A formação do Brasil, segundo Alysson Mascaro

Novo livro é convite para refletir sobre as conexões entre o escravismo e o capitalismo brasileiro. Sob uma perspectiva marxista, dialoga com outras obras que apontam a importância dos sujeitos históricos e as dimensões culturais nas transformações na sociedade

Escravos trabalhando num engenho de açúcar. Obra de Debret
.

A análise da formação social brasileira tem sido objeto de intenso debate historiográfico, marcado por diferentes perspectivas teórico-metodológicas. Nesse contexto, a obra Sociologia do Brasil de Alysson Mascaro (2024) representa uma importante contribuição para o campo, ao propor uma abordagem crítica fundamentada no materialismo histórico. Mascaro se destaca por sua tentativa de aplicar rigorosamente o método dialético à análise da realidade brasileira, buscando compreender as contradições e especificidades que caracterizam nossa formação social. Sua obra se insere em uma tradição de pensamento crítico brasileiro que remonta a autores como Caio Prado Jr., Florestan Fernandes e Jacob Gorender, mas também dialoga com contribuições mais recentes da teoria social crítica.

Contudo, para uma compreensão mais aprofundada da especificidade histórica brasileira, é necessário ampliar o escopo da análise, dialogando com as contribuições de outros pensadores marxistas que se dedicam a refletir sobre as particularidades das formações sociais não-europeias e sobre os desafios metodológicos envolvidos na aplicação do materialismo histórico a realidades diversas. Nesse sentido, as obras de Perry Anderson, EP Thompson, Ciro Flamarion Cardoso e Jacob Gorender oferecem perspectivas complementares que enriquecem e, por vezes, desafiam a análise proposta por Mascaro. Estes autores, embora partilhem com Mascaro o compromisso com o materialismo histórico, desenvolvem abordagens específicas que enfatizam diferentes aspectos da realidade social e propõem caminhos metodológicos alternativos para a compreensão das especificidades históricas.

Perry Anderson, historiador britânico de formação marxista, desenvolveu em suas obras Passagens da Antiguidade ao Feudalismo (1974) e Linhagens do Estado Absolutista (1974) uma abordagem que enfatiza a importância de se compreender as transições entre diferentes modos de produção como processos complexos e não-lineares. Esta perspectiva é fundamental para analisar a formação social brasileira, marcada pela complexa relação entre escravismo e capitalismo. Anderson faz uma análise que busca superar tanto o economicismo quanto o culturalismo, enfatizando a necessidade de se compreender as formações sociais em sua totalidade, considerando as inter-relações propostas entre economia, política e cultura. Sua abordagem das transições históricas, que enfatiza a coexistência e a articulação de elementos de diferentes modos de produção, oferece um modelo teórico fecundo para se pensar a especificidade da formação social brasileira, caracterizada pela persistência de relações sociais e formas de dominação associadas ao mesmo período colonial. após uma transição formal para o capitalismo.

Anderson argumenta, de forma convincente, que as transições históricas não seguem um padrão linear e uniforme, como proposto por algumas interpretações mais esquemáticas do marxismo, mas são específicas por descontinuidades e especificações de elementos de diferentes modos de produção. Essa visão dialoga diretamente com a análise de Mascaro sobre a especificidade do modo de produção escravista colonial no Brasil, mas também desafia a ir além, considerando as formas complexas através dos quais elementos do escravismo persistiram e se articularam com as novas relações capitalistas no período pós-abolição. A abordagem de Anderson nos convida a pensar a formação social brasileira não como uma anomalia ou um desvio de um suposto modelo “normal” de desenvolvimento capitalista, mas como uma configuração específica resultante de um processo histórico singular de articulação entre diferentes modos de produção e formas de dominação social.

EP Thompson, por sua vez, oferece uma perspectiva complementar e, em certos aspectos, contrastante com a de Anderson. Em obras seminais como A Formação da Classe Operária Inglesa (1963) e Costumes em Comum (1991), Thompson desenvolve uma abordagem que enfatiza a agência dos assuntos históricos e a importância da cultura na formação das classes sociais. Sua concepção de classe como um processo histórico, formado por meio das experiências comuns e das lutas coletivas dos trabalhadores, e não como uma categoria estática derivada diretamente das relações de produção, é fundamental para compreender as particularidades da formação da classe trabalhadora no Brasil. A ênfase de Thompson na experiência vívida e nas formas culturais através das quais as relações de classe são percebidas e contestadas oferece um contraponto importante à tendência, presente em algumas análises marxistas, de reduzir a formação das classes a um reflexo mecânico das estruturas econômicas. Aplicada ao contexto brasileiro, a abordagem thompsoniana nos convida a considerar como a experiência da escravidão, as tradições de resistência e luta dos trabalhadores escravizados e livres, e as formas específicas de consciência social que emergiram no contexto colonial e pós-colonial influenciaram o processo de formação da classe trabalhadora brasileira, conferindo-lhe características específicas das observadas nos países de industrialização mais antigos.

A ênfase de Thompson na experiência histórica e na formação da consciência de classe permite uma análise mais matizada das relações sociais no contexto brasileiro, evitando generalizações e modelos pré-concebidos. Isso é particularmente relevante ao se considerar a complexidade das relações raciais e de classe no Brasil pós-abolição. Thompson argumenta que a classe não é uma estrutura ou categoria, mas algo que ocorre nas relações humanas. No contexto brasileiro, essa perspectiva nos leva a questionar como as experiências compartilhadas de opressão racial e de exploração econômica são desenvolvidas para a formação de uma consciência de classe específica entre os trabalhadores brasileiros. Além disso, a abordagem de Thompson nos convida a examinar as formas culturais, tradições e práticas cotidianas através das quais as relações de classe foram vivenciadas e contestadas no Brasil, considerando, por exemplo, o papel das festividades populares, das religiões afro-brasileiras e das formas de organização comunitária na formação da identidade e da resistência da classe trabalhadora brasileira.

Essa abordagem centrada na experiência dos assuntos históricos encontra ressonância no trabalho de historiadores brasileiros que se dedicaram a estudar as complexidades do sistema escravista colonial.

Ciro Flamarion Cardoso, historiador brasileiro de formação marxista, oferece uma contribuição fundamental para a compreensão da especificidade histórica do Brasil colonial em obras como Agricultura, Escravidão e Capitalismo (1979) e Escravo ou Camponês? O Protocampesinato Negro nas Américas (1987). Cardoso desenvolve uma análise crucial sobre o caráter do escravismo colonial nas Américas, propondo uma interpretação que busca superar tanto as visões que controlavam o escravismo colonial a uma mera extensão do capitalismo comercial europeu, quanto aqueles que o equiparam acriticamente ao escravismo antigo. Sua abordagem dialoga diretamente com a discussão proposta por Mascaro sobre o modo de produção escravista colonial, mas vai além ao propor uma análise específica das formas específicas de organização do trabalho e da produção no contexto colonial americano.

A perspectiva de Cardoso sobre o escravismo colonial é complementada e aprofundada pelo trabalho seminal de Jacob Gorender.

Jacob Gorender, em sua obra seminal O Escravismo Colonial (1978), aprofunda e sistematiza a análise do modo de produção escravista colonial, oferecendo uma contribuição fundamental para a compreensão da formação social brasileira. Gorender desenvolve uma análise rigorosa das leis econômicas específicas que regiam o funcionamento do sistema escravista colonial, argumentando que este constitui um modo de produção sui generis, com características próprias que o distinguem tanto do escravismo antigo quanto do capitalismo. Sua abordagem é crucial para superar interpretações reducionistas que buscam enquadrar a realidade brasileira em modelos europeus, oferecendo um quadro teórico mais adequado para compreender as particularidades do desenvolvimento histórico brasileiro.

Enquanto Gorender e Cardoso focam nas estruturas econômicas e sociais do escravismo colonial, outros historiadores se dedicam a explorar as dinâmicas de poder e resistência dentro desse sistema.

A historiadora Silvia Hunold Lara, em obras como Campos da Violência: Escravos e Senhores na Capitania do Rio de Janeiro, 1750-1808 (1988), oferece uma perspectiva fundamental sobre as relações de poder e resistência no contexto da escravidão brasileira. Sua abordagem dialoga com as preocupações de Thompson sobre a agência dos assuntos históricos, mas também incorpora elementos da micro-história e da história social. Lara argumenta que as relações entre senhores e escravos não podem ser reduzidas a um simples binômio de dominação e submissão, mas devem ser entendidas como um complexo campo de negociações, conflitos e conflitos. Ela demonstra como os escravizados, apesar das diversas limitações impostas pelo sistema escravista, eram capazes de desenvolver estratégias de resistência e negociação que influenciavam significativamente as dinâmicas sociais do período colonial. Esta perspectiva enriquece a compreensão do modo de produção escravista colonial, evidenciando como as relações de classe e poder eram constantemente contestadas e renegociadas no cotidiano da sociedade escravista.

Essa atenção às práticas cotidianas de resistência e negociação dos escravizados é complementada por estudos que focam nas transformações das relações raciais no período pós-abolição.

A historiadora Hebe Mattos, em obras como Das Cores do Silêncio: Os Significados da Liberdade no Sudeste Escravista – Brasil, Século XIX (1998), oferece uma importante contribuição para a compreensão das relações raciais no Brasil pós-abolição. Sua abordagem dialoga com as preocupações de Thompson sobre a formação da classe trabalhadora, mas também incorpora elementos dos estudos pós-coloniais e da história cultural. Mattos argumenta que as categorias raciais no Brasil do século XIX e início do XX eram fluidas e contextualmente definidas, não correspondendo a classificações baseadas em critérios biológicos. Ela demonstra como a experiência da escravidão e da liberdade influenciou profundamente a formação das identidades raciais e de classe no Brasil, criando um complexo sistema de classificações sociais que não pode ser limitado a simples dicotomias entre brancos e negros, ou entre livres e escravos.

A complexidade das relações raciais e de classe no Brasil pós-abolição, evidenciada por Mattos, nos leva a questionar como essas dinâmicas influenciaram a formação da classe trabalhadora brasileira.

Lara enfatiza a importância de se analisar as práticas cotidianas de resistência e negociação dos escravizados, evitando uma visão simplista que os reduz a meros objetos passivos da dominação senhorial. Ela argumenta que os escravizados, através de diversas formas de resistência – desde fugas e rebeliões até negociações por melhores condições de trabalho e vida – desempenharam um papel ativo na conformação das relações sociais e econômicas do Brasil colonial. Esta abordagem dialoga com a concepção thompsoniana de classe como um processo ativo, formada através das experiências e lutas dos assuntos históricos. Ao mesmo tempo, ela complementa e enriquece a análise estrutural do modo de produção escravista colonial proposta por Mascaro, Cardoso e Gorender, demonstrando como as estruturas econômicas e sociais eram constantemente desafiadas e modificadas pela ação dos sujeitos históricos.

Mattos argumenta que a experiência da escravidão e da liberdade no Brasil oitocentista não pode ser compreendida a partir de categorias raciais fixas, mas deve ser comprovada em sua historicidade e complexidade. Ela demonstra como a “cor” no Brasil do século XIX era uma categoria social que englobava não apenas características físicas, mas também status social, condição jurídica e relações de patrocínio. Esta perspectiva é fundamental para se compreender a especificidade da formação da classe trabalhadora no Brasil, onde as hierarquias raciais herdadas do período escravista se entrelaçaram de formas complexas com as novas relações de classe emergentes no capitalismo nascente. A análise de Mattos nos ajuda a entender como a questão racial se tornou um elemento central na conformação das relações de classe no Brasil, influenciando tanto as formas de exploração do trabalho quanto as estratégias de organização e resistência dos trabalhadores.

A obra de Mascaro, ao propor uma análise crítica da formação social brasileira, dialoga com essas diferentes perspectivas historiográficas, buscando sintetizar suas contribuições em um quadro teórico coerente. Sua ênfase na especificidade histórica do modo de produção escravista colonial e na complexidade da transição para o capitalismo no Brasil encontra eco nas análises de Anderson, Cardoso e Gorender. Ao mesmo tempo, Mascaro busca incorporar elementos da história social e cultural, reconhecendo a importância da agência dos assuntos históricos e das formas culturais na conformação das relações sociais. No entanto, é importante notar que a síntese proposta por Mascaro não é isenta de tensões e contradições. Por um lado, sua abordagem busca manter o rigor analítico do materialismo histórico, enfatizando a centralidade das relações de produção na determinação das estruturas sociais. Por outro lado, ele registra a necessidade de incorporar elementos da experiência vívida e da cultura na análise das formações sociais, um desafio que nem sempre é resolvido de forma satisfatória em sua obra.

Contudo, é importante ressaltar que a abordagem de Mascaro poderia beneficiar de uma maior atenção à agência dos assuntos históricos e às dimensões culturais da formação das classes sociais, aspectos enfatizados por Thompson e pelos historiadores mencionados. A ênfase de Mascaro nas estruturas econômicas e políticas, embora fundamental, por vezes obscurece o papel ativo dos indivíduos e grupos sociais na construção de sua própria história. Uma integração mais profunda da perspectiva thompsoniana poderia enriquecer a análise, demonstrando como as experiências cotidianas, as tradições culturais e as formas de resistência dos trabalhadores brasileiros desenvolvidos para moldar as especificidades de nossa formação social. Por exemplo, uma consideração das formas de organização e luta dos trabalhadores escravizados e livres no período colonial e imperial poderia iluminar aspectos importantes da transição para o capitalismo no Brasil, revelando continuidades e rupturas nas formas de consciência e ação coletiva da classe trabalhadora.

A análise da formação social brasileira não pode se limitar a uma discussão abstrata sobre modos de produção, mas deve considerar as experiências concretas dos assuntos históricos e as formas específicas de consciência social que emergiram no contexto brasileiro. Nesse sentido, é crucial incorporar contribuições de historiadoras como Maria Odila Leite da Silva Dias, cujo trabalho sobre as mulheres pobres no Brasil do século XIX oferece contribuições valiosas sobre as interseções entre classe, gênero e raça na formação da sociedade brasileira. Dias, em sua obra Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX (1984), demonstra como as mulheres das classes populares, muitas delas ex-escravizadas ou descendentes de escravizados, desenvolvem estratégias de sobrevivência

Nesse sentido, é fundamental considerar não apenas as estruturas econômicas e políticas, mas também as formas culturais e simbólicas através das quais as relações de classe e raça foram vivenciadas e contestadas no Brasil. O trabalho de Stuart Hall sobre as culturas diaspóricas e as identidades culturais nas sociedades pós-coloniais oferece ferramentas teóricas valiosas para pensar essas questões no contexto brasileiro. Hall, em obras como Da Diáspora: Identidades e Mediações Culturais (2003), argumenta que as identidades culturais nas sociedades marcadas pela experiência colonial e pela diáspora africana são caracterizadas por processos de hibridização e negociação constantes. Aplicada ao contexto brasileiro, esta perspectiva nos ajuda a compreender como as formas culturais afro-brasileiras, por exemplo, não são meras “sobrevivências” de um passado africano, mas expressões dinâmicas de resistência e adaptação que desempenharam um papel crucial na formação da identidade nacional e das culturas de classe no Brasil.

A noção de “experiência”, central na obra de Thompson, pode ser particularmente útil para compreender as formas específicas de consciência de classe que emergiram no contexto brasileiro, marcadas pela herança da escravidão e por relações raciais complexas. Thompson argumenta que a classe é formada quando homens e mulheres, como resultado de experiências comuns (herdadas ou compartilhadas), sentem e articulam a identidade de seus interesses entre si, e contra outros homens interesses interessantes (e geralmente se opõem) aos seus. No contexto brasileiro, isso nos leva a questionar como as experiências compartilhadas de exploração econômica, discriminação racial e marginalização social desenvolvem para a formação de uma consciência de classe específica entre os trabalhadores brasileiros. Ao mesmo tempo, é crucial considerar como as divisões raciais e as posições sociais herdadas do período escravista influenciaram e complicaram esse processo de formação de classe.

Da mesma forma, a ênfase de Anderson na não-linearidade das transições históricas pode ajudar a compreender a complexidade da formação social brasileira, caracterizada pela coexistência de elementos de diferentes modos de produção. Anderson argumenta que as transições entre modos de produção não seguem um padrão linear e uniforme, mas são especificadas por especificações específicas de elementos de diferentes formações sociais. Esta perspectiva é particularmente relevante para entender a transição do escravismo para o capitalismo no Brasil, um processo marcado pela persistência das relações sociais e formas de dominação associadas ao período colonial mesmo após a abolição formal da escravidão. Por exemplo, uma análise de José de Souza Martins sobre o que ele chama de “escravidão por dívida” na fronteira amazônica, em obras como Fronteira: A manipulação do Outro nos confins do humano (1997), demonstra como formas de trabalho compulsório persistiram e se articularam com relações capitalistas de produção em certas regiões do Brasil até o final do século XX. Essa perspectiva nos ajuda a compreender a formação social brasileira não como uma anomalia ou um desvio de um suposto modelo “normal” de desenvolvimento capitalista, mas como uma configuração específica resultante de um processo histórico singular.

A abordagem de Cardoso e Gorender sobre o modo de produção escravista colonial oferece um importante ponto de partida para se pensar a especificidade da formação social brasileira, mas é necessário ir além de uma análise puramente estrutural. Enquanto esses autores fornecem um quadro teórico sólido para compreender as leis econômicas e as relações de produção que caracterizavam o sistema escravista colonial, é crucial complementar essa análise com uma investigação das formas concretas através das quais essas estruturas foram vivenciadas, contestadas e transformadas pelos assuntos históricos . Nesse sentido, o trabalho de Sidney Chalhoub, em obras como Visões da Liberdade: Uma História das Últimas Décadas da Escravidão na Corte (1990), oferece um exemplo notável de como integrar a análise estrutural com uma abordagem que privilegia a agência dos sujeitos históricos. Chalhoub demonstra como os escravizados, por meio de ações judiciais, negociações com seus senhores e outras formas de resistência, influenciaram um papel ativo na destruição do sistema escravista, influenciando o processo de abolição e moldando as relações sociais do período pós-emancipação.

É preciso considerar as formas concretas através das quais as relações de produção escravistas foram vivenciadas, contestadas e transformadas pelos assuntos históricos, como enfatizam as análises de Lara e Mattos. Além disso, é fundamental examinar como essas experiências influenciaram a formação da classe trabalhadora brasileira no período pós-abolição. O trabalho de Álvaro Pereira do Nascimento, em Do convés à taberna: a elite marítima e a recusa ao trabalho no Rio de Janeiro na segunda metade do século XIX (2019), traz contribuições sobre esse processo. Nascimento demonstra como os trabalhadores contratados, muitos dos quais ex-escravizados, desenvolveram formas de organização e resistência que desafiavam as tentativas de disciplinarização do trabalho no contexto do capitalismo nascente. Essa perspectiva nos ajuda a compreender como as tradições de luta e resistência forjadas no contexto da escravidão influenciaram as formas de organização e consciência da classe trabalhadora brasileira.

A transição do escravismo para o capitalismo no Brasil não pode ser compreendida como um processo linear ou automático, mas como um processo complexo e contraditório, marcado por continuidades e rupturas. Nesse sentido, é crucial considerar as formas específicas de articulação entre relações escravistas e capitalistas que caracterizaram esse período de transição. O trabalho de Dale Tomich sobre a “segunda escravidão” oferece uma perspectiva importante para pensar essa questão. Tomich argumenta que o recrudescimento da escravidão no Brasil, Cuba e sul dos Estados Unidos no século XIX não foi um mero resquício anacrônico, mas uma resposta às demandas da economia capitalista mundial em expansão. Essa perspectiva nos ajuda a compreender como o escravismo brasileiro do século XIX estava profundamente integrado ao capitalismo global, antecipando algumas das contradições que marcariam o desenvolvimento capitalista posterior no país.

Nesse sentido, uma análise da formação social brasileira deve considerar não apenas as transformações nas relações de produção, mas também as mudanças nas formas de consciência social, nas práticas culturais e nas relações de poder. O conceito de “hegemonia” de Antônio Gramsci pode ser particularmente útil para pensar essas questões no contexto brasileiro. Gramsci argumenta que o domínio de classe não se sustenta apenas pela coerção, mas também pelo consentimento ativo dos dominados, obtido através de complexos processos de negociação cultural e ideológica. No contexto brasileiro, isso nos leva a questionar como as elites pós-abolição buscam construir novas formas de hegemonia, rearticulando elementos da ideologia escravista com novos discursos sobre raça, nação e modernidade. O trabalho de Lilia Moritz Schwarcz, em obras como O Espetáculo das Raças: Cientistas, Instituições e Questão Racial no Brasil – 1870-1930 (1993), ao demonstrar como as teorias raciais do século XIX foram aplicadas e reinterpretadas no contexto brasileiro, influenciando profundamente as políticas públicas e as relações sociais no período pós-abolição, também é muito pertinente na discussão.

Em suma, uma análise crítica da formação social brasileira deve combinar a atenção às estruturas econômicas e políticas com uma compreensão das experiências concretas dos assuntos históricos, das formas culturais e das relações de poder que caracterizam a especificidade da realidade brasileira. Essa abordagem multidimensional nos permite compreender o Brasil não como um caso “desviante” ou “atrasado” em relação a um suposto modelo universal de desenvolvimento capitalista, mas como uma formação social específica, produto de um processo histórico singular marcado por contradições e lutas concretas. Ao mesmo tempo, essa perspectiva nos convida a compensar as próprias categorias do marxismo clássico à luz da experiência brasileira e latino-americana, contribuindo para uma renovação crítica da teoria social que seja capaz de dar conta da diversidade e complexidade das formações sociais periféricas no capitalismo global.

A obra de Mascaro, ao propor uma análise crítica da formação social brasileira baseada no materialismo histórico, representa um importante passo nessa direção. Contudo, para esse avanço empreitado, é necessário um diálogo ainda mais profundo com as contribuições da historiografia recente e com as perspectivas teóricas que têm buscado repensar as categorias do marxismo à luz das experiências históricas não-europeias. Isso implica não apenas em incorporar novos temas e objetos de estudo, mas também em compensar os próprios pressupostos teóricos e metodológicos que orientam nossa análise da realidade social brasileira.

Por fim, é importante ressaltar que essa abordagem crítica e multidimensional da formação social brasileira não tem apenas um interesse acadêmico, mas também uma relevância política fundamental. Compreender as especificidades de nossa formação histórica, as formas complexas através das quais as relações de classe, raça e gênero se entrelaçaram em nossa sociedade, e os processos através dos quais diferentes grupos sociais construíram suas identidades e formas de resistência, é crucial para pensar estratégias de transformação social que sejam adequadas à nossa realidade. Nesse sentido, o desafio que se coloca aos pesquisadores e militantes com a transformação social no Brasil é o de desenvolver uma teoria crítica que seja capaz de capturar a complexidade de nossa formação social, sem perder de vista o horizonte da emancipação humana.

Concluindo, uma análise da formação social brasileira requer uma abordagem teórica e metodológica que seja capaz de capturar sua complexidade e especificidade histórica. Isso implica em um diálogo crítico com as diversas tradições do pensamento social brasileiro e do marxismo, bem como uma atenção às contribuições mais recentes da historiografia que enfatizam a agência dos assuntos históricos e a importância das dimensões culturais e simbólicas na conformação das relações sociais. Ao integrar essas diferentes perspectivas, podemos desenvolver uma compreensão mais rica e nuançada da realidade brasileira, que não apenas explique suas particularidades históricas, mas também contribua para uma atualização crítica da teoria social capaz de dar conta da diversidade e complexidade das formações sociais periféricas no capitalismo global. Essa abordagem multidimensional não apenas enriquece nossa compreensão do passado, mas também nos fornece ferramentas mais adequadas para enfrentar os desafios do presente e imaginar possibilidades de transformação social no futuro.


Referências

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Um comentario para "A formação do Brasil, segundo Alysson Mascaro"

  1. Gamaliel Lucas disse:

    Uma crítica prolixa e com uma tentativa de desmerecer o trabalho da grandeza de Alysson Mascaro.
    Depois escrevo mais.

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