos meses após o golpe, organizaram um plebiscito na comunidade a fim de mostrar às autoridades que queriam ficar. Etevaldo Justino, então presidente da FAFEG, foi preso acusado de fazer “ativismo subversivo” entre os favelados e, após a repressão, a remoção foi realizada e os milhares de moradores foram expulsos do local onde hoje é a Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ).

Com a decretação do Ato Institucional nº5 e o recrudescimento da repressão política, mais lideranças foram presas e associações de moradores sofreram intervenção da ditadura, abrindo caminho para que os despejos forçados se intensificassem. Assim, o período entre 1968 e 1974 viu cerca de 90 mil pessoas removidas. Nesse momento, multiplicaram-se os incêndios criminosos nas favelas — o mais marcante foi o que acometeu a Favela da Praia do Pinto, deixando milhares de desabrigados e acelerando a remoção da comunidade. José Fernandes, transferido de uma favela em Botafogo para a Cidade Alta, e hoje morador da Rocinha, expressou o sentimento da época: “a remoção da comunidade Santa Terezinha se deu tranquila, não houve tumulto nem nada não, porque também não tinha como fazer tumulto, chegou um montão de polícia. Naquela época ali, estava no auge da coisa, então não tinha tumulto. Nosso barraco lá era um barraco de madeira, saiu o último morador, eles botaram fogo. Na época eram aquelas patrulhinhas, joaninhas, e muita polícia mesmo.”

Intensificar as batidas nas favelas”

Um dos documentos localizados pela CEV-Rio é a ata de uma reunião realizada em 1971 com representantes dos órgãos da repressão. Entre informes acerca da captura dos chamados “subversivos” e discussões sobre as estratégias do regime para sufocar as oposições, o representante da Polícia Militar do Estado da Guanabara afirmava que iria “intensificar as batidas nas favelas, realizando-as da ordem de 3 a 4 vezes por semana.” Com isso, a comissão concluiu que as violações cometidas pelo regime nas favelas eram conhecidas pela “alta hierarquia do regime ditatorial” e estavam longe de representar “casos isolados.” Dentre essas violências, amplamente registradas no relatório, estão blitzes, prisões arbitrárias, depredações nas sedes das associações de moradores, invasões a domicílios sem mandados, dentre outras.

Fernandes também relatou como se dava essa presença militarizada do Estado: “dentro dessa comunidade aqui, os caras entravam com olhar de ‘todo mundo é bandido.’ Aquelas rondas, aquelas blitzes dentro do morro, eles entravam com suporte militar, entravam e desciam com a gente amarrado tipo arrastão de peixe, todo mundo amarrado na mesma corda, descendo o morro. E quando dava dez horas da noite onde você estivesse, você tinha que correr da polícia. Se você não corresse… depois de dez horas da noite os caras te prendiam e dependendo, se fosse preso na sexta-feira à noite, só saia na segunda-feira.”

Segundo a CEV-Rio, as motivações da ditadura para reprimir o cotidiano das favelas eram duas. Por um lado, o estigma de que aqueles locais de moradia eram propensos à criminalidade. Por outro, a intensificação do discurso anticomunista, que aprofundava o terror de que “os favelados poderiam atuar como base para uma revolução de caráter comunista.” Nesse contexto, a militarização do Estado, a transformação das Polícias Militares em forças auxiliares do Exército e a garantia da impunidade para os agentes públicos envolvidos em violações de direitos humanos acarretaram em uma ampliação da violência que se voltou contra as populações faveladas.

Em alguns casos, mesmo após a remoção, os moradores não deixaram de sofrer com a violência policial. José Fernandes contou à Comissão que, morando na Cidade Alta, seu temor passou a ser os esquadrões da morte — como a Invernada de Olaria — e a repressão aos bailes black realizados nos subúrbios. “Eu me lembro muito bem que a gente saindo do baile tinha aquela polícia naval que fazia ronda ali,” diz ele, contando como uma vez foi preso na saída de um desses bailes: “correram, saíram atrás da gente, pegaram o nosso grupo. Eu tinha um cabelo que era um black grande, e os caras cortaram nosso cabelo, deixaram a gente careca. Levaram a gente para dentro do quartel, deram um banho de água fria na gente. E ficamos lá até a tarde do outro dia. [Era] final da década de 70, a gente pregava na época o fim da ditadura nos bailes, a igualdade. E o movimento black era discriminado. Diversas vezes, também, nesses bailes, você tinha a presença da PE [Polícia do Exército]. Era perigoso, a gente saía e não sabia se ia voltar, ou se ia entrar em cana, o que ia acontecer.”

A atualidade das violações

Uma das atribuições legais das Comissões da Verdade é a de identificar padrões de violações de direitos e fazer recomendações para evitar sua repetição. Assim, a CEV-Rio dedicou um capítulo de seu Relatório Final às violências de Estado no presente: tanto a violência policial presente no dia a dia dos moradores de favelas quanto as remoções forçadas que ocorrem no Rio de Janeiro dos Megaeventos foram analisadas pelo órgão.

Do ponto de vista das repetições de torturas, desaparecimentos forçados e execuções sumárias, a CEV-Rio foi categórica em afirmar: “a perspectiva militarizada da segurança pública tem como principal problema a compreensão da existência de um inimigo interno potencial, que se torna alvo do aparato bélico.” Este inimigo potencial, segundo a comissão, tem um novo perfil específico: jovens, a maioria negros e pobres, moradores das periferias urbanas e favelas.

Quanto às remoções, a comissão concluiu: “repetindo práticas semelhantes àquelas empreendidas pela ditadura militar, o Estado continua violando o direito à moradia adequada de milhares de cidadãos.” Assim como no passado, o poder público utiliza a força, a violência e métodos não democráticos para abrir espaço em áreas de interesse da especulação imobiliária. Emblemática destas repetições é a história de Altair Guimarães, que hoje é presidente da Associação de Moradores da Vila Autódromo e revive a ameaça da remoção forçada: “Eu não desejava que as crianças dessa comunidade [Vila Autódromo] passassem pelas mesmas coisas que eu passei, mas, infelizmente, não consegui. [No passado] não respeitavam as crianças, não respeitavam os mais velhos e não é diferente hoje. A mesma coisa que acontecia na época da ditadura acontece hoje.”

Para acessar o texto dos historiadores Juliana Oakim e Marco Pestana, clique aqui.

Para acessar a íntegra do Relatório Final da Comissão da Verdade do Rio, clique aqui.


Notas:

  1. Artigo originalmente publicado na RioOnWatch com o título “Relatório da Comissão da Verdade do Rio Denuncia Violência nas Favelas Durante a Ditadura” e retirado, sob a aprovação do autor, Lucas Pedretti, mestre em História Social pela PUC-Rio e doutor em Sociologia pelo IESP-UERJ.
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