Brasília: A cidade moderna e envelhecida

Cidade, que completou 65 anos este mês, é deslumbrante, arborizada – e brutalmente desigual. Porém, debater o projeto de Lúcio Costa lá continua tabu. É curioso: quando inaugurada, surgia a ideia de Janes Jacob de cidades densas, diversificadas e vivas – o seu oposto

Imagem: GoDrive
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Por Luis Felipe Miguel, em seu substack

Brasília está completando 65 anos. Parei para pensar um pouco e tive a revelação, espantosa, de que tenho sido morador dela pela metade desse tempo. Faz 31 anos que me mudei para cá e, antes disso, tinha vivido na cidade por um período de ano e meio.

Quando me perguntam se gosto de morar aqui, respondo sempre da mesma forma: ainda estou esperando me acostumar.

Sim, tem pontos positivos. Os espaços residenciais da cidade são muito arborizados. O Plano Piloto é tranquilo, bom para criar os filhos. Há uma fauna urbana interessante – e não estou usando “fauna” como metáfora, estou falando mesmo de araras, carcarás, tucanos, quero-queros, capivaras, sagüis (com trema, por favor), saruês. O céu é maravilhoso e o pôr-do-sol costuma ser deslumbrante. O trânsito é ruim, mas é só passar um dia em qualquer outra grande cidade brasileira que a gente começa a achá-lo muito bom. Os carros param na faixa para que os pedestres atravessem. Restaurantes, lanchonetes, café e bares têm a obrigação de servir gratuitamente água para os clientes, o que não apenas elimina cobranças por vezes abusivas como reduz o tráfico de água engarrafada, com seu significativo custo ecológico.

Brasília amanhece. Foto de Regina Dalcastagnè.

Os problemas também são muitos. Aqui em Brasília, impera um tabu na discussão sobre seu planejamento urbano: é necessário dizer que o projeto de Lucio Costa é uma das maravilhas do mundo moderno, que deve ser defendido a todo custo, embora todos convivam com os perrengues que ele causa no nosso dia a dia. Na verdade, minha impressão é de que Brasília seria inabitável se não fosse por seus puxadinhos – as adaptações à margem do planejamento que seus habitantes foram introduzindo.

Sim a defesa do plano original às vezes cumpre um papel positivo, já que, em geral, as propostas para modificá-lo que têm mais chance de êxito são aquelas patrocinadas por especuladores imobiliários e grileiros (dois grupos que compõem uma parte importante da elite econômica e também política local).

Mas não dá para ignorar como a cidade é segregada. O plano original era igualitário: altos burocratas e zeladores dos ministérios morariam nos mesmos prédios. Mas os zeladores foram trocados por trabalhadores terceirizados sem acesso aos imóveis funcionais – que, depois, foram em sua grande maioria vendidos. Com aluguéis caríssimos, em parte como efeito da grande população de integrantes do corpo diplomático, funcionários de organizações internacionais e lobistas, que não pagam por sua própria moradia e muitas vezes recebem em moeda forte, as pessoas foram levadas a morar nas cidades satélites.

Elas não são propriamente bairros. São afastadas do Plano Piloto (a região central) por extensas zonas desabitadas, a fim de marcar a descontinuidade entre quem está aqui e quem está lá. Naturalmente, o tempo de deslocamento aumenta.

Em regra, quanto mais longe do Plano, mais desprovidas de tudo as cidades satélites são: saneamento, atendimento médico, escolas, comércio. Ainda assim, a moradia continua cara, o que explica a favelização crescente do Distrito Federal. A segunda maior favela do Brasil, Sol Nascente, com mais de 70 mil habitantes segundo o censo de 2022, está aqui.

Desprovidas de tudo, eu escrevi. Inclusive de transporte público, que é notavelmente deficiente por aqui. É incrível pensar que, na segunda metade do século XX, alguém projetou uma cidade sem prever metrô. Mas eram os anos JK, não é mesmo? O automóvel era o símbolo do progresso, da modernidade, do bem-estar, de tudo. Devíamos queimar combustível como se não houvesse amanhã – do jeito que a coisa anda, parece que não vai haver mesmo.

Hoje, Brasília tem um metrozinho mixuruca, que oficialmente transporta 160 mil passageiros por dia. Só como comparação, Paris tem uma população quase um terço menor e seu metrô leva 35 vezes mais passageiros.

Não é só isso. O desenho da cidade dificulta o transporte público. As estações de metrô ficam longe de muitos dos pontos de interesse para os passageiros. É sempre preciso andar muito, atravessando vias de tráfego rápido e sob o sol inclemente no período da seca, tempestades torrenciais no período das chuvas.

As superquadras residenciais fazem com que o comércio esteja afastado entre si e seja praticamente impossível fazer tudo a pé. A não ser que você se limite aos estabelecimentos da sua própria quadra, o que parece que era o projeto original. Uma ideia francamente autoritária, incompatível com a vida moderna numa grande cidade.

Por isso, é perfeitamente compreensível que a primeira prioridade de um habitante de Brasília seja adquirir um automóvel particular. Conheço muita gente, começando por eu mesmo, que vivia feliz sem carteira de motorista mas teve que mudar de ideia quando veio para cá. Mas isso é coletivamente insustentável.

Ao mesmo tempo, o império do automóvel privado potencializa as disfuncionalidades do planejamento da cidade, em particular a setorização. Durante o dia, é impossível estacionar nos setores bancário, comercial ou hospitalar. De noite, são áreas fantasma. Aliás, quem teve a ideia de juntar bancos, escritórios ou hospitais num mesmo lugar? Ou hotéis? Ficar no setor hoteleiro em Brasília é um suplício – não há uma farmácia, um mercadinho, nada que possa ser alcançado a pé, só um hotel depois do outro.

No mesmo ano em que Brasília era inaugurada, Jane Jacobs publicou sua grande crítica do planejamento urbano modernista, The death and life of great American cities. Contra a setorização, ela faz uma defesa veemente da rua multifuncional, aquela que mescla residências, escritórios, comércio, serviços. Isso garante o melhor aproveitamento do espaço urbano, com circulação de pessoas em todos os momentos do dia – entre outras coisas, favorecendo a segurança.

Brasília é o oposto disso.

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