O que alguns marxistas nos dizem sobre as drogas?
Marx ligou o proibicionismo à expansão colonial – e Gramsci, à tentativa de extração máxima da força de trabalho. Mas Engels apontou como o álcool pode degradar diante da exploração. E Trotsky acreditava na política antialcoólica como necessária para a revolução…
Publicado 12/08/2025 às 18:16 - Atualizado 12/08/2025 às 18:17

O debate sobre as drogas normalmente gera polêmicas e controvérsias. O marxismo, enquanto método de análise, permite apontar alguns caminhos para compreender esse fenômeno social. Uma análise marxista aponta para as contradições que permeiam esse debate e como ele deve estar embasado não em opiniões que visam uma propaganda política, mas a compreensão da realidade histórica e social que permeia a questão.
Entre os clássicos do marxismo, não há um grande acúmulo acerca da política de drogas, se resumindo a alguns comentários esparsos, geralmente acerca da situação de alcoolismo dos trabalhadores. O debate acerca da descriminalização e da legalização é pouco presente entre os autores marxistas clássicos, na medida em que no período em que viveram “praticamente nenhuma droga, de uso medicamentoso ou não, era sequer objeto de controle, quanto mais de criminalização”.1 Em Marx, além da rápida menção em O capital de algumas drogas como mercadorias, em outro texto encontra-se uma passagem bastante conhecida acerca da China, escrita em setembro de 1858:
“A fuga constante da prata causada pelas importações de ópio tinha começado a afetar o Tesouro público e a circulação monetária do Império do Sol. Hsu Naichi, um homem de estado chinês dos mais distintos, propôs a legalização do comércio de ópio para fazer dinheiro com isso; mas, depois de grande discussão, na qual participaram todos os altos funcionários do império e que se estendeu por um período de mais de um ano, o Governo chinês decidiu que, ‘por causa dos males que infligia ao povo, o tráfico nefasto não deveria ser legalizado’”.2
Essa passagem parece ter um caráter muito mais de crônica do que de análise. Pouco à frente, no mesmo texto, demonstrando uma possível simpatia com a política de descriminalização, Marx afirma: “perseguindo o consumo do ópio como uma heresia, o imperador deu a esse tráfico todas as vantagens de uma propaganda religiosa”.3 Contudo, essas passagens acabam tendo muito mais um caráter de crônica acerca das relações mercantis estabelecidas pela China do que uma análise da situação das drogas na sociedade.
Possivelmente, o primeiro estudo marxista que discute com mais densidade o impacto das drogas na sociedade é a obra de Friedrich Engels, A situação da classe trabalhadora da Inglaterra, publicada em 1844. Nessa obra, Engels mostra o processo de exploração do proletariado no início do modo de produção capitalista na Inglaterra, analisando as condições gerais de vida dos trabalhadores, desde a situação de moradia e de alimentação até seu estado físico e mental e o impacto do alcoolismo. Conforme procura demonstrar,
“[…] a dependência se converteu em um fenômeno social desde o começo do capitalismo. O nascimento desse fenômeno está estreitamente ligado com a revolução industrial, o começo da ciência e as migrações massivas de camponeses para as cidades, assim como o processo de proletarização que o acompanhou”.4
Engels, nesta obra, analisou e discutiu o problema do abuso do álcool entre os operários, entendido como forma de consolo e lazer, diante da necessidade de suportar a desumanização causada pelo seu próprio trabalho. Engels chamava a atenção para a questão do alcoolismo, relacionando isso à situação a que estavam submetidos os trabalhadores:
“Todas as ilusões e tentações se juntam para induzir os trabalhadores ao alcoolismo. A aguardente é para eles a única fonte de prazer e tudo concorre para que a tenham à mão. O trabalhador retorna à casa fatigado e exausto; encontra uma habitação sem nenhuma comodidade, úmida, desagradável e suja; tem a urgente necessidade de distrair-se; precisa de qualquer coisa que faça seu trabalho valer a pena, que torne suportável a perspectiva do amargo dia seguinte. Fica acabrunhado, insatisfeito, sente-se mal, é levado à hipocondria; esse estado de ânimo se deve principalmente às suas más condições de saúde, à sua má alimentação e é exacerbado até o intolerável pela incerteza de sua existência, pela absoluta dependência do acaso e por sua incapacidade de pessoalmente fazer algo para dar alguma segurança à sua vida. Seu corpo enfraquecido pela atmosfera insalubre e pela má alimentação requer imperiosamente um estimulante externo; a necessidade de companhia só pode ser satisfeita numa taberna, porque não há nenhum outro lugar para encontrar os amigos”.5
Engels, portanto, compreende a questão das drogas como um problema social, relacionado às condições objetivas vividas pelas pessoas, e não uma questão individual. Segundo Engels,
“[…] nesse caso, o alcoolismo deixa de ser um vício de responsabilidade individual; torna-se um fenômeno, uma consequência necessária e inelutável de determinadas circunstâncias que agem sobre um sujeito que — pelo menos no que diz respeito a elas — não possui vontade própria, que se tornou — diante delas — um objeto; aqui, a responsabilidade cabe aos que fizeram do trabalhador um simples objeto”.6
Para Engels, o consumo de drogas, em grande medida, está associado às condições materiais da existência, podendo-se afirmar que “o uso de substâncias expressa a necessidade interna de escapar da irrefreável pressão de uma realidade pessoal e social que o viciado não pode tolerar”.7 Cabe destacar, de forma complementar, que:
“[…] esse cenário fica ainda mais complexo na atualidade, diante da massificação e da diversificação dos tipos de drogas. O uso recreativo se consolidou como uma resposta do indivíduo diante dos problemas e dificuldades a que está submetido, fazendo uso dessas substâncias com vistas ao relaxamento ou à distração”.8
No período vivenciado por Marx e Engels, o capitalismo ainda vivia seu período de expansão e crescimento. Contudo, no final do século XIX, a expansão do capital financeiro e a consolidação dos monopólios colocaram em cena o desenvolvimento do imperialismo, marcado pela exportação de capitais. Nesse cenário, as drogas e mesmo o proibicionismo deixam de ser um problema local e mesmo pontual, como observado por Marx e Engels, e se colocaram como um componente na expansão imperialista. Sabe-se que “a proibição mundial das drogas foi uma das invenções imperialistas que mais permitiu especulação financeira e policiamento repressivo das populações no século XX”.9
No começo do século XX, os revolucionários russos vivenciaram a Lei Seca decretada pelo czar, em 31 de julho de 1914. O decreto baniu a criação e a venda de álcool na Rússia, originalmente devido à entrada na Primeira Guerra Mundial. Posteriormente, o direito de banir o álcool foi entregue pelo governo central às autoridades locais, fazendo com que, em algumas cidades, fosse permitida a venda de vinho e cerveja, embora a de vodca tenha permanecido banida. Depois da Revolução de Outubro, o banimento de álcool permaneceu em vigor, sendo a proibição abolida em 1925. Posteriormente, em maio de 1935, foi emitido um novo decreto, com o título “Sobre a intensificação da luta contra embriaguez e alcoolismo e a erradicação da fabricação de vodca artesanal”, que daria início a uma ampla campanha antialcoólica.
Esse é o cenário em que Trotsky discutiu a questão do alcoolismo, ainda no começo da década de 1920. Segundo Trotsky, somente depois da conquista do poder pelos trabalhadores “que a luta do governo contra o alcoolismo, luta ao mesmo tempo cultural, educativa e coerciva, adquire toda a significação histórica”.10 Para Trotsky, o fato de a interdição da venda ter sido justificada pela guerra imperialista não “modifica o fato fundamental de que a liquidação do alcoolismo vem acrescentar-se ao inventário das conquistas da revolução”.11 Trotsky aponta como tarefas “desenvolver, reforçar, organizar, conduzir com êxito uma política antialcoólica no país do trabalho renascente”.12
Na década de 1930, o militante comunista italiano Antonio Gramsci discutiu a questão das drogas a partir de outra perspectiva. Em sua análise do fordismo, aponta a exigência feita pela vida industrial de que o trabalhador apresente determinadas características psicofísicas, adaptadas a condições de trabalho específicas, referentes a condições de “nutrição, de habitação, de costumes etc.”.13 Um dos aspectos desse processo analisado por Gramsci está intrinsecamente ligado ao proibicionismo, cujo objetivo passa por controlar a vida íntima dos operários e impor certa moralidade enquanto necessidades do método racionalizado da produção e do trabalho. Para tanto, por um lado, seria necessária a construção de uma “nova ética sexual”, impondo uma “rígida disciplina dos instintos sexuais” pela regulamentação e estabilidade das relações sociais por meio do fortalecimento da família.14 Por outro lado, entrou em pauta o combate contra o uso do álcool, que passou a ser entendido pelos capitalistas como “o mais perigoso agente de destruição das forças de trabalho”.15 Nesse sentido, na interpretação acerca do fordismo feita por Gramsci, a racionalização e o proibicionismo teriam por objetivo “manter a continuidade de eficiência física do trabalhador, de sua eficiência muscular-nervosa”.16
Contudo, deve-se destacar que essas percepções acerca do problema das drogas, em sua manifestação concreta no debate do álcool, são expressão de momentos bastante distintos. Marx, discutindo um caso bem específico, procurou mostrar a relação entre drogas e a expansão colonial em torno da Ásia. Engels, por sua vez, analisou a degradação da classe operária diante da exploração capitalista. Para Trotsky, que defendia a proibição no seu contexto específico, estava em jogo a concretização de políticas que pudessem levar à construção do socialismo. Desse modo, o governo soviético acabou elegendo o álcool como um inimigo a ser combatido, na medida em que poderia afetar a vida dos trabalhadores. Gramsci, por sua vez, denunciava a postura dos capitalistas no sentido de obter uma maior produtividade na exploração do trabalho, mostrando de que forma a burguesia acaba por utilizar o proibicionismo para ter trabalhadores que alcancem o máximo de desempenho psicofísico nas atividades laborais.
Portanto, não existe entre autores clássicos do marxismo uma posição única acerca da questão das drogas, mas respostas pontuais a problemas que se colocaram em suas elaborações. Contudo, parece haver um relativo consenso sobre o papel deletério que podem ter as drogas sobre a classe trabalhadora, ainda que isso não signifique que defendam em qualquer situação uma política de proibição por parte do Estado.
O marxismo não pode fechar uma posição política em torno dessa questão, mas ser utilizado como método para analisar as contradições que permeiam a sociedade e os impactos do capitalismo sobre esse processo. Nas posições desenvolvidas atualmente em torno do tema, inclusive entre os setores que se reivindicam marxistas, estão presentes muitos elementos subjetivos ou mesmo morais que se sobrepõem à investigação da realidade. O fenômeno, com todas as suas contradições, não pode ser resumido a uma disputa entre favorável e contrário, mas entendido em sua complexidade e as políticas públicas a ele relacionadas devem ser pensadas a partir da sua historicidade e de suas determinações econômicas, políticas e culturais.
Notas
1 DELMANTO, Júlio. Camaradas caretas: drogas e esquerda no Brasil. São Paulo: Alameda, 2015, p. 82.
2 MARX, Karl. El comercio del opio. In. MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. Acerca del colonialismo. Moscou: Progresso,1981, p. 107-8.
3 MARX, Karl. El comercio del opio. In. MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. Acerca del colonialismo. Moscou: Progresso,1981, p 108.
4 MATSAS, Katerina. La dialéctica de la dependencia y la libertad. Em Defensa del Marxismo, nº 24, 1999, p. 11.
5 ENGELS, Friedrich. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. São Paulo: Boitempo, 2008, p. 142.
6 ENGELS, Friedrich. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. São Paulo: Boitempo, 2008, p. 142-3.
7 MATSAS, Katerina. La dialéctica de la dependencia y la libertad. Em Defensa del Marxismo, nº 24, 1999, p. 14.
8 SILVA, Michel Goulart da. “Notas sobre a saúde mental no capitalismo”. Boletim de Conjuntura (BOCA), nº 37, 2023, p. 49.
9 CARNEIRO, Henrique. As necessidades humanas e o proibicionismo das drogas no século XX. Outubro, n. 6, p. 115-28, 2002, p. 128.
10 TROTSKY, Leon. Questões do modo de vida. São Paulo: Sunderman, 2009, p. 34-5.
11 TROTSKY, Leon. Questões do modo de vida. São Paulo: Sunderman, 2009, p. 45.
12 TROTSKY, Leon. Questões do modo de vida. São Paulo: Sunderman, 2009, p. 45.
13 GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, vol. 4, p. 251.
14 GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, vol. 4, p. 269.
15 GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, vol. 4, p. 267.
16 GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, vol. 4, p. 266.
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