O legado de Patrícia Acioli
Há treze anos, era assassinada com 21 tiros a juíza que, movida pela confiança numa ordem social justa, não teve medo de enfrentar as milícias. Na próxima semana, inaugura-se na UFRJ uma cátedra que buscará manter vivas sua trajetória, seu desejo de futuro e sua luta
Publicado 09/08/2024 às 13:26
Em 11 de agosto de 2011, aos 47 anos, a juíza Patrícia Acioli pagou com a própria vida a ousadia de honrar sua função, enfrentando a violência policial e o poder tirânico das milícias. Foi assassinada com 21 tiros por policiais militares do 7º BPM (Sã Gonçalo), na porta de sua casa, em Piratininga, Niterói, Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Patricia era titular da 4ª Vara Criminal de São Gonçalo e enfrentava com uma coragem extraordinária grupos de extermínio formados por PMs do 7º BPM, que forjavam autos de resistência para legitimar suas execuções. Numa triste ironia do destino, triste e perversa como a história das iniquidades brasileiras, 11 de agosto também é lembrado pela criação dos cursos jurídicos no Brasil. Patrícia foi morta no Dia da Justiça.
No dia 12 de agosto de 2024, será inaugurada a Cátedra Patricia Acioli, no Colégio Brasileiro de Altos Estudos da UFRJ, um espaço de pesquisa interdisciplinar sobre ética, justiça e segurança pública, cujo propósito será manter vivo seu legado e colaborar para a construção de diálogos sem fronteiras sobre caminhos para mudanças1. Mais uma coincidência: 12 de agosto é o Dia Nacional dos Direitos Humanos, instituído em 2012, em homenagem à líder sindical Margarida Maria Alves, também morta na porta de casa com um tiro no rosto, na presença de seu marido e do filho de oito anos. O fato de ambas serem mulheres não é arbitrário: a misoginia é uma das principais fontes da violência nas sociedades patriarcais.
Em 2011, no calor da hora, escrevi com o então senador Lindbergh Faria um pronunciamento, que reproduzo, abaixo, e o complemento, na sequência:
Estamos desolados com o assassinato brutal e covarde da juíza Patrícia Acioli. Vinte e um tiros a atingiram em frente à sua casa. Seus filhos, entrando na adolescência, ouviram as rajadas e jamais esquecerão. E nós? Ouvimos? Ouvimos os 21 ecos do ponto final imposto a uma história de vida exemplar? E nós? Esqueceremos?
Acreditamos que seja nosso dever ouvir esses 21 tiros, escutar o que eles nos dizem. Escutar sob cada um dos 21 estampidos, a voz de Patrícia, a voz da mulher de fibra que não emudecerá.
Para construir um país é preciso olhar para a frente e acreditar, confiar, não perder a esperança. Essa tese nos foi suscitada pela juventude de Patrícia, uma heroína precoce. Tudo em sua biografia remete ao futuro: ela era movida pela confiança, que se alimentava antes na esperança do que no diagnóstico realista do presente. A juíza Patrícia demonstrou até o fim plena confiança na possibilidade de construção de uma ordem social justa, que lhe permitisse transitar sozinha, dirigindo seu próprio automóvel, em segurança. Ela vivia esse futuro desejado para antecipá-lo, tornando-o real em suas ações.
Olhar para a frente confiando não pode ser apenas um ato de vontade sem lastro no passado, sem base de sustentação aos passos em direção ao futuro. Isso vale para os indivíduos e as sociedades. Para construir o futuro, é necessário olhar o passado nos olhos, ainda que o preço a pagar seja doloroso. A juíza Patrícia Acioli, mesmo sendo reconhecida pela compaixão, sabia ser rigorosa na cobrança de responsabilidades. Para ela, assim como para o ex-presidente Nelson Mandela e o reverendo Desmond Tutu: verdade e reconciliação são as pedras de toque de uma transição democrática completa e consistente. Faltando uma delas, o edifício desmorona.
Patrícia Acioli era de uma geração que chegou à vida adulta e ingressou no mundo profissional quando a Constituição de 1988 estava sendo elaborada e promulgada. Enquanto operadora do Direito, defensora pública e depois juíza criminal, ela era filha da Constituição. Beneficou-se das conquistas democráticas, às quais sempre foi fiel em sua prática institucional. Sua vida como juíza não pode ser contemplada senão nos marcos dessa moldura. O Estado democrático de direito foi a segunda natureza de sua história profissional, a essência de seu compromisso com a carreira jurídica, o fundamento e o horizonte normativo e valorativo de seu engajamento. Mais uma lição: a democracia não é uma acomodação oportunista provisória ou um movimento tático, mas um engajamento estratégico, permanente, existencial e profissional, ético e político.
Deduzimos outro ensinamento implícito da juíza Patrícia Acioli, ao contrastarmos sua valorização das leis e da institucionalidade jurídica com sua vigorosa insatisfação, manifestada na luta incansável e corajosa contra a brutalidade policial, contra a violência do Estado, e também traduzida em sua dedicação às causas dos mais pobres, daqueles que são mais vulneráveis a injustiças: a desigualdade no acesso à Justiça é uma das mais infames manifestações da desigualdade, em nossa sociedade. Combatê-la é dever de todo (e toda) democrata.
Nenhum país moderno, das dimensões e da complexidade do Brasil, está imune à violência policial, muito menos à infestação por máfias e outras formas de crime organizado. Por que, então, estabelecer conexões entre episódios criminosos e as condições em que se realizou a transição democrática brasileira? Houve 8.708 autos de resistência entre 2003 e 2010, no Estado do Rio de Janeiro. Portanto, 8.708 pessoas foram mortas pelas polícias (entre 2003 e 2023, seriam 21.662). Não se sabe quantas foram sumariamente executadas, mas os pesquisadores suspeitam que a maioria. Por fim, 21 tiros no tórax e na face da juíza: a assinatura corriqueira de milícias e grupos de extermínio vangloriando-se da impunidade.
Há outro aspecto importante que distingue a situação de nosso país, face à violência policial verificada em outros países: a indiferença do poder público à traição de que é vítima, quando seus agentes cometem crimes contra a cidadania. De novo, é a performance pública da juíza Patrícia que nos ensina: a insistência com que ela, em suas sentenças e em suas atitudes, conclamava as autoridades a assumirem suas responsabilidades diante do descalabro, diante do descontrole das polícias.
Patrícia Acioli nos conduz a duas grandes interrogações: qual a raiz histórica dessa assombrosa realidade, em que vemos estratos do Estado inteiramente descolados do discurso oficial, da norma legal, do compromisso constitucionalmente atribuído às instituições? E por que essa realidade assombrosa, mesmo tendo atravessado praticamente incólume o período das reformas institucionais, persiste, atualmente, em um Brasil tão profundamente diferente?
A persistência de Patrícia, que resistia, chocando-se contra a insistência das instituições policiais em preservar padrões comportamentais, cognitivos e valorativos herdados do passado autoritário, gera um atrito e suscita uma tese: essa herança brutal, que remonta à escravidão, passou incólume pelas mudanças provocadas pela transição democrática. Certamente, a cultura profissional de que falamos não nasceu na ditadura, mas deve a ela sua qualificação, no sentido negativo da palavra. O regime oriundo do golpe de 1964 absorveu acriticamente, e modernizou, o pior de nossas tradições autoritárias, racistas e violentas, que jamais haviam sido, na esfera policial, confrontadas diretamente, mesmo na democracia de 1945.
Outro aspecto importante da antiga cultura policial é que alguns procedimentos arcaicos perduram porque são parcialmente compatíveis com determinadas expectativas e com certos valores de alguns setores da sociedade.
As duas respostas (a raiz histórica e a funcionalidade parcial) se complementam e, superpostas, conduzem a mais uma tese: a transição política brasileira, ao excluir qualquer procedimento que valorizasse a restauração da verdade, relativamente aos crimes do Estado, fundou o pacto de reconstrução unilateralmente na reconciliação, submetendo a memória dos fatos dolorosos ao regime da negação. A pura e simples negação equivale ao recalque e enseja a continuidade destrutiva da experiência traumática, o que vale para vítimas e algozes. O regime da negação afetou a cultura cívica, produziu efeitos sobre a cultura política e se estendeu para o conjunto do aparato repressivo da ditadura, alcançando, portanto, a problemática das polícias e das respectivas culturas institucionais.
Não desconstituir moralmente os crimes do passado em um ritual de passagem, política e simbolicamente poderoso, implicou também não questionar com radicalidade moral os procedimentos policiais padrão. Tudo se agrava quando se tem presente que tais procedimentos, consagrados e modernizados pela ditadura de 1964, a antecederam – ou seja, estão profundamente arraigados.
A comissão da verdade que será –esperamos– constituída em breve deverá desempenhar não só um papel decisivo no que diz respeito ao restabelecimento da história real do Brasil, como também um papel estratégico para nosso futuro. A comissão da verdade poderá assumir o compromisso de inundar o Estado com o espírito e a convicção de que “nunca mais” nosso país vai tolerar o intolerável, resignar-se a conviver com o inaceitável. Nunca mais! Nunca mais, a barbárie. Foi esse o brado que ecoou na voz da juíza Patrícia Acioli, em cada um de seus atos: “nunca mais”. Torturas, execuções extra-judiciais, grupos de extermínio, crimes perpetrados por agentes do Estado sob a cobertura da pusilanimidade: “nunca mais”.
Se os policiais brasileiros são desvalorizados, profissionalmente, se recebem salários indignos e formação inadequada, se trabalham em condições precárias e arriscadas, se atuam em estruturas organizacionais que inibem em vez de potencializar suas capacidades, temos de lhes oferecer alternativas e perspectivas de mudança. Entretanto, nada justifica que adiemos o confronto com essa questão dolorosa: o ovo da serpente tem de ser extirpado em benefício da sociedade brasileira, do Estado democrático de direito, da segurança pública, do respeito aos direitos e às liberdades, e em benefício dos próprios policiais, que merecem lugar de destaque na construção de um futuro mais justo e pacífico em nosso país.
Assim como o calvário de Maria da Penha estimulou a luta das mulheres contra a violência, esperamos que o sacrifício de Patrícia Acioli nos inspire e nos mobilize. É o mínimo que lhe devemos para honrar sua memória.
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Passaram-se 13 anos desde que Patricia foi assassinada e o pronunciamento foi escrito. Nesse período, onze policiais militares foram condenados e expulsos da Polícia Militar pelo assassinato de Patricia, incluindo o então comandante do 7º BPM, apontado como mandante do crime. Os culpados foram punidos, embora, inacreditavelmente, a expulsão do mandante só tenha ocorrido em maio de 2023, onze anos após o crime. A despeito da resposta do sistema de Justiça criminal, com a identificação e a condenação dos criminosos, as condições que tornaram possível esse crime inominável não mudaram, pelo contrário, se agravaram. Sete anos depois do dia 11 de agosto, tivemos o 14 de março. Em 2018, Marielle Franco e Anderson Gomes foram barbaramente assassinados. Suas famílias, hoje, estão unidas à família de Patricia Acioli pela dor e pela indignação.
A comissão da verdade, enaltecida no pronunciamento de 2011, foi realmente instituída e fez seu trabalho, mas sofreu toda sorte de boicotes e hostilizações, a ponto de lhe ter sido atribuída a responsabilidade pela reemergência do fascismo brasileiro. A fé no futuro que dá o tom do pronunciamento, em contraponto à desolação pela tragédia que roubou Patricia de sua família, hoje dificilmente se sustenta na observação da realidade brasileira e mundial. Mas a regressão histórica em nosso país apenas prova quão correto estava o pronunciamento quando enfatizava a importância da Justiça de transição que os representantes do regime militar se recusaram a aceitar, na década de 1980, chantageando o poder civil e fazendo com que a sombra da ditadura se estendesse sobre a democracia nascente, garroteando-a ainda no berço. Nessa travessia penosa, houve muitas outras vítimas. Nosso dever é rejeitar o esquecimento e manter vivas as lutas por dignidade e igualdade, pela vida, pela democracia que mereça este nome, pelos direitos humanos.
Nesse momento, as lutas confluem para uma síntese, que nos leva mais uma vez ao front. Provavelmente em setembro, a ADPF 635 (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) vai a julgamento, no pleno do STF. Estará em jogo o mais significativo movimento do Poder Judiciário para impor limites à brutalidade policial, tanto os limites já ditados pela Constituição quanto aqueles requeridos pelo simples bom senso, todos eles sistematicamente transgredidos pelas polícias fluminenses. A Justiça só se pronuncia quando provocada e, mesmo assim, quando se trata do Supremo, em casos de vulto que ferem a Constituição Federal, depois que todas as etapas anteriores forem cumpridas sem sucesso, depois que todos os meios se esgotarem. Foi o que aconteceu. Devemos a vitória inicial à sensibilidade do ministro Fachin, à mobilização de entidades atuantes nas favelas – como a Redes da Maré, cuja experiência foi precursora- e à competência engajada do Dr. Daniel Sarmento, advogado do PSB.
As polícias do estado do Rio difundiram a ideia absolutamente insustentável de que a insegurança tem se agravado porque o STF teria proibido operações nas favelas. A acusação não procede. Tampouco houve proibição, apenas a determinação de que condições elementares fossem observadas. A ADPF já havia sido aprovada, mas retorna agora a juízo porque vem sendo constantemente descumprida, o que deu lugar a nova demanda. Caso o STF renove as exigências, a luta pelos direitos humanos terá conquistado, nesse instrumento, um aliado precioso. É preciso mobilizar todos os setores democráticos por uma ampla aliança pela vida, porque as forças do obscurantismo já estão reanimando sua velha cruzada pelo medo. A herança comum de Patricia Acioli e Marielle Franco exige de nós coragem e engajamento: a ADPF é apenas um passo, porém importante, que terá repercussão para os direitos humanos em todo o país.
1A Cátedra Patricia Acioli será coordenada por Luiz Eduardo Soares, em parceria com Eliana Sousa Silva, Miriam Krenzinger e Leonardo Melo, e se insere no CBAE/UFRJ, dirigido por Ana Celia Castro.