Ozzy Osbourne e o lado sombrio da utopia

Vocalista do Black Sabbath, morto neste mês, foi contraponto sombrio à geração de 68, lisérgica e revolucionária. Vindo de cidade fabril, entre fuligem e exploração, viu as trevas do sistema – e percebeu que a profecia de outro futuro convivia com o realismo capitalista das maiorias

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Texto editado a partir da transcrição de vídeo no canal Farol Brasil, produzido e gravado pelo mesmo autor, que pode ser acessado aqui.

Ozzy Osbourne, cofundador do Black Sabbath e um dos maiores frontman da história do rock, já estava muito mal de saúde em decorrência de sua vida pregressa, de um acidente e do avançar do Parkinson. Ozzy faleceu em 22 de julho deste ano, logo após uma emocionante despedida dos palcos no show “Back to the beginning”, dezessete dias antes (5/7) em Birmingham, Inglaterra, no Villa Park, estádio de seu time de coração: o Aston Villa. O show reuniu grandes nomes do rock e do metal — gênero que ajudou a criar –, homenageando a carreira de Ozzy e do Black Sabbath. O show ainda contou com uma apresentação da icônica banda no encerramento — e com a formação original: além de Ozzy, lá estavam Tony Iommi, Bill Ward e Geezer Butler. O Príncipe das Trevas se foi, mas antes se despediu dos seus companheiros, dos seus pupilos e do público, lembrando a todos nós que não iria em silêncio.

Esse momento é de despedida, mas principalmente de rememoração do legado do Black Sabbath. A reinvenção do rock criou um gênero e isso foi possível também porque os integrantes do Sabbath viveram uma espécie de reverso da medalha da esperançosa utopia do maio de 68. A utopia, portanto, não iluminava todos; o músico mostrou que das trevas também havia muita criação surgindo — fundamentalmente, um raio-x negado de um mundo em ebulição. Afinal, a década de 60 foi recheada de acontecimentos potencialmente revolucionários. Diversos artistas, de várias áreas, reproduziam esse espírito crítico do seu tempo. O movimento psicodélico, os Beatles e as músicas de protestos que estavam surgindo expunham não apenas críticas ao mundo que existia, mas a imagem de um mundo melhor, de uma humanidade existencialmente mais humana.

O Black Sabbath foi um antirreflexo desse “espírito do tempo utópico” e esperançoso. Eles eram a escuridão desse movimento; as trevas. O mainstream artístico do maio de 68 era a expressão do sonho revolucionário que fez, através da política e dos ácidos, as pessoas imaginarem um mundo diferente — como a sociedade alternativa da juventude gritando por liberdade, por prazer, por autodeterminação, por experienciar os seus próprios corpos e desejos de maneira livre. 

A psicodelia pintava a luta e o mundo em cores vibrantes, mas essa não era a realidade para todos. Enquanto Paris erguia barricadas, São Francisco, nos Estados Unidos, celebrava o amor das comunidades hippie e movimento Woodstock. Já Londres celebrava pelos ácidos lisérgicos a pulsão crítica. Enquanto isso, numa cidade fabril do interior do Reino Unido, em Birmingham, os moradores estavam mergulhados na pobreza, fome, fumaça, alienação e dificuldades de vida. Surgia, ali, o Black Sabbath.

É dessa treva social que vem a recusa do Black Sabbath em se alinhar ao otimismo hippie e ao espírito utópico do maio de 68. O Sabbath deu voz ao pesadelo da sobrevivência num mundo que estava já em ruínas, mas que a lisergia revolucionária de 68 deixou escapar. Só quem estava à margem podia notar isso e apostar na negação sonora e pesada do otimismo dominante — ainda que longe de qualquer resignação.

A banda foi um sintoma: formada justamente em 1968 por quatro jovens trabalhadores que não se viam nas rebeliões coloridas e conviviam com o concreto, o aço e o medo do trabalho industrial. Birmingham foi o epicentro brutal da industrialização na Inglaterra, marcada pela decadência urbana, pela poluição, pelo desemprego e pela pauperização. Importante para criar a sonoridade do Heavy Metal, a guitarra pesada de Tony Iommi, que perdeu parte dos dedos numa prensa industrial, é uma metáfora literal e crua do que viria a se tornar o som do Black Sabbath. Essa violência do trabalho pesado, cruel e cru, que decepou parte dos dedos de Iommi, o fez reinventar o instrumento, recriando o rock n’ roll.

O som de Black Sabbath não é místico e otimista, mas ocultista e com referências nos filmes de terror, como aparece exemplarmente na música “N.I.B”. Passa ao largo do sonho das grandes cidades. Foi a reverberação da profecia do fim de um mundo que prometia futuro, mas entregava para as maiorias somente a sobrevivência de um trabalho industrial cada vez mais precarizado, como viveram em Birmingham. Portanto, o Black Sabbath é a premonição ocultista do realismo capitalista. Um recado das trevas que dizia: o realismo capitalista já estava ali, como um Lúcifer que nos seduz e nos oferece a mão.

O Black Sabbath apareceu como aquilo que não se encaixava, como um retorno do recalcado, como um anúncio das trevas que preferíamos não ouvir, até então. Foi o avesso do otimismo lisérgico, a expressão de uma estética da violência, do peso da vida em contraponto à leveza psicodélica. A repetição de um vazio cheio de raiva, a repetição de uma melancolia ativa que se fazia presente na esquecida Birmingham. Theodor Adorno vai dizer que a verdadeira arte deve ser um martelo e não um espelho. Era assim o som do Black Sabbath. E esse martelo quebrou as vitrines floridas, mostrando que, ao contrário do “All You Need Is Love” dos Beatles, o que havia era paranoia.

“War Pigs” fez uma dura crítica às guerras e, principalmente, aos ricos por trás delas, denunciando toda lógica pseudo-tecnocrata que envia pobres para morrer por interesses falsos e em prol das elites. “Paranoid” não se trata somente de um delírio individual, mas de um sujeito que olha para o mundo e não consegue ver as coisas que trazem felicidade — num mundo de promessas de felicidade abundantes. Esse sujeito até queria aproveitar a vida, mas já é tarde demais. O Sabbath, na performance lendária de Ozzy, nos ofereceu uma descrição clínica de como o sujeito comum experiencia o paradoxo de uma sociedade fria, sem escuta, violenta, opressiva e dominada pelo capital, mas que nos informa constantemente que podemos ser quem quisermos. Adorno vai justamente dizer que o vínculo que o capitalismo produz entre as pessoas é um vínculo paranoico. “Iron Man”, o corpo transformado em máquina produtiva de destruição humana, ressentida, vingativa, símbolo de uma humanidade deformada pela técnica.

Apesar disso, o Sabbath não é niilista, é profundamente realista. Um realismo sombrio, espectral, que denuncia o mundo e a humanidade que falharam em sua promessa de criar um futuro e, portanto, o futuro colapsou. As referências no oculto visam mostrar justamente de onde eles vieram: das sombras. O nome da banda, que faz referência a um filme de terror italiano de Mario Bava, e as capas com uma espécie de ocultismo demoníaco que aparece em símbolos como crucifixos, não são exatamente um esoterismo escapista como o que era comum no maio de 68. O príncipe das trevas não deu espaços para o escapismo. O ocultismo do Sabbath é uma espécie de metáfora cultural do que foi silenciado pela razão moderna. É o instinto, a natureza, a dor, as promessas vazias. Mas também uma metáfora de um mundo que já vive dominado pelas trevas. A bruxaria, como símbolo recorrente, remete às margens do poder. Corpos que não se adequam, vidas destruídas pela modernidade capitalista, que faz com que as pessoas só consigam viver sob as trevas — mesmo que não as reconheçam.

A escuridão no Black Sabbath não é contra a luz, é a exposição da verdadeira face do que é a vida no capital: trevas, ainda que disfarçadas de outra coisa. E nessas trevas há um príncipe rebelde: Ozzy Osbourne. A dialética do esclarecimento de Adorno e Horkheimer mostra exatamente como as luzes do iluminismo se transformaram em sombras — sombras essas que tenta negar. E o Black Sabbath nasce dessas sombras, dessa negação. Eles fizeram da música não só denúncia, mas um som sombrio, lento, pesado, sintomático. Uma estética que visou expor que as promessas de emancipação revolucionária falharam, ao negarem que nas trevas havia algo a ser ouvido; de que nossa vida é, mesmo que colorida, fracassada.

Sua sonoridade foi uma negação do que existia, uma crítica radical. Uma catarse sombria que revelou a opacidade da crítica. Adorno diz que a arte é negativa ou não é nada. Que a crítica não se faz somente com panfletos, mas com um incômodo estrutural. O Black Sabbath soube fazer isso como ninguém. Foi o som da subjetividade encurralada que se recusou a maquiar a ferida, ocultar a realidade com ácidos ou se entregar à esperança irresponsável de promessas que não se realizaram. A história foi contada pelos vitoriosos e o Sabbath foi o autêntico som dos derrotados, na voz de Ozzy. Não à toa, eles começaram na decadente Birmingham e terminaram em Birmingham. “Back to the beginning”. Voltaram para o começo.

Enquanto maio de 68 ainda reverbera em slogans apropriados pela indústria cultural, o Black Sabbath reverbera como sintoma desse mundo em trevas, que vivemos e que nos negamos a ver. A falência das promessas emancipatórias, a dissonância entre a realidade e o que percebemos dela, uma subjetividade que sangra em sofrimento e em silêncio, mergulhada num hedonismo capitalista bizarro. Em tempos de desesperança, em que é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo, de crises ambientais, sociais, subjetivas, econômicas e políticas, o Sabbath ainda faz sentido. Ozzy ainda é o príncipe das trevas que reina e transita entre mundos com desenvoltura. Eles ainda são um martelo que pode nos revelar algo da realidade, ou ao menos rachar com alguma parede. Afinal, o que diz mais sobre o mundo real? Cantar que o sol virá e que está tudo bem? Ou cantar que vivemos numa paranoia, aterrorizados por um homem de ferro desumanizado e que destrói tudo?

Muito obrigado ao Black Sabbath e adeus ao príncipe das trevas, que disse que não iria em silêncio, sem saber, talvez, que seu grito jamais se silenciará. Descanse e reine, Ozzy Osbourne!

Heribaldo Maia é psicanalista, historiador, mestre em filosofia, professor, comunicador e escritor.

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