Por que o mundo precisa de uma nova ONU
O genocídio em curso em Gaza é um sintoma de impotência do órgão. Um mundo globalizado e em crise civilizatória precisa de uma organização de outro tipo. Primeiros passos: mudar o sede para o Sul Global, frear o comércio de armas e voltar a fortalecer agências humanitárias
Publicado 26/09/2025 às 18:10

Por Vijay Prashad, no Instituto Tricontinental
Existe apenas um tratado no mundo que, apesar de suas limitações, une as nações: a Carta das Nações Unidas. Representantes de cinquenta nações redigiram e ratificaram a Carta da ONU em 1945, com outras aderindo nos anos subsequentes. A Carta apenas estabelece os termos para o comportamento das nações. Não cria e não pode criar um novo mundo. Depende de cada nação viver de acordo com a Carta ou perecer sem ela.
A Carta permanece incompleta. Era necessária uma Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948, e mesmo esta foi contestada, visto que os direitos políticos e civis tiveram que ser eventualmente separados dos direitos sociais e econômicos. Profundas divergências entre perspectivas políticas criaram fissuras no sistema da ONU que impediram uma abordagem eficaz dos problemas do mundo.
A ONU tem agora 80 anos. É um milagre que tenha durado tanto tempo. A Liga das Nações foi fundada em 1920 e durou apenas 18 anos de relativa paz (até o início da Segunda Guerra Mundial na China, em 1937).

A ONU é tão forte quanto a comunidade de nações que a compõem. Se a comunidade é fraca, então a ONU é fraca. Como um organismo independente, não se pode esperar que ela chegue como um anjo e sussurre nos ouvidos dos beligerantes e os detenha. A ONU só pode apitar, sendo um árbitro de um jogo cujas regras são rotineiramente quebradas pelos Estados mais poderosos. Ela oferece um saco de pancadas conveniente para todos os lados do espectro político: é culpada se as crises não forem resolvidas e se os esforços de socorro forem insuficientes. Conseguirá a ONU deter o genocídio israelense em Gaza? Autoridades da ONU fizeram declarações contundentes durante o genocídio, como o Secretário-Geral António Guterres que afirmou que “Gaza é um campo de extermínio — e os civis estão em um ciclo interminável de morte” (8 de abril de 2025). Disse ainda que a fome em Gaza “não é um mistério — é um desastre causado pelo homem, uma acusação moral e um fracasso da própria humanidade” (22 de agosto de 2025). Essas são palavras poderosas, mas não resultaram em nada, colocando em questão a eficácia da própria ONU.

A ONU não é um corpo único, mas duas metades. A face mais pública da ONU é seu Conselho de Segurança (CSNU), que passou a atuar como seu braço executivo. O CSNU é composto por quinze países: cinco são membros permanentes (China, França, Rússia, Reino Unido e Estados Unidos) e os outros são eleitos para mandatos de dois anos. Os cinco membros permanentes (o P5) detêm poder de veto sobre as decisões do conselho. Se um dos membros do P5 não gostar de uma decisão, pode exigir anulação com seu veto. Cada vez que o CSNU recebeu uma resolução pedindo um cessar-fogo, os Estados Unidos exerceram seu veto para anular até mesmo essa medida tíbia (desde 1972, os Estados Unidos vetaram mais de 45 resoluções do CSNU sobre a ocupação israelense da Palestina). O CSNU representa a Assembleia Geral da ONU (AGNU), cujos cento e noventa e três membros podem aprovar resoluções que tentam definir o tom da opinião mundial, mas são frequentemente ignoradas. Desde o início do genocídio, por exemplo, a Assembleia Geral da ONU aprovou cinco resoluções importantes pedindo um cessar-fogo (a primeira em outubro de 2023 e a quinta em junho de 2025). Mas a Assembleia Geral da ONU não tem poder real no sistema da ONU.
A outra metade da ONU é composta por suas inúmeras agências, cada uma criada para lidar com esta ou aquela crise da era moderna. Algumas são anteriores à própria ONU, como a Organização Internacional do Trabalho (OIT), criada em 1919 e incorporada ao sistema ONU em 1946 como sua primeira agência especializada. Outras a seguiram, incluindo o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), que defende os direitos das crianças, e a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), que promove a tolerância e o respeito pelas culturas do mundo. Ao longo das décadas, agências foram criadas para defender e prestar assistência a refugiados, garantir que a energia nuclear seja usada para a paz e não para a guerra, melhorar as telecomunicações globais e expandir a assistência ao desenvolvimento. Seu alcance é impressionante, embora os resultados sejam mais modestos. O escasso financiamento dos Estados do mundo é uma limitação (em 2022, o orçamento total da ONU foi de 67,5 bilhões de dólares, em comparação com mais de 2 trilhões gastos no comércio de armas). Esse subfinanciamento crônico se deve, em grande parte, ao desacordo entre as potências mundiais quanto à direção da ONU e de suas agências. No entanto, sem elas, o sofrimento no mundo não seria registrado nem enfrentado. O sistema ONU se tornou a organização humanitária mundial, em grande parte porque a austeridade neoliberal e a guerra destruíram a capacidade da maioria dos países de realizar esse trabalho por conta própria, e porque as organizações não governamentais são pequenas demais para preencher essa lacuna de forma significativa.
Com a desintegração da União Soviética, todo o equilíbrio do sistema mundial mudou e a ONU entrou em um ciclo de iniciativas de reforma interna: de “Uma Agenda para a Paz” (1992) e “Uma Agenda para o Desenvolvimento” (1994), de Boutros Boutros-Ghali, a “Renovação das Nações Unidas” (1997), de Kofi Annan, e “Nossa Agenda Comum” (2021), “Cúpula do Futuro” (2024) e “Força-Tarefa da ONU 80” (2025), de Guterres. A Força-Tarefa da ONU 80 é a reforma mais profunda imaginada, mas suas três áreas de interesse (eficiência interna, revisão de mandatos e alinhamento de programas) já foram tentadas anteriormente (“já tentamos esse exercício antes”, disse o Subsecretário-Geral de Políticas e Presidente da Força-Tarefa da ONU 80, Guy Ryder). A agenda definida pela ONU concentra-se em suas próprias fraquezas organizacionais e não aborda as questões em grande parte políticas que prejudicam o trabalho da ONU. Uma agenda mais ampla precisaria incluir os seguintes pontos:
- Transferir o Secretariado da ONU para o Sul Global. Quase todas as agências da ONU têm sede na Europa ou nos Estados Unidos, onde o próprio Secretariado da ONU está localizado. Houve propostas ocasionais para transferir a Unicef, o Fundo de População da ONU e a ONU Mulheres para Nairóbi, Quênia, que já abriga o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente e a ONU-Habitat. Já passou da hora de o Secretariado da ONU deixar Nova York e ir para o Sul Global, principalmente para impedir que Washington use a recusa de vistos para punir funcionários da ONU que critiquem o poder estadunidense ou israelense. Com os EUA impedindo a entrada de autoridades palestinas nos EUA para a Assembleia Geral da ONU, já houve apelos para transferir a reunião da AGNU para Genebra. Por que não deixar os Estados Unidos permanentemente?
- Aumentar o financiamento do Sul Global para a ONU. Atualmente, os maiores financiadores do sistema ONU são os Estados Unidos (22%) e a China (20%), com sete aliados próximos dos EUA contribuindo com 28% (Japão, Alemanha, Reino Unido, França, Itália, Canadá e Coreia do Sul). O Sul Global – sem a China – contribui com cerca de 26% para o orçamento da ONU; com a China, sua contribuição é de 46%, quase metade do orçamento total. É hora de a China se tornar a maior contribuinte para a ONU, ultrapassando os EUA, que usam seu financiamento como uma arma contra a organização.
- Aumentar o financiamento interno de cada Estado para trabalho humanitário. Os países deveriam gastar mais em aliviar o sofrimento humano do que em pagar os ricos detentores de títulos. A ONU não deveria ser a principal agência a ajudar os necessitados. Como demonstramos, vários países no continente africano gastam mais com o serviço da dívida do que com educação e saúde; incapazes de fornecer essas funções essenciais, passam a depender da ONU por meio do Unicef, da Unesco e da OMS. Os Estados deveriam desenvolver sua própria capacidade em vez de depender dessa assistência.
- Cortar o comércio global de armas. As guerras são travadas não apenas pela dominação, mas também pelos lucros dos traficantes de armas. As exportações internacionais anuais de armas estão se aproximando de 150 bilhões de dólares, com os Estados Unidos e os países da Europa Ocidental respondendo por 73% das vendas entre 2020 e 2024. Somente em 2023, os cem maiores fabricantes de armas faturaram 632 bilhões de dólares (em grande parte por meio de vendas de empresas estadunidenses para as Forças Armadas dos EUA). Enquanto isso, o orçamento da ONU para a manutenção da paz é de apenas 5,6 bilhões de dólares, e 92% das forças de paz vêm do Sul Global. O Norte Global lucra com a guerra, enquanto o Sul Global envia seus soldados e policiais para tentar prevenir conflitos.
- Fortalecer as estruturas regionais de paz e desenvolvimento. Para diluir parte do poder do Conselho de Segurança da ONU, as estruturas regionais de paz e desenvolvimento, como a União Africana, precisam se fortalecer e suas opiniões serem priorizadas. Se não há membros permanentes no Conselho de Segurança da ONU da África, do mundo árabe ou da América Latina, por que essas regiões deveriam ser reféns do poder de veto do P5? Se o poder de resolução de disputas se concentrasse mais nas estruturas regionais, a autoridade absoluta do Conselho de Segurança da ONU poderia ser um tanto diluída.

Com o genocídio implacável, outra onda de barcos repletos de ativistas da solidariedade – a Flotilha da Liberdade – tenta chegar a Gaza. Em um dos barcos está Ayoub Habraoui, membro do Partido da Via Democrática dos Trabalhadores do Marrocos, que representa a Assembleia Internacional dos Povos. Ele me enviou esta mensagem:
O que está acontecendo em Gaza não é uma guerra convencional – é um genocídio em câmera lenta se desenrolando diante dos olhos do mundo. Estou participando [da flotilha] porque a fome deliberada está sendo usada como arma para quebrar o espírito de um povo indefeso – privado de remédios, comida e água, enquanto crianças morrem nos braços de suas mães. Participo porque a humanidade é indivisível. Quem aceita um cerco hoje aceitará injustiça em qualquer lugar amanhã. O silêncio é cumplicidade no crime, e a indiferença é uma traição aos próprios valores que afirmamos defender. Esta flotilha é mais do que apenas barcos – é um grito global de consciência que declara: não ao cerco de populações inteiras, não à fome de inocentes, não ao genocídio. Podemos ser parados, mas o próprio ato de navegar é uma declaração: Gaza não está sozinha. Somos todos testemunhas da verdade – e vozes contra a morte lenta.
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