Os intelectuais e a ditadura no Brasil

Como o regime se relacionava com a intelectualidade – e a utilizava no governo? De que forma aconteceu a “limpeza ideológica” nas universidades? De tecnocráticos anticomunistas aos que sonhavam ser a nova elite do Brasil, como agiam as duas principais alas alinhadas aos militares?

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Em texto publicado na década de 1970, discutindo a questão dos intelectuais na ditadura, Florestan Fernandes procurava chamar a atenção para a situação concreta em que esses setores viviam naquele contexto. O sociólogo via uma postura equivocada por parte da maioria desses setores. Para Florestan Fernandes, “o intelectual, ainda que universitário e profissional liberal, não surge como uma variante do homem comum. É sua réplica, frequentemente piorada, porque se representa como parte e imune à contaminação do atraso geral”.1

Durante a ditadura iniciada com o golpe de 1964, como em outros momentos da história do Brasil, é possível perceber a atividade de intelectuais que não apenas defendem regimes repressivos ou ataques a liberdades democráticas, como utilizam suas pesquisas e produções teóricas para construir justificativas às ações desses regimes. São exemplos disso intelectuais que colaboram com órgãos como ESG ou que assumiram cargos como interventores em universidades ou mesmo aqueles que ocuparam funções em governos da ditadura, como Flávio Suplicy de Lacerda, Raymundo Moniz de Aragão, Mário Henrique Simonsen, entre outros. Na UFSC, esse debate foi recentemente reacendido por conta da proposta de mudança de nome do campus, que homenageia David José Ferreira, reitor que não apenas apoiou a ditadura como auxiliou o regime na perseguição contra colegas de universidade. Florestan Fernandes afirmava que a ditadura encontrou “um apoio cada vez mais amplo, ao invés de oposição, por parte dos intelectuais”.2

Os golpistas de 1964 encontraram uma estrutura técnica consolidada por governos anteriores, ampliando as funções estatais de organização e controle social, na qual os intelectuais poderiam explorar uma esfera administrativa baseada na ideia de eficiência técnica. Esses segmentos enfatizavam o gerenciamento científico, a administração pública normativa e a formalização e rotinização de tarefas. O processo de desenvolvimento dessa burocracia se consolidou no governo de Juscelino Kubitschek. Nesse período,

“[…] a rede tecno-burocrática de influência dentro do aparelho estatal era formada pelas camadas mais altas da administração pública e pelos técnicos pertencentes a agências e empresas estatais, os quais tinham ligações operacionais e interesses dentro do bloco de poder multinacional e associado. Esses executivos estatais asseguravam os canais de formulação de diretrizes políticas e de tomadas de decisão necessários aos interesses multinacionais e associados, organizando a opinião pública. Eles aplicaram a racionalidade capitalista da empresa privada às soluções dos problemas socioeconômicos nacionais, proporcionando a contrapartida pública do macro-marketing empresarial sob a forma de um planejamento limitado e recomendações técnicas”.3

Observa-se nesse processo a integração de uma parcela de intelectuais ao Estado, sob a retórica de que sua atuação se daria a partir do conhecimento científico, de forma neutra e com vistas a uma melhoria das condições da sociedade. Essa estrutura foi fundamental para a ditadura, na medida em que imbricava o desenvolvimento econômico, a estruturação da gestão estatal e a formulação ideológica. Segundo Octávio Ianni,

“[…] economistas, administradores, engenheiros, estatísticos, educadores, sociólogos, jornalistas e outros, muitos foram os especialistas civis e militares convocados para operar e ‘modernizar’ a organização e o funcionamento do aparelho estatal. Tratava-se de substituir o ‘político’ pelo ‘técnico’, a ‘demagogia’ pela ‘ciência’, o ‘carisma’ pela “eficácia”. Ao mesmo tempo que constituía o seu intelectual orgânico, ela [a ditadura] desenvolvia também as bases da ideologia desse intelectual”.4

O desenvolvimento dessa ideologia estava marcado pelo conservadorismo e pelo anticomunismo. O anticomunismo, que impregnou setores da sociedade durante a ditadura, se baseava na mistura de símbolos religiosos que se remetiam a demônios e pecados com uma retórica nacionalista e de defesa da propriedade. O conservadorismo difundido pelos ditadores pretendia transformar o Brasil em uma “potência média” integrada ao bloco econômico e político liderado pelos Estados Unidos, desenvolvendo o capitalismo de forma integrada ao imperialismo e, ao mesmo tempo, defendendo a “moral” e os “bons costumes” cristãos. Sabe-se que

“[…] o propósito modernizador se concentrava na perspectiva econômica e administrativa, com vistas ao crescimento, à aceleração da industrialização e à melhoria da máquina estatal. Já o projeto autoritário-conservador se pautava em manter os segmentos subalternos excluídos, especialmente como atores políticos, bem como em combater as ideias e os agentes da esquerda – por vezes, qualquer tipo de vanguarda – nos campos da política e da cultura, defendendo valores tradicionais como pátria, família e religião, incluindo a moral cristã”.5

Essa faceta de modernização econômica não parecia se mostrar contraditória com as ideias desenvolvidas por setores que defendiam os valores “tradicionais”. Observa-se que

“[…] esses setores, geralmente representados por religiosos, intelectuais conservadores e militares, não se contentavam tão somente com o expurgo da esquerda revolucionária e da corrupção. Eles desejavam aproveitar o momento para impor uma agenda conservadora mais ampla, que contemplasse a luta contra comportamentos morais desviantes, a imposição de censura e a adoção de medidas para fortalecer os valores caros à tradição, sobretudo pátria e religião”.6

Essa complexa articulação de ideias exigiu da intelectualidade que apoiava o regime a tentativa de construção de justificativas e explicações. Diante do golpe e da ameaça ditatorial, esses intelectuais se mostravam identificados com o pânico e o medo propagado pelos setores que realizaram ou apoiaram a ação dos militares em 1964. O sociólogo aponta para “conexões estruturais e dinâmicas existentes”, as quais mostram que

“[…] as posições e papéis intelectuais acham-se ramificadas através do status privilegiados das classes alta e média. Em consequência, os intelectuais ficam permanentemente expostos a interesses, a ideologias e a valores que, por sua própria natureza, são intrinsecamente conservadores, no sentido de que fazem parte do horizonte cultural conservantista dos setores dominantes das classes alta e média”.7

Essa convergência entre intelectuais e ideias conservadoras não se manifestou apenas em espaços dos próprios militares, como a Escola Superior de Guerra (ESG), mas também nas universidades, onde, além da perseguição a uma parcela de intelectuais, muitos de seus trabalhadores auxiliaram na manutenção da ditadura, seja por meio do silêncio, seja pela colaboração direta com o regime. Nessa relação dos intelectuais com a ditadura percebe-se uma conivência moldada por diferentes fatores. Os intelectuais “careciam de meios de absorção de suas frustrações”, sendo “sobrecarregados com expectativas de controle e de ação conflitantes, impostas pela ditadura militar ou pelos grupos radicais e por si próprios”.8 Para os intelectuais, essa situação criava “uma tempestade de fricções, desilusões e desorientação moral”.9

Um dos acontecimentos mais destacados da ditadura em relação aos intelectuais passa por uma lista de demissões decretadas pelo governo ditatorial, por força do AI-5, em abril de 1969. Essa lista incluía intelectuais como Bolivar Lamonier, Caio Prado, Emília Viotti, Fernando Henrique Cardoso, Florestan Fernandes, Jean Claude Bernadet, Maria Yedda Linhares, Octávio Ianni e dezenas de outros nomes, associados a posições políticas e ideológicas variadas, entre liberais, comunistas e socialistas. Essa “limpeza ideológica” realizada pela ditadura “levou ao bloqueio da livre circulação de ideias e de textos, e à instalação de mecanismos para vigiar a comunidade universitária”.10

Muitos dos intelectuais perseguidos pelo regime se exilaram, encontrando novas colocações profissionais em importantes universidades em outros países, e, em muitos casos, se engajando em lutas organizadas em âmbito internacional contra a ditadura no Brasil. Contudo, outra parcela da intelectualidade optou ou pelo silêncio ou pela colaboração com o regime repressivo, sendo possível apontar que, “dentro dos muros universitários, alguns docentes conservadores apoiaram a pauta repressiva na íntegra a fim de se livrar de adversários e concorrentes internos”.11 O governo ditatorial

“[…] lançou mão de estratégias de cooptação, e vários agentes demonstraram flexibilidade em relação a normas e valores dominantes, com tendência a tangenciar os preceitos legais e confiar mais na autoridade pessoal, nos laços sociais e em arranjos informais. Essas práticas permitiram ao Estado contar com o talento de profissionais provenientes de campo ideológico adversário, mas também propiciaram o amortecimento da repressão, com base na mobilização de fidelidades pessoais e compromissos informais”.12

Essa situação política impactou no trabalho realizado pelos intelectuais, na medida em que instituições onde atuavam “foram usadas em proveito dos interesses escusos predominantes, para apoiar tanto os golpes de Estado militares, quanto a militarização do poder político”.13 Para muitos intelectuais, a produção acadêmica foi “considerada como um meio honorífico de se obter bons salários e prestígio, em contraposição à pesquisa empenhada no avanço do conhecimento original”.14 Esses intelectuais que mantiveram espaços institucionais aprofundaram sua atuação como técnicos de Estado. Com isso,

“[…] o fluxo da cooperação intelectual, leal e entusiasta ou fria e calculada, ultrapassou todas as expectativas (e mesmo as probabilidades existentes de absorção útil). Alguns atritos surgiram, destruindo a ilusão de que a restauração da ordem envolveria rápido restabelecimento do controle civil do poder político, e provocando o retraimento dos intelectuais que fizeram o papel de inocentes úteis ou de aliados perigosos. Mas, a massa dos intelectuais conservadores (liberais e neutros) mostrou uma grande tolerância, proclamando sua fé na ordem revolucionária”.15

Os eventuais atritos entre essa intelectualidade e a ditadura podem ter relação, entre outros fatores, com a postura dos militares de atuarem, eles próprios, como intelectuais, por meio da atuação junto a suas próprias escolas de formação. Civis fizeram parte dessa rede de formação, por meio, entre outras formas, da Associação de Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG), mostrando uma postura de aproximação de gestores públicos e intelectuais com os militares.

Embora houvesse esses atritos, na ditadura se abria oportunidades para os intelectuais ditos de “mentalidade aberta” e “tolerantes”.16 Embora perdessem “o sentido de dignidade, inerente à posição do intelectual na sociedade”, ganhavam “poder vivo”, enquanto “lacaios do poder político-militar institucionalizado”.17

Entre esses intelectuais é possível identificar dois setores, um dos quais eram os que se diziam “revolucionários”, ou seja, aqueles “identificados com os golpes de Estado e com a militarização do poder político”.18 O outro grupo eram os técnicos e cientistas “envolvidos na tecnocratização do poder político-militar”, que se viam como uma “elite cultural” que estaria “emergindo com e através do regime autoritário militar”.19 Este segundo grupo procurava construir “mais do que as estruturas políticas da ditadura militar”, mas sim “o tipo de economia, de sociedade e de Estado” dentro dos quais pudessem se constituir, “sob o capitalismo industrial dependente, uma poderosa elite cultural”.20

A relação com o regime ditatorial por parte desses dois grupos de intelectuais aponta para a postura de “adesão” e de “acomodação”. Esses termos mostram um quadro em que “muitos agentes não resistiram nem aderiram, mas buscaram formas de acomodação e convivência com o sistema autoritário”.21 Esses intelectuais estavam permanentemente expostos a interesses, a ideologias e a valores que, por sua própria natureza, eram intrinsecamente conservadores, compartilhando do horizonte cultural das classes dominantes. Naquele contexto,

“[…] o desejo modernizador implicava desenvolvimento econômico e tecnológico, além de expansão industrial e mecanização agrícola, o que levava ao crescimento da urbanização e do operariado fabril, gerando potenciais tensões e instabilidade nas relações sociais e de trabalho. Já o impulso conservador estava ligado à vontade de preservar a ordem social e os valores tradicionais, e por isso combater as utopias revolucionárias e todas as formas de subversão e “desvio”, incluindo questionamentos à moral e aos comportamentos convencionais”.22

O engajamento desses intelectuais tinha como limites a preservação do status quo, com vistas à manutenção da estabilidade política e social. O processo de integração dessa intelectualidade se explica, por um lado, pelas condições materiais, na medida em que se observa a integração de quadros técnicos à burocracia estatal, e, por outro, por fatores políticos e ideológicos. Esses elementos fizeram com que uma parcela da intelectualidade constituísse afinidades com o regime ditatorial.

Essa intelectualidade cumpriu papel central na sustentação política e ideológica do regime e na defesa dos interesses econômicos defendidos pelos ditadores. No presente, como parte dos embates pela memória e pela história, o legado deixado por esses intelectuais conservadores é utilizado para justificar tanto a modernização baseada no aprofundamento da exploração dos trabalhadores como as ações políticas e econômicas que levaram à opressão e a à perseguição dos trabalhadores no período.


Notas:

1 FERNANDES, Florestan. Universidade brasileira: reforma ou revolução? São Paulo: Expressão Popular, 2020, p. 51.

2 FERNANDES, Florestan. Circuito fechado: quatro ensaios sobre o poder institucional. São Paulo: Globo, 2010, p. 172.

3 DREIFUSS, René Armand. 1964: a conquista do estado. 5ª ed. Petrópolis: Vozes, 1987, p. 73.

4 IANNI, Octávio. A ditadura do grande capital. São Paulo: Expressão Popular, 2019, p. 63.

5 MOTTA, Rodrigo Patto Sá. As universidades e o regime militar: cultura política brasileira e modernização autoritária. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2014, p. 15.

6 MOTTA, Rodrigo Patto Sá. As universidades e o regime militar: cultura política brasileira e modernização autoritária. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2014, p. 16.

7 FERNANDES, Florestan. Circuito fechado: quatro ensaios sobre o poder institucional. São Paulo: Globo, 2010, p. 174.

8 FERNANDES, Florestan. Circuito fechado: quatro ensaios sobre o poder institucional. São Paulo: Globo, 2010, p. 189.

9 FERNANDES, Florestan. Circuito fechado: quatro ensaios sobre o poder institucional. São Paulo: Globo, 2010, p. 189.

10 MOTTA, Rodrigo Patto Sá. As universidades e o regime militar: cultura política brasileira e modernização autoritária. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2014, p. 8.

11 MOTTA, Rodrigo Patto Sá. As universidades e o regime militar: cultura política brasileira e modernização autoritária. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2014, p. 394.

12 MOTTA, Rodrigo Patto Sá. As universidades e o regime militar: cultura política brasileira e modernização autoritária. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2014, p. 17.

13 FERNANDES, Florestan. Circuito fechado: quatro ensaios sobre o poder institucional. São Paulo: Globo, 2010, p. 177.

14 FERNANDES, Florestan. Circuito fechado: quatro ensaios sobre o poder institucional. São Paulo: Globo, 2010, p. 177.

15 FERNANDES, Florestan. Circuito fechado: quatro ensaios sobre o poder institucional. São Paulo: Globo, 2010, p. 179.

16 FERNANDES, Florestan. Circuito fechado: quatro ensaios sobre o poder institucional. São Paulo: Globo, 2010, p. 180.

17 FERNANDES, Florestan. Circuito fechado: quatro ensaios sobre o poder institucional. São Paulo: Globo, 2010, p. 180.

18 FERNANDES, Florestan. Circuito fechado: quatro ensaios sobre o poder institucional. São Paulo: Globo, 2010, p. 180.

19 FERNANDES, Florestan. Circuito fechado: quatro ensaios sobre o poder institucional. São Paulo: Globo, 2010, p. 180.

20 FERNANDES, Florestan. Circuito fechado: quatro ensaios sobre o poder institucional. São Paulo: Globo, 2010, p. 181.

21 MOTTA, Rodrigo Patto Sá. As universidades e o regime militar: cultura política brasileira e modernização autoritária. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2014, p. 301.

22 MOTTA, Rodrigo Patto Sá. As universidades e o regime militar: cultura política brasileira e modernização autoritária. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2014, p. 289.

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