O gaúcho morreu; por isso, chora o Guaíba

Na cheia trágica do rio, dois fenômenos confluem: o Pampa já não absorve a água das chuvas, pois foi reduzido a soja e agrotóxico. E dos cavaleiros exímios e altivos resta só uma caricatura rude. Vão-se os centauros, ficam os xororós

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Não há dúvidas de que o capitalismo alçou a humanidade a uma espetacular condição de pletora material. Impulsionada pela busca do lucro em condições de concorrência, a produtividade do trabalho cresceu exponencialmente e alavancou a capacidade humana de transformar a natureza num conjunto cada vez mais extenso e complexo de mercadorias. Talvez um dos resultados mais contundentes do desenvolvimento capitalista seja a alteração psíquica causada pelo aprofundamento da forma mercantil na subjetividade humana. Crescentemente forjada – ou distorcida – pelo avanço do modo de ser burguês, a capacidade humana de entendimento do que seja a sua própria natureza e a do mundo, que transforma por meio do trabalho, parece cada vez mais limitada à mercadoria e à pura forma sem conteúdo do dinheiro. Com efeito, na medida em que a mercantilização da vida orgânica e inorgânica do ser humano avança, fica mais difícil para as pessoas imaginarem-se para além da compra e venda de mercadorias. Afinal, quando a própria reprodução material da humanidade se encontra determinada pela forma mercantil, parece não haver outra maneira de se viver.

Além de um entendimento do mundo que transforma através do trabalho determinado pela mercadoria, a forma especificamente capitalista de se concretizar a relação humanidade/natureza traz consigo uma nova maneira de se interpretar o tempo, na qual a aceleração é alçada a condição de pedra angular. No fim de contas, se a quantidade de mercadorias disponíveis cresce quanto menor o tempo socialmente necessário à sua produção, a relação entre as pessoas e destas com a natureza que lhe serve de condição de existência passa a ser pautada pela aceleração intrínseca aos ganhos de produtividade do trabalho e à circulação do capital. Grosso modo, quando se diz que o capitalismo é um modo de produção que deixa de ser natural para se tornar completamente histórico, o que se está a afirmar é que convivemos num modelo de sociabilidade pelo qual se busca subsumir o tempo da natureza ao tempo das transformações históricas. Transformações que se sucedem e que tomam lugar em nossas vidas cada vez mais rapidamente, impulsionadas pela poderosa mola da acumulação capitalista – que se alarga ao transpor as barreiras naturais que lhe se são antepostas. No fundo, é a lógica do valor em movimento de autovalorização, ou seja, do capital em processo, o que atribui aceleração ao tempo histórico. Dentre outras repercussões, se atualmente temos a sensação de que precisamos correr cada vez mais – apenas para ficar no mesmo lugar – é porque estamos inseridos numa sociedade que nos faz crer que “tempo é dinheiro” e que dinheiro parado é digno de danação eterna (dado o imperdoável pecado de não render frutos).

Entretanto, o capitalismo não se desenrola apenas no tempo, mas também através do espaço que reorganiza em função de sua lógica expansiva e acelerante. Sentido no qual Milton Santos construiu o conceito de “inundo”: o espaço inundado de tempo. Conceito útil para se entender que um campo cultivado com soja a partir de sementes geneticamente modificadas e altas doses de agrotóxicos é um espaço inundado pelo tempo do capital. Um recorte do espaço geográfico em que o tempo da natureza é subsumido ao frenético ritmo da valorização do valor. Da mesma forma, uma fazenda propriedade de um fundo de investimentos, na qual a principal preocupação não seja a manutenção das condições naturais de fertilidade do solo – mas os recebíveis mensais distribuídos aos cotistas – é um recorte do espaço geográfico inundado pela temporalidade do capital financeiro. É nesse sentido, por exemplo, que ganha corpo uma discussão sobre land grabbing e financeirização do espaço agrário.

A adoção de pacotes tecnológicos que aceleram a rentabilidade de capitais investidos na agricultura ao custo da degradação não menos acelerada do solo talvez seja uma incidência da subjetividade capitalista na maneira pela qual as pessoas entendem a natureza. Para quem não consegue enxergar o mundo para além da forma mercantil e não possui outra métrica que não seja a do cifrão, a manutenção da biodiversidade que contribui para a fertilidade do solo parece mais um desperdício do que uma ação inteligente. Pois, é muito de distorções dessa natureza que a emergência climática é feita. E o que se observa atualmente no Rio Grande do Sul é um exemplo de seus possíveis efeitos devastadores sobre a vida – irresponsavelmente mercantilizada até a medula.

De acordo com o MapBiomas, de 1985 a 2022 o estado do Rio Grande do Sul perdeu 22% de sua vegetação nativa (cerca de 3,5 milhões de hectares). Se hoje os gaúchos precisam reconstruir um estado devastado por enchentes, vale lembrar que o solo da vegetação nativa possui grande capacidade de infiltrar água da chuva, portanto, de evitar que boa parte da precipitação escorra para os rios, provocando assoreamentos e inundações. É inegável que a urbanização cobra sua importância nesse processo. Contudo, chama a atenção que nesse mesmo período o cultivo de soja avançou em 4,9 milhões de hectares, muitos destes no bioma Pampa, substrato e condição inalienável de existência do gaúcho, uma maneira de existir forjada durante séculos através da adaptação do ser humano ao ambiente pampeano natural.

Existem distintas teorias sobre a origem do gaúcho. Independentemente de suas diferenças, tais teorias confluem no entendimento de que o gaúcho é uma forma de existência construída com o bioma Pampa, certamente transformado – mas não acabado – pela ação humana. A rigor, o gaúcho – “centauro do Pampa” – é um modo de existir com o Pampa acrescido de equinos e bovinos trazidos pelo homem branco, uma prova viva de que ao transformar a natureza da qual faz parte, o ser humano modifica também a sua própria natureza.

A primeira versão do centauro foram os indígenas pampeanos, povos nômades de caçadores e coletores que conviviam em harmonia com o ambiente natural. Durante o capitalismo em sua fase ainda embrionária do mercantilismo, o afã colonizador do europeu branco trouxe o cavalo para o Pampa. De certa forma abandonados, ante ao insucesso da primeira investida colonizadora naquele recorte do espaço, os equinos encontraram no bioma formado por vastas pastagens de terras relativamente planas um ambiente bastante propício para sua reprodução. Rapidamente, os povos originários se tornaram exímios cavaleiros – especialmente os Charruas. Igualmente trazido pelos colonizadores, posteriormente o gado bovino também se multiplicou livremente nas coxilhas do Pampa e passou a ser caçado pela primeira versão do centauro. Não é nenhuma novidade que os povos originários do Pampa legaram técnicas e instrumentos de caça essenciais ao modo de ser gaúcho, como a boleadeira e o laço de couro trançado. Descendentes de espanhóis e de portugueses, mas também de africanos se misturaram ao indígena e ao seu modo de vida nômade, cavaleiro e caçador de gado. Deram origem ao gaúcho, um ser que se formou miscigenado e que – tal qual os povos originários – vivia sem conhecer fronteiras ao cavalgar pelas terras do Pampa atrás do gado xucro.

A imagem do “centauro dos pampas” ilustra bem a ideia de que o modo de ser gaúcho é indissociável do cavalo – o que, para alguns, inclusive, lhe atribuiria uma perspectiva “aérea” de mundo. A despeito da veracidade dessa observação acerca da personalidade do gaúcho, talvez seja interessante notar que seu modo de ser emerge livre dos grilhões da propriedade privada, o que para certos etnógrafos lhe atribuiria também uma contumaz altivez. Em seus albores, o gaúcho é um cavaleiro nômade caçador do boi “chimarrão” (o gado xucro). Num mundo sem cercas e fronteiras políticas, a primeira e principal atividade dessa versão de humanidade “aérea” e altiva é a courama, ou seja, a caça do boi para o aproveitamento sobretudo do couro. Com a crescente mercantilização para aproveitamento em diversas mercadorias, o couro passa a ser cada vez mais procurado e taxado pelas Coroa portuguesa, que regula a sua comercialização. Cola-se à imagem do gaúcho – altivo e “aéreo” – um rótulo de fora da lei, de vagamundo, um contrabandista de couro que desrespeita todas as regras, que não sejam de seu próprio modo de ser. A bovinocultura surge posteriormente, em boa medida associada ao cercamento dos campos do Pampa pelo regime de sesmarias e a introdução da agricultura de subsistência. Praticamente obrigado a transformar a sua força de trabalho em mercadoria, ou seja, a trocá-la por um salário, o gaúcho se vê convertido em peão de estância. Mesmo forçado a alienar-se de seu modo de via nômade, verve de sua altivez, o gaúcho ainda se manteve “aéreo”, quer dizer, um centauro, que de cima de seu cavalo vive e reproduz-se majoritariamente das lidas com o gado, já não mais xucro, mas criado em certa harmonia com o bioma. Ainda que alienado do produto de seu trabalho, o gaúcho resiste, na medida em que o Pampa e o pastoreio lhe permitem manter traços essenciais de seu modo de ser.

Infelizmente, a resistência gaúcha parece cada vez mais ameaçada. Atualmente, assistimos a um processo acelerado de sojificação do Pampa. Vegetação nativa de gramíneas e pequenos arbustos são crescentemente substituídos pelo cultivo da soja. Cavalos e bois dão lugar a colheitadeiras e tratores que rasgam coxilhas depositando-lhes altas doses de agrotóxicos. Processo que destrói o bioma – e com ele o modo de ser gaúcho. Portanto, é devido à destruição do ambiente natural com o qual se forja que o gaúcho corre sério risco de extinção. Processo no qual o centauro dos pampas cede lugar a uma espécie de xororó de bombachas, um canhestro avatar de gaúcho, que provavelmente não tem a menor habilidade para manejar a boleadeira herdada dos povos originários, e que talvez tampouco saiba que o mate que sorve diariamente é um legado dos guaranis. Ao negar cinicamente os efeitos de sua própria ação, o xororó de bombachas parece um simulacro de gaúcho, que não titubeia em evocar as virtudes de uma história que trabalha persistentemente para pôr a termo. Talvez seja essa a saga dos proprietários de terras do Pampa: acabar com o gaúcho. Primeiramente, privando-lhe da verve de sua altivez. Posteriormente, acabando com o bioma e com a atividade (re)produtiva pela qual sua forma de ser se constitui.

Em tempos de aceleração irresponsável na relação metabólica humanidade/natureza, parece que o gaúcho se tornou um entrave, mais uma barreira que precisa ser superada pelo desenvolvimento capitalista. Afinal de contas, com o fim do gaúcho, a vegetação nativa pode ser substituída sem maiores resistências por mares de soja. E os costumes e tradições da cultura gaúcha, soterrados por direitos de compra e venda de sacas sequer colhidas, mas já freneticamente negociadas no mercado de futuros. O fio do bigode finalmente sob o fio da navalha. A imagem do cavalo Caramelo – esgualepado no telhado de uma habitação submersa – correu o mundo; talvez ela seja a ilustração mais emblemática de que vão-se os centauros, ficam os xororós, no Pampa inundado pelo tempo do capital financeiro.

Referências

Leal, O. F. Os gaúchos: cultura e identidade masculinas no pampa. Porto Alegre: Tomo Editorial, 2021.

Vieira, E. F. & Rangel, S.S. Geografia econômica do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Saga Luzatto, 1993.

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