Memória: Quando afugentamos o General da ditadura

Florianópolis, 1979: revoltado, o povo acossa e sitia João Figueiredo. Foi a Novembrada. Na época, a militância estudantil era boca no ouvido e mãos no mimeógrafo. Lia-se os futuros cinzas em Huxley e Orwell, mas sabendo que o real pesadelo era abdicar do direito de sonhar…

Foto: James Tavares
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Todos haviam consciente e voluntariamente abdicado do direito de sonhar, delegando aos profissionais que lidam com o pessoal e o coletivo, a prescrição de roteiros a seguir, sem permitir – e até coercitivamente impedindo – que houvesse improviso em falas, textos e/ou performances.

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Onde foram parar nossos sonhos? Volta e meia me descubro perguntando em que lugar de nossas vidas foram parar aqueles nossos ideais de liberdade e de oportunidades melhores para todos (ou quase todos, já que alguns tristemente acabam envolvidos com a instantaneidade dos gozos, de qualquer natureza, pensando que a vida a isso se limita, e se esquecendo que há “mais”).

Falo então de aspirações maiores. Daquilo que supera os poucos minutos de largos mas pálidos sorrisos e os encantos fugidios – que preenchem, é claro, as almas dos viajores deste Universo – mas são “líquidos”, distante da necessária solidez. Há de ter algo melhor, mas que não seja o frágil consolo das religiões que continuam sendo consumidas como as drogas pesadas K9 ou Nitazeno. Porque religiões também viciam, mantendo o ser numa aparente normalidade (que também pode ser enunciada como conformação ao que “não pode” ser mudado), com as promessas de quase-sonhos paradisíacos.

Mas há outros sonhos que são válidos e estão aí, inclusive quando nossos dedos-pinças tateiam aplicativos e redes sociais, assim como “inofensivos” blogs de notícias. Há um que de encantamento quando nos permitimos “sair da tela”, mas com frequência a partir dela, isto é, com o prévio direcionamento dos algoritmos que nos “dominam”, mesmo que você não perceba ou isso não lhe aborreça ou lhe preocupe. Falo de um habitat psíquico, em que não há firewall nem AntiSpam (felizmente!), ou seja, a criativa tela cerebral dos humanos. Ali há sonhos!

Recorrentemente tenho tido alguns sonhos retrocognitivos e, talvez, premonitórios. Não sei ao certo. Só sei que eles me remetem aos meus dias adolescentes, entre os “tocos” e as “xepas” da ditadura. Era 1983, 1984, 1985… Mas também, regredindo um pouco mais o dèjá-vu consciente, já havia sido, antes, no fim de 1979, quando o último dos generais esteve aqui em Florianópolis, e o povo o acossou e o sitiou no nosso Palácio Rosado, a Casa Política de então, o Palácio Cruz e Sousa. Falo, claro, da Novembrada (que aqueles que não conhecem podem facilmente encontrar nas buscas). Um sonho real de enfrentar o chumbo e as iniquidades.

Ideias e convencimento

Sim, a juventude socialista sonhava… E muito! Naquele apartamento no centro de Floripa, transformado em “comitê”, já nos albores da redemocratização, ainda havia o risco de alguma “batida” policial. Imaginava, eu, um adolescente de 14/15 anos, nos oitenta, tendo que me explicar à minha mãe onde andava metido e porque tinha sido levado a uma delegacia. Mas isso nunca ocorreu, embora houvesse sempre o risco, inclusive quando saímos pela janela por um beco em torno da Rua Saldanha Marinho e nos dispersamos, porque um “espia” avisou que “a coisa aqui tá preta” (“Meu Caro Amigo”, Chico Buarque, 1976).

Nossa revolução era, francamente, muito mais de ideias e de convencimento. Nunca foi de armas. Porque nunca foi necessário mais que isso! Era boca a boca, ou boca no ouvido, por vezes. E com panfletos de mimeógrafo nas mãos, quase sempre em folhas brancas e tinta vermelha. Havia muito “passa-daqui, garoto!”, mas também havia abraços, beijos, calor humano e carinho… Cerca de dez anos depois, nossa revolução açoriana fez Sergio Grando prefeito de Florianópolis (1993-1996), com o empenho de muitos daquele grupo, pelo Partido Popular Socialista (PPS), hoje Cidadania — hoje não tão socialista (que pena!). E alguns sonhos foram tornados possíveis de se realizar, num governo verdadeiramente popular. Ah, que sonho bom!

Todavia, para você que já esteve na Ilha de Santa Catarina ou para você que tem, ainda, o desejo de conhecer a “terra manezinha”, devo dizer que um dos maiores sonhos do Grando – e nosso também, que aqui vivemos – não pôde ser realizado. Ele, há praticamente trinta anos, tentou resolver o problema da mobilidade urbana de Floripa, ou, pelo menos, o “gargalo” da entrada e saída da cidade, que é, claro, você sabe, uma ilha e que possui (hoje) três pontes de acesso, totalizando cinco para ir e cinco para voltar. Grando propôs a reativação – porque Floripa já tinha sido um pequeno porto, ali, junto ao Mercado Público e o prédio da Alfândega (ambos tombados e reconhecidamente patrimônio histórico e cultural da cidade e de Santa Catarina, talvez se possa dizer também brasileiro) – do transporte marítimo, com balsas e ferry-boat.

Mas, a ganância dos que dominam o capital – especificamente, neste caso que não é do passado, mas prossegue no presente, porque a realidade é a mesma e piorada, por causa do aumento populacional – ou seja, os proprietários de empresas de transporte coletivo, os donos de postos de combustível e os concessionários de licenças de táxi, impediram, naquela oportunidade, que a Câmara de Vereadores autorizasse o mandatário catarinense a realizar aquele feito. Não foi sonho, foi pesadelo!

Seguem os sonhos…

Recordo-me do Admirável Mundo Novo, de Huxley (1932) e de 1984, de Orwell (1949), lidos naqueles dias, ambos protagonizando prognósticos para o porvir – entre sonhos e pesadelos. Orwell dissertou sobre um futuro de destituição e miséria, necessidade e escassez, em que os homens eram assustados e tristes. Huxley descrevia a futurística com abundância e saciedade, devassidão e opulência, com indivíduos alegres e assaz despreocupados. Mundos antinômicos e distópicos em todos os aspectos.

Mas, como sabiamente ilustrou Bauman (Modernidade Líquida, Rio de Janeiro: Zahar, 2001), esses mundos não poderiam dialogar, mas nem por isso se antagonizariam. Difícil, não? Em tempos como o nosso, marcados por diálogos entre surdos, em que a “minha” visão será sempre “melhor” que a sua – ou vice-versa – tornando a dialógica e, por extensão, a dialética práticas detestáveis pelos “senhores de verdades”, admitir que os diferentes possam conviver é realmente um outro sonho.

Mas o sociólogo polonês, com Huxley e Orwell na algibeira, foi categórico ao afirmar que o mundo teria um destino único pelos dois caminhos por eles traçados, separados por dezessete anos: a tragédia do mundo à razão de mulheres e homens incapazes de serem livres e de controlarem seus próprios viveres: indivíduos obtusos, ignorantes, indolentes ou plácidos.

Nas duas visões de futuro não havia (nem haveria) mais sonhos, porque todos, consciente e voluntariamente abdicaram do direito de sonhar, delegando a gestores ou supervisores, projetistas ou engenheiros, advogados ou médicos, ou quaisquer outros profissionais que lidam com o pessoal e o coletivo, a prescrição de roteiros a seguir, sem permitir – e até coercitivamente impedindo – que houvesse improviso em falas, textos e/ou performances.

Sem gurus e influencers

Uma visão e uma concretização diárias no existir, portanto, no cinza permanente dos amanhãs que se sucedem, sem a poesia e o colorido que plasma e habita o mundo dos sonhos de cada um – e aqui, com encanto, podemos deixar de lado o egoísmo do “meu” sonhar para, como Raulzito, pensar/fazer com que o sonho conjunto se torne realidade.

É, Bauman, o velho Marx já teria dito que o divisor entre insano e sensato, irracional e racional, implausível e factível foi determinado pelo capitalismo que separou (e separa, sabe-se lá por quanto tempo) dominantes e dominados, nos impôs e impõe trajetórias de vida confinadas e circunscritas. Sem sono e sem sonhos…

Ainda assim, creio num exorcismo possível. Que não venha de gurus, influencers, pastores nem médiuns, todos profetas do Apocalipse a nos dizer que o futuro – sem o que prescrevem, uns e outros – será o fim. Ora, o fim. Haverá fim de qualquer jeito. E quase ninguém sabe o que há no “the day after” (o pós-fim), para além das muitas crenças (cegas ou pararracionais, do ontem e do hoje e quiçá, do amanhã, por ainda algum tempo).

Me recuso a não sonhar!

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