Para entender o declínio da França

Perda de influência de Paris, tanto global quanto na Europa, vem de longe – e se acentuou no pós-II Guerra. Mas nada é tão desolador quando a regressão expressa por Macron, seu alinhamento total à OTAN e a avenida que abriu à ultradireita

Manifestantes contra a presença da França no Niger, em manifestação no Dia da Independência do país em Niamey, em 3/8/2023 (AFP)
.

Por Wagner Sousa

MAIS:
O texto a seguir integra a edição nº 5 (maio de 2024) do boletim do Observatório do Século XXI — parceiro editorial de Outras Palavras. A publicação, na íntegra, pode ser baixada aqui

A Segunda Guerra Mundial foi, pode-se dizer, o estertor da primazia europeia nos assuntos mundiais. Os Estados Unidos já eram a maior economia do mundo desde o fim do século XIX, mas, embora crescentemente influentes não tinham até então capacidade para se firmar como poder hegemônico global. A destruição da Europa e de outra grande potência militarista e expansiva da época, o Japão, dá aos EUA a oportunidade de afirmar a sua hegemonia mundial, em contraposição à União Soviética, país que tinha em seu cerne outra velha potência imperial, a Rússia.

No pós-guerra, os impérios coloniais europeus por todo o mundo ruíram, em sua maior parte, e a maioria das colônias se transformou em países independentes. Os movimentos independentistas ganharam força no “Terceiro Mundo”, com a luta legítima de seus povos pela autodeterminação, e também tiveram apoio da nova potência hegemônica, os EUA, que tinham interesse em limitar a influência europeia no mundo como parte do processo da afirmação de sua própria influência.

A Europa Ocidental, no período da guerra fria, com a criação da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), aliança militar liderada e em sua maior parte mantida pelos EUA, inicia a sua integração, com a Comunidade Europeia para o Carvão e o Aço (CECA), em 1951, sob tutela geoestratégica norte-americana, o que segue sendo a realidade até os dias atuais. A França, neste cenário, dá início a um processo de pacificação com a então Alemanha Ocidental, que se materializaria no processo europeu de integração, que, com o decorrer dos anos, ganharia complexidade. Para a Alemanha, sob a liderança do conservador Konrad Adenauer era a maneira de se integrar ao Ocidente e ter alguma “margem de manobra” para agir na política externa. E para a França, após o trauma de duas guerras mundiais, a oportunidade para a paz regional e exercício de liderança política, no que passou a ter destaque o seu poderio nuclear, ausente na Alemanha. A França detém até hoje a vantagem da influência em sua antiga zona colonial, em especial na África, e do fato do francês ser uma língua falada em escala global.

A descolonização no pós-guerra, a crescente integração da França na Europa e o progressivo aumento da influência alemã, a adoção de políticas econômicas neoliberais e, já no século XXI, a afirmação de novas potências na cena global com destaque para China e Índia e retorno de uma velha potência, a Rússia, são os fatores que, em síntese, podem explicar o declínio relativo do poder francês tanto em nível regional quanto global.

No que diz respeito à descolonização, a independência, portanto, da maior parte das áreas diretamente subordinadas a Paris, em especial na África, mas também na Ásia, assim como para outros poderes europeus, como o Reino Unido, representou perda de poder e prestígio. Porém isto não significa que os franceses (e outros europeus) não tenham mantido, a despeito desta importante mudança, bastante influência, em especial na África. Com isso, têm conseguido manter relações privilegiadas. Todavia, tem havido questionamentos a este “neocolonialismo” francês, como no caso do Níger, ex-colônia da qual a França importa urânio a preços baixos. A percepção destas relações injustas e ação, na região, de outras potências, como Rússia e China tem levado a França a perder espaço político no continente.

A integração europeia é o grande feito político francês do século XX. Em um continente até então envolto em guerras contínuas há pelo menos um milênio, a iniciativa inicial já mencionada da Comunidade Europeia para o Carvão e o Aço (CECA), assinada por França, Alemanha Ocidental, Bélgica, Holanda, Luxemburgo e Itália e que evoluiu para a decisão da criação da União Europeia e da moeda comum, o euro, em 1992, com o Tratado de Maastricht, garantiu relações pacíficas e crescente cooperação e articulação política.

Contudo, mesmo no cenário regional, também se vê a perda de peso relativo da França. A esfera monetária europeia é um exemplo. O processo de coordenação cambial que levou ao euro, já nos anos 1990, teve o marco alemão como moeda referência em todo o período. Tornou-se referência inclusive do próprio euro, uma espécie de moeda alemã europeizada. Os Estados Nacionais europeus perderam margem de manobra com a subordinação à rígida política anti-inflacionista do Bundesbank, que foi copiada pelo Banco Central Europeu.

Após um início de políticas nacionalistas e estatizantes, o governo francês do socialista François Miterrand “capitulou” em 1984, com a adoção da política do franco forte e a proposta de aprofundar a integração europeia. O Ato Único Europeu, em 1986, pactuou as medidas liberalizantes de preparação para o Mercado Único, que se constituiu em 1992. A reunificação alemã, em 1990, tem como contrapartida exigida pela França a criação da moeda europeia, o euro. A França ganha assento no Banco Central Europeu, mas se compromete com política monetária de rígido controle inflacionário e austeridade fiscal. Não há, até os dias atuais, políticas europeias fiscais, na escala suficiente, para “compensar” uma moeda europeia que serve melhor às economias mais desenvolvidas do norte da Europa. A integração europeia como mola propulsora de políticas neoliberais favoreceu amplamente a indústria alemã em detrimento dos europeus do sul, menos desenvolvidos, e também prejudicou a economia da França. A partir da adoção do euro, consolidou-se a hegemonia econômica alemã na Europa.

Entre os anos 1990, no pós-guerra fria, e a década de 2010, o mundo teve o “momento unipolar” dos EUA. Mas o cenário mudou consideravelmente. A guerra entre Rússia e Ucrânia deu um novo “sentido existencial” à OTAN e reafirmou a liderança norte-americana no continente. A Europa se volta aos preparativos para a guerra e a Alemanha se coloca, no nível regional, como o país com capacidade de liderar este esforço de rearmamento. A China passou a ser percebida pelos europeus não mais como mercado e investidor, mas como concorrente nas áreas de maior conteúdo tecnológico e comprador indesejado de empresas europeias importantes e estratégicas, além de ameaça política, pelo seu sistema de governo autoritário.

E nesta conjuntura a França se vê internamente com grande insatisfação social pelo empobrecimento de grande parte da população, pelo fracasso das políticas relativas aos imigrantes e seus descendentes, falta de perspectivas aos jovens e crescimento da xenofobia e da extrema direita. O país tem menos influência nos assuntos globais e também europeus. A “solução” futura para a crise pode ser um governo de extrema direita ultranacionalista, que eventualmente pode, inclusive, provocar uma ruptura na União Europeia.

É a dinâmica do declínio relativo da França que deve seguir, e, provavelmente, se aprofundar, a despeito das bravatas do presidente Emmanuel Macron sobre o envio de soldados da OTAN

para defender a Ucrânia e das escolhas políticas que sua população fizer no futuro.

Leia Também:

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *