Por trás da guerra, uma potência endividada

EUA afundam-se em dívidas. Sua economia, decadente, baseia-se no poder de parasitagem do dólar. E este mesmo mecanismo financia sua gigantesca máquina militar. Por isso, temem tanto uma nova ordem monetária, essencial aos países do Sul

Imagem: site Capital Aberto
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O texto a seguir integra a edição nº 2 (novembro de 2023) do boletim do Observatório do Século XXI — parceiro editorial de Outras Palavras. A publicação, na íntegra, pode ser baixada aqui

Joe Biden afirmou que seu recente encontro com o líder chinês Xi, no âmbito do Fórum de Cooperação Econômica Ásia- Pacífico, constitui “outro exemplo de como o restabelecimento da liderança americana no mundo está se fortalecendo”. Segundo Biden, a China enfrenta “problemas reais”, referindo-se à sua desaceleração econômica, e Xi “é um ditador no sentido de que lidera um país comunista com uma forma de governo totalmente diferente da nossa”.

No entanto, uma recente pesquisa mostrou que apenas 17% dos americanos consideram a democracia de seu país um bom exemplo a ser seguido por outros. No contexto atual, 31% dos seguidores de Trump e 24% dos seguidores de Biden também expressaram dúvidas sobre a viabilidade da democracia. Cerca de 40% dos republicanos e democratas justificam a violência como meio de impedir o avanço do outro, mesmo que isso signifique desrespeitar as normas democráticas. Essas informações levantam sérias questões sobre a projeção global dos Estados Unidos, considerando o apoio declarado à Ucrânia no confronto com a Rússia, baseado na defesa de “nossos valores” e fazendo “o que for necessário” em termos de fornecimento de dinheiro e armas para Kiev.

Enquanto isso, os americanos estão enfrentando dificuldades crescentes para chegar ao final do mês sem dívidas. Uma pesquisa recente do Financial Times revelou que apenas 14% dos americanos acreditam que sua situação financeira melhorou desde o início do mandato de Biden, enquanto quase 70% acreditam que piorou.

Em um relatório da LendingClub, 62% dos americanos afirmam viver no dia a dia, levando 74% a declarar que estão “estressados com suas finanças”, já que qualquer contratempo poderia desestabilizá-los financeiramente. Outra pesquisa da Chapman University mostrou que 55% temem um colapso econômico ou financeiro, levando-os a cortar despesas em alimentos e outras necessidades, enquanto 65% afirmam ter cortado gastos não essenciais, como entretenimento.

Essa percepção geral está alinhada com a opinião de muitos economistas do país que têm prognósticos negativos para a economia dos Estados Unidos. A presidente da Associação Nacional de Economistas Empresariais (NABE), Ellen Zentner, economista-chefe da Morgan Stanley, informou que “os resultados da Pesquisa sobre Condições Empresariais de outubro de 2023 sugerem um ambiente empresarial mais desafiador à medida que a economia desacelera”. Biden vem conciliando seus objetivos globais com o estado da economia do país por meio do déficit orçamentário, que beira os US$ 1,7 trilhão no ano fiscal de 2023. Esse déficit não apenas superou mais que o dobro do projetado, mas é o terceiro maior na história dos Estados Unidos, sendo apenas superado pelos anos da pandemia de covid-19 em 2020 e 2021.

Essa despesa elevou a dívida nacional bruta dos Estados Unidos para US$ 33,7 trilhões, um aumento de mais de dois trilhões desde o início do ano. Seu ritmo de crescimento está se tornando cada vez mais frenético, e alguns calculam que está aumentando em torno de 14 bilhões de dólares por dia.

Ao mesmo tempo, pari passu, os pagamentos de juros estão aumentando. De acordo com a Fundação Peter G. Peterson, quase 2 bilhões de dólares são gastos diariamente apenas em juros da dívida nacional. Em 2023, até o final de setembro, o Tesouro desembolsou 879,3 bilhões de dólares em juros sobre seus títulos de dívida.

As perspectivas tornam-se complicadas ao considerar que grande parte do endividamento nos últimos dois anos ocorreu quando as taxas de juros estavam historicamente baixas, mas a Reserva Federal aumentou as taxas para enfrentar a inflação.

A lógica desse endividamento público contínuo é a renegociação constante de seus títulos. À medida que vencem, são renovados com as novas taxas, e se estas são maiores, também resultam em um aumento no pagamento de juros. Embora a taxa média de juros da dívida esteja no nível mais alto desde 2011, ainda é relativamente baixa, e a dívida é mais que o dobro em comparação com aquele ano. Segundo o presidente do Federal Reserve, Jerome Powell, para lidar com a inflação, as taxas de juros devem ser de 5%. Atualmente, o pagamento de juros consome mais de 35% da receita tributária total.

A política antinflacionária dos Estados Unidos aumenta os juros porque considera que os preços aumentam devido a um “excesso de demanda”, mesmo diante das condições econômicas cada vez mais precárias da maioria da população. O tamanho alcançado tanto pela dívida pública quanto pelo pagamento de seus serviços inexoravelmente, sob a visão econômica do establishment americano, leva a uma expansão contínua de ambos.

Isso implica que a demanda global por dólares e por títulos de dívida dos EUA deve se expandir. Assim, as políticas monetárias e fiscais nacionais dos Estados Unidos precisam ser impostas globalmente. Trata-se mais de um gasto fundamentado na senhoriagem do que no poderio da economia real.

Considerando a etimologia histórica da palavra francesa “seigneuriage” como o direito do Senhor de cunhar moedas, as implicações são claras, especialmente quando se trata de um gasto maciço sem custo algum para os EUA como emissor de uma dívida contra si mesmo, cujo estoque é atualmente em torno de um terço do produto global.

Na realidade, a situação é semelhante nos principais aliados dos Estados Unidos. Segundo o Instituto de Finanças Internacionais (IIF), ao longo da última década, a dívida global aumentou em 100 trilhões de dólares, cerca de 80% provenientes do Japão, Estados Unidos, Grã-Bretanha e França.

Sob essa perspectiva, os declarados projetos da Rússia e China de desdolarizar suas relações econômicas representam um desafio existencial para os Estados Unidos, agravado pela quantidade de países que estão aderindo a esses novos circuitos financeiros. Com plena consciência do que está em jogo, Lavrov afirmou que o establishment político e econômico da Europa e dos Estados Unidos tem razão em temer essa mudança, pois significaria “perder a oportunidade de viver como parasitas do resto do mundo, garantindo um crescimento econômico mais rápido para eles à custa do resto do mundo”.

Por sua vez, Putin afirmou que “o mundo está gradualmente se livrando da ditadura desse modelo financeiro e econômico, cujo único objetivo é se endividar, escravizar-se, tornar-se colônias econômicas e privar regiões inteiras do mundo de recursos para o desenvolvimento”. Ao mesmo tempo, Biden declarava que “os valores americanos são o que nos torna um parceiro com o qual outras nações querem trabalhar”, justificando o envio de “uma solicitação urgente ao Congresso para financiar as necessidades de segurança nacional dos Estados Unidos e apoiar nossos parceiros críticos, incluindo Israel e Ucrânia”, porque “o Hamas e Putin representam ameaças diferentes, mas têm algo em comum: ambos querem aniquilar completamente uma democracia vizinha”.

Com perspicácia, Vladimir Putin explicou que “a história do Ocidente é uma crônica de uma expansão sem fim e de uma enorme pirâmide financeira” que “sempre precisa de um inimigo para preservar o controle interno de seu sistema”.

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