II Guerra, 80 anos depois: como vencer o fascismo?
Crônica de uma viagem à Itália em busca do legado dos partiggiani, em meio a reflexões sobre as perigosas “figuras ridículas” da História. Trump, Bolsonaro e Milei foram subestimados – assim como Mussolini. Veio a catástrofe. Podemos evitá-la no século 21?
Publicado 07/04/2025 às 16:06 - Atualizado 07/04/2025 às 16:07

Dez anos atrás, eu chegava a uma pequena cidade no norte da Itália com a finalidade de pesquisar sobre a resistência partigiana durante a Segunda Guerra. Em 2015, completavam-se 70 anos da libertação dos italianos graças à coragem, luta e resiliência de brigadistas civis como Ferruccio Fellegara, sobre quem eu estava pesquisando para o processo de escrita de uma biografia.
Para minha surpresa, ao lado do Castello Visconteo, em Voghera, um local emblemático para a resistência, uma placa com seis nomes havia sido instalada. Uma homenagem a um pequeno grupo de fascistas mortos ali. Um tributo concedido fazia poucos anos pelo poder público da cidade – cada vez mais à direita – em atendimento a uma solicitação da Associação Nacional dos Familiares das Vítimas e Desaparecidos da República Social Italiana.
Desde então, a cada dia 25 de abril, familiares da “vítimas” (meia dúzia de paramilitares Camisas Negras que tinham praticado todo tipo de horror, de sabotagens e emboscadas contra jornalistas, sindicalistas, grevistas, intelectuais, ferroviários etc, e que haviam participado de um massacre ao grupo partigiano do qual fazia parte Ferruccio Fellegara, único sobrevivente) colocavam uma coroa de flores aos pés da placa. Sem demora, o revide chegava através de militantes de esquerda que arrancavam a coroa, fixavam cartazes e pichavam frases de repúdio ao fascismo. Segundo moradores, atendentes de cafés e donos de restaurantes de Voghera, as provocações vinham num crescente. O rumo das coisas, afirmavam, não era nada animador.
Naquele mesmo mês, a poucos metros dali, na Piazza Duomo, o nacionalista de extrema direita Matteo Salvini estava em comício e declamava um discurso inflamado, xenófobo, de criminalização de imigrantes, para uma população entusiasmada, que vibrava a cada frase repleta de impropérios, a cada evocação do sentimento nacional ufanista. Naquela mesma praça, onde após árdua luta, em 25 de abril de 1945 os voghereses celebraram o fim da ocupação nazista de Hitler e do regime ditatorial de Mussolini, eu assistia à um revival incômodo. Claro que, na função de jornalista, acompanhava a guinada mundial para a direita e a ascensão de partidos como a Frente Nacional na França, o Ukip no Reino Unido, o AfD na Alemanha, o FPO na Áustria, o DPP na Dinamarca, o Jobbik na Hungria, além do próprio Liga Norte de Matteo Salvini. Mas ver a olhos nus aquele ultranacionalismo hidrófobo, foi aterrador.
Eu havia desembarcado naquela região da Lombardia vindo de um Brasil em que o ano de 2015 testemunhava multidões vestidas com a camisa da seleção brasileira de futebol indo às ruas em apoio a um golpe parlamentar que catapultaria Dilma Rousseff um ano depois. Jair Bolsonaro, até então um deputado do baixo clero, um grosseirão que destratava as jornalistas mulheres, fazia pronunciamentos a favor da tortura, da ditadura e enaltecia a pena de morte, já era um nome que começava a causar alvoroço entre os verde-amarelos CBFs. Era preciso pressionar o botão do alarme.
Meu intento em contar a história de Ferruccio Fellegara embutia um recado sobre a dificuldade que é expulsar o capiroto depois que ele se instala. Se 20 anos de ditadura não pareciam provocar recordações nefastas em boa parte dos brasileiros, quem sabe um relato contundente sobre os 20 meses da intensa luta partigiana no norte da Itália. Uma luta desigual tendo, de um lado, dois exércitos (o italiano e o alemão), e do outro civis desarmados ou munidos de armas pequenas em missões praticamente suicidas para se livrarem do monstro que nascera pequeno, na figura extravagante de Mussolini. Uma personagem bufa que muitos deram como certo seu insucesso. Deu no que deu: um país destroçado, que obrigou milhares de italianos a migrarem para o Brasil, onde muitos de seus descendentes, naquele exato momento, orgulhosamente se prestavam ao papel de bucha de canhão para uma direita tosca e perversa. Uma geração de oriundi que inflava a figura de Sergio Moro, um patético arremedo do juiz Antonio di Pietro da operação Mani Pulite, que escancarava a mesma cruzada ambiciosa de carreira política evocando valores moralistas e disseminando o maniqueísmo “políticos são os vilões, magistrados são os super-heróis”. Uma reprise nauseabunda.
A biografia de Ferruccio Fellegara era meu primeiro livro. Depois de pronto, o livro de um autor desconhecido não alcançou quase ninguém além de amigos e familiares, muitos deles com ascendência italiana e até parentes de abnegados e combativos partigiani que, para surpresa de zero pessoas, desgostaram da publicação uma vez que estavam receosos com o “bolivarianismo comunista”. Deu no que deu: aquelas pessoas que não viram nada de errado no áudio “com o Supremo, com tudo”, alguns anos depois invadiram com tudo o Supremo, o Congresso e o Palácio do Planalto.
“Vai pra Cuba”, me ordenavam. Fui para a Itália, onde o caldo para uma ressurgência fascista ao poder estava mais do que nítido em 2015 com aqueles “personagens que parecem ter sido selecionados para uma filmagem do Monty Python”, como escreve Giuliano Da Empoli no livro Os Engenheiros do Caos. Segundo Empoli, a Itália sempre exerceu a função de balão de ensaio para experiências políticas populistas, frequentemente destinadas a serem reproduzidas em outras partes do mundo. Não à toa Steve Bannon, nessa mesma época, criou um centro de formação de extrema direita para jovens católicos ultraconservadores num mosteiro na Itália. O Instituto para a Dignidade Humana é um projeto ideológico obscuro, descrito como “escola de gladiadores para guerreiros culturais”.
Eu testemunhava tudo aquilo e só me lembrava de Antonio Gramsci: “O velho mundo está morrendo. O novo mundo demora a aparecer. E nesse interregno surgem os monstros”.
Algo precisava ser feito. Entretanto, não raramente ao longo da história nota-se certa dificuldade na percepção da iminência de um monstro, de sua gestação antes do parto. E nada foi feito.
Assim, dez anos depois, em 2025 “o país da bota” não apenas tem como primeira-ministra Giorgia Meloni, a neofascista que se elegeu com o infatigável lema Deus, pátria e família, como vê seu Supremo Tribunal decidir que saudações fascistas são legais. O gesto mais famoso da dupla Adolf e Benito – o braço direito erguido com a mão espalmada voltada para baixo – só é considerado ilegal “se puser em perigo a ordem pública ou promover o ressurgimento de ideologias fascistas”. Bugou, leitor? Eu também.
Como negacionistas de plantão buscaram a relativização alegando a possibilidade ser também a “saudação romana”, um eufemismo esdrúxulo e sem amparo nenhum na história, pois ela não tem nem nunca teve qualquer relação com a Roma Antiga, e sim com a fundação do movimento fascista italiano em 1919, hoje não podemos nos surpreender com os braços direitos erguidos de Elon Musk e Steve Bannon na “maior democracia do mundo”. E assim mundo afora temos essas demonstrações desavergonhadas com o ressurgimento de centenas de grupos neonazis.
Uma década depois de minha pesquisa sobre a derrocada do fascismo e expulsão das tropas nazistas pelas brigadas partigianas, a ressurgência nazifascista alcança o poder em diversos países e eu só me lembro do microconto de Augusto Monterosso: “Quando acordou, o dinossauro ainda estava lá”. Enquanto dormíamos, o monstro cresceu e desenvolveu tentáculos. Após os primeiros sinais – ou nem tão primeiros assim -, hoje acompanhamos Netanyahu promover um genocídio com transmissão ao vivo; vemos Trump ameaçar invadir e eliminar a Palestina (a Polônia para Hitler) para sempre, além de comandar verdadeiros pogroms e determinar o envio de imigrantes (os judeus da vez) para campos de concentração em Guantánamo, ao mesmo tempo em que concede indulto a todos os Proud Boys (a versão atual das Schutzstaffel e dos Camisas Negras); assistimos a Alemanha colocar 151 representantes da extrema direita no Parlamento e formar assim a segunda maior bancada; temos até um aparvalhado e oportunista Javier Milei anunciar que irá construir muros; lemos as notícias de eleições em diversos países cujos resultados têm consagrado líderes que vomitam abertamente um discurso homofóbico, transfóbico, xenófobo, que prometem – e cumprem – deportação desumana.
É evidente que esses líderes políticos cometem essas barbaridades apoiados no descontentamento da chamada “geração precária” que, quando empregada, ganha salários miseráveis. Uma geração que nasceu e cresceu ouvindo que a culpa é dos imigrantes, que não tem discernimento para compreender que a precarização é causada pelo próprio liberalismo econômico que defendem (não causa surpresa que a palavra do ano passado tenha sido brainrot). O saldo é a grande quantidade de partidos de extrema direita se reunindo mundo afora em conferências ultranacionalistas e marchas de grupos supremacistas e neonazis.
No início dos anos 1920, Mussolini era visto como uma figura ridícula e pouca importância lhe foi atribuída. Dez anos depois, o Partito Nazionale Fascista era o único admitido na Itália e seu admirador, Hitler, dava seus passos totalitários, igualmente desconsiderados. Dez anos depois, ele havia colocado o mundo em guerra.
Em 2025, passou da hora de refletirmos como estaremos daqui 10 anos. Iremos acordar e dar de cara com um dinossauro ainda maior, ou ele já terá nos devorado?
Outras Palavras é feito por muitas mãos. Se você valoriza nossa produção, contribua com um PIX para [email protected] e fortaleça o jornalismo crítico.