Venezuela: a fabricação de uma mentira
Alegação de que Caracas trafica fentanil oscila entre o trágico e o patético. As agências de inteligência dos EUA a desmentem. Aliados ocidentais de Washington tomam distância. Mas Trump insiste, pois seus propósitos imperiais o exigem
Publicado 03/12/2025 às 16:57 - Atualizado 03/12/2025 às 17:08

Por Ted Snider, no Responsible Statecraft | Tradução: Rôney Rodrigues
Segundo relatos, Donald Trump manteve uma conversa telefônica surpresa com o presidente venezuelano, Nicolás Maduro, na semana passada. Dias depois, o Departamento de Estado dos EUA designou formalmente o Cartel de los Soles da Venezuela como uma organização terrorista estrangeira e, além disso, declarou que Maduro é o líder dessa organização terrorista estrangeira.
Portanto, como o Cartel de los Soles é “responsável pela violência terrorista em todo nosso hemisfério, bem como pelo tráfico de drogas para os Estados Unidos”, a primeira alegação coloca a guerra com a Venezuela na agenda, e a segunda coloca um golpe contra Maduro na mesma pauta.
Há apenas um problema: o governo Trump está tendo dificuldade em convencer suas próprias agências e parceiros internacionais mais próximos de qualquer uma dessas alegações. A administração também não os convenceu de que a Venezuela é um estado “narcoterrorista”, ou de que a solução de Trump para o problema — bombardear pequenas embarcações que supostamente transportariam fentanil e outras drogas para os Estados Unidos — é legal.
O problema em designar o Cartel de los Soles como uma organização terrorista é que não existe um “Cartel de los Soles” da forma como o governo Trump alega. Conforme relata o The New York Times, “Cartel de los Soles não é uma organização literal”, mas “uma figura de linguagem”. É uma referência jocosa, de três décadas, à insígnia de sol que os generais venezuelanos usam e aos oficiais militares corrompidos pelo dinheiro das drogas.
“Não existe algo como uma reunião de diretoria do ‘Cartel de los Soles’. Não existe esse bicho. A organização não existe como tal”, disse Phil Gunson, analista sênior do International Crisis Group, ao Times.
Além disso, disse Jeremy McDermott, cofundador do InSight Crime, um centro de estudos focado em crime e segurança na América Latina: “O Cartel dos Soles tornou-se uma expressão genérica para o tráfico de drogas infiltrado no Estado, mas estes não são integrados — a mão esquerda não sabe o que a mão direita está fazendo. Absolutamente não é uma organização, per se“, afirmou, acrescentando: “Se você vai para a guerra, a terminologia importa.”
Além disso, analistas de inteligência não concordam que Maduro seja o “chefe” de qualquer cartel, muito menos de um que não existe.
Um memorando de “consenso da comunidade” de 26 de fevereiro sobre outro designado terrorista por Trump, a organização criminosa Tren de Aragua (TDA), que reuniu as conclusões das 18 agências da comunidade de inteligência dos EUA subordinadas ao Gabinete do Diretor de Inteligência Nacional, concluiu que a TDA “não agia sob a direção do governo Maduro e que as duas partes são, na verdade, hostis uma à outra”.
Aparentemente, de acordo com o Times, o Gabinete do Diretor de Inteligência Nacional ordenou a um analista de inteligência sênior que “repensasse” a análise de fevereiro e apresentasse uma nova avaliação. O novo memorando, datado de 7 de abril, “confirmou a avaliação original da comunidade de inteligência” e continuou a contradizer a alegação do governo sobre Maduro, concluindo que “o regime Maduro provavelmente não tem uma política de cooperação com a TDA e não está direcionando o movimento e as operações da TDA para os Estados Unidos”.
A comunidade de inteligência manteve naquele memorando que “não observou o regime direcionando a TDA”. Em vez disso, o memorando constata que “os serviços de inteligência, militares e policiais venezuelanos veem a TDA como uma ameaça à segurança e atuam contra ela de maneiras que tornam altamente improvável que as duas partes cooperem de forma estratégica ou consistente”.
O novo memorando, no entanto, acrescentou uma visão mais matizada da posição do FBI, que concordou com a avaliação, mas discordou ao afirmar que alguns elementos do governo venezuelano ajudam a facilitar a migração de membros da gangue TDA para os EUA e os usam como proxies para avançar os objetivos do regime.
Semanas após o segundo relatório, Michael Collins, presidente interino do Conselho Nacional de Inteligência, e Maria Langan-Riekhof, sua vice, foram demitidos. O Gabinete do Diretor de Inteligência Nacional negou que tivesse qualquer relação com os memorandos e limitou-se a dizer que “a Diretora (Tulsi Gabbard) está trabalhando junto ao presidente Trump para acabar com a instrumentalização e politização da Comunidade de Inteligência”. No entanto, uma pessoa familiarizada com a situação disse à Reuters que “está claro que Collins foi demitido apenas por fazer seu trabalho”.
Os EUA não tiveram mais sucesso em convencer seus parceiros de que a Venezuela é sequer uma fonte significativa de fentanil ou outras drogas que entram nos Estados Unidos.
Autoridades atuais e anteriores dos EUA afirmam que a maioria das embarcações atingidas pelos militares americanos estava na passagem entre a Venezuela e Trinidad e Tobago — uma passagem não utilizada para transportar fentanil nem outras drogas para os Estados Unidos. A maconha domina, com 80% das drogas que fluem por essa passagem, e a maior parte do restante é cocaína. E essas drogas não se destinam aos EUA, mas à África Ocidental e à Europa.
De acordo com a Administração de Combate às Drogas dos EUA (DEA), 90% da cocaína que transita para os EUA entra pelo México, não pela Venezuela. E a Venezuela não é uma fonte de fentanil. O Relatório Mundial sobre Drogas 2025 do UNODC avalia que a Venezuela “consolidou seu status como um território livre do cultivo de folhas de coca, cannabis e cultivos similares” e que “apenas 5% das drogas colombianas transitam pela Venezuela”.
Até o momento, houve pelo menos 20 ataques a embarcações supostamente transportando drogas, e 80 pessoas foram mortas sem serem acusadas ou julgadas. Existem sérias preocupações internas quanto à legalidade desses ataques. Hegseth está em apuros esta semana devido a questões sobre se ele ordenou ou não um segundo ataque letal a uma embarcação, matando sobreviventes.
Em 16 de outubro, o almirante Alvin Holsey, chefe do Comando Sul dos EUA, que supervisiona todas as operações na América Central e do Sul, anunciou que estava deixando o cargo em meio a relatos de “verdadeiras tensões políticas em relação à Venezuela” entre o almirante e o secretário de Defesa, Pete Hegseth. Autoridades atuais e anteriores dos EUA afirmam que Holsey “tinha levantado preocupações sobre a missão e os ataques às supostas embarcações de drogas”.
O Washington Post relata que o governo Trump “repetidamente ignorou ou contornou advogados do governo que questionavam se a política provocativa era legal”. Assim como os oficiais militares e de inteligência, muitos advogados e funcionários preocupados “deixaram o governo ou foram realocados ou removidos”.
Muitos dos principais aliados dos Estados Unidos também não estão convencidos. O Reino Unido parou de compartilhar inteligência com os EUA sobre embarcações suspeitas de tráfico de drogas na costa da Venezuela porque acredita que os ataques “violam o direito internacional”. O Reino Unido é um dos aliados mais próximos e um dos parceiros de compartilhamento de inteligência mais importantes dos EUA. Eles têm muitos ativos de inteligência baseados no Caribe.
E o Reino Unido não é o único aliado próximo a agir com base em sua preocupação. O Canadá, que tradicionalmente ajudou os EUA a interceptar traficantes de drogas no Caribe, também notificou os EUA de que não quer que sua inteligência seja usada para ajudar a direcionar embarcações para ataques letais. O Canadá afirma que seu compartilhamento de inteligência na região é “separado e distinto” desses ataques e que o país “não tem envolvimento” nos ataques dos EUA a embarcações venezuelanas.
Jean-Noël Barrot, ministro das Relações Exteriores da França, também afirmou que a França está preocupada porque os ataques “violam o direito internacional”. E autoridades holandesas já haviam restringido o compartilhamento de inteligência com os EUA devido a preocupações de que a “politização da inteligência” pudesse ser usada em “violações de direitos humanos”.
A Colômbia também parou de compartilhar inteligência com os EUA “porque estaríamos colaborando com um crime contra a humanidade”.
Se você não consegue convencer outras nações — e seu próprio povo — de seu direito de usar a força militar, talvez esteja errado em usá-la. Parece que Trump tem uma tarefa muito maior de convencimento a fazer.
Outras Palavras é feito por muitas mãos. Se você valoriza nossa produção, contribua com um PIX para [email protected] e fortaleça o jornalismo crítico.

