O dia em que o Equador disse “não” ao medo

Fracasso do governo Noboa no referendo é mais do que um revés doméstico. Maioria rejeitou reaproximação militar com os EUA e avanço de agendas autoritárias na América Latina. Em meio à da violência, manipulação política da insegurança sofreu um revés

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O presidente do Equador, Daniel Noboa, sofreu uma dura derrota neste domingo (16), onde o “não” triunfou nas quatro questões de um referendo e uma consulta popular votados pela população. Os temas diziam respeito, de forma direta ou indireta, à principal bandeira do mandatário, a segurança pública, e o rechaço foi um recado em relação às manobras diversionistas do governo e à ausência de resultados efetivos em outras áreas.

Até o meio da tarde desta segunda-feira (17), com 98% das urnas apuradas, os números contrários à instalação de bases militares estrangeiras no país chegavam a 60,64% e a convocação de uma Assembleia Constituinte para elaborar um novo texto constitucional tinha uma rejeição ainda maior, de 61,65% dos eleitores.

Mesmo outras duas questões que teriam aderência fácil à retórica populista de direita, o fim do financiamento público de partidos e organizações políticas e a redução no número de cadeiras na Assembleia do país (de 151 para 73), foram negadas por 58,07% e 53,47%. Iniciativas defendidas por Noboa com base na argumentação da “economia” de recursos, o apelo da oposição de que seriam duas manobras que ajudariam o presidente a consolidar e ampliar seu poder, aumentando ainda mais a influência do poder econômico na escolha dos representantes, acabou prevalecendo.

Convocação de referendos e consultas não é algo raro no Equador. Foram dez realizados no país nos últimos vinte anos, a maioria por iniciativa dos presidentes em exercício e com o objetivo de obter o apoio popular necessário para promover reformas. O atual presidente já havia feito isso em 2024, quando, em abril, conseguiu levar às urnas e aprovar nove de onze questões relativas a uma série de medidas de com o objetivo alegado de combater a crescente violência no país.

As iniciativas, na ocasião, passaram com uma margem de apoio que variou entre 60% e 73% dos eleitores, dando uma medida da força política do governo naquele momento. Entre elas, a permissão para que as Forças Armadas atuem com a polícia no combate ao crime organizado, algo que já ocorria na prática após a declaração de “estado de conflito armado interno”.

Após sua reeleição, Noboa insistiu na agenda da segurança, mas dobrou a aposta. Com maioria legislativa, tentou “reformar” a Constituição passando por cima dela e encontrou a resistência do Tribunal Constitucional. A exemplo de figuras da direita e da extrema direita de outros países, incluindo o Brasil, começou a fazer enfrentamentos públicos à mais alta corte do país, mobilizou protestos e, em agosto, chegou a liderar uma manifestação onde foram expostos outdoors com os rostos dos nove juízes. Na legenda da peça, lia-se: “Estes são os juízes que estão roubando nossa paz”.

Os magistrados e a Constituição de 2008, tida pelo governo como outro obstáculo para o combate ao crime, se tornaram alvo da retórica política da gestão, que convocou as consultas acreditando que a manipulação do medo das pessoas diante das altas taxas de criminalidade no país justificariam a elaboração de uma nova Carta, ao seu feitio. De quebra, Noboa ainda arruinaria o legado político do ex-presidente Rafael Correa, mandatário à época em que o texto foi elaborado e promulgado.

Além do simbolismo, a Lei Magna equatoriana em vigor garantiu direitos em especial às comunidades indígenas do país, que se uniram na defesa do “não” em vista das ameaças representadas pela votação. Organizações indígenas, camponesas e sociais promoveram o Chaski para os Direitos e a Vida, uma referência à figura dos Chaskis, corredores mensageiros da era pré-colombiana. A caravana viajou do sul ao norte, até chegar a Quito, em 13 de novembro, mobilizando ativistas ao longo do país.

“A Constituição de Montecristi – como é conhecida – acolheu a exigência dos povos”, dizia o presidente da Federação de Organizações Indígenas e Camponesas do Azuay (FOA), Lauro Sigcha, às vésperas da realização da eleição. “Não podemos hoje permitir que os direitos da natureza, os direitos à participação política ou o direito à consulta prévia, livre e informada sejam abolidos.”

Derrota para Trump

Além da disputa institucional interna, a questão referente à permissão da instalação de bases estrangeiras no país, por sua vez, selaria a aproximação do governo equatoriano com os Estados Unidos. Em 2024, Noboa ratificou dois acordos para operações militares conjuntas com os EUA e os dois países mantêm um acordo de interceptação aérea, permitindo a apreensão de drogas e armas na faixa marítima do país sul-americano. Foram realizadas ainda duas visitas da secretária de Segurança Interna, Kristi Noem, ao Equador, sendo a mais recente no início de novembro, com pouca transparência a respeito do que foi discutido de fato.

Diante disso, se tornou ainda mais sintomático o fato de, nas duas províncias onde o governo ter mencionado haver possibilidade de instalar as bases militares estadunidenses, Manabí e Santa Elena, o “não” venceu com mais folga do que na média nacional. Até às 7:30 de segunda-feira, em Manabi a rejeição era de 70,61%, e em Santa Helena, de 66,7%.

Os resultados das urnas, como mostram as conversações entre os integrantes dos governos dos dois países, também significaram uma derrota para Donald Trump, em um contexto no qual o Mar do Caribe se tornou área de intensa movimentação militar dos EUA na alegada “guerra às drogas” empreendida pelo republicano.

“O governo Trump via Naboa como um aliado importante e presumiu que o povo equatoriano concordaria com a restauração da base militar que existia anteriormente na costa”, diz o membro sênior do Diálogo Interamericano e professor adjunto de Estudos Latino-Americanos na Universidade de Georgetown, Michael Shifter, em entrevista à Al Jazeera. “E isto é claramente uma rejeição por parte dos equatorianos. Eles valorizam a sua soberania, a sua independência… São muito desconfiados, muito cautelosos em relação ao governo dos EUA, especialmente porque estão vendo o que se passa com a explosão de barcos e a morte de pessoas nas Caraíbas e também no Pacífico.”

Sem um plano real para o setor da segurança pública, o apoio dos Estados Unidos não foi suficiente nem para que os eleitores se convencessem de que aprofundar tal relação seria uma boa ideia, nem para dar ao governo uma espécie de carta branca no combate à violência com a elaboração de uma nova Carta constitucional. “Os equatorianos decidiram não dar ao governo total liberdade para que uma luta contra o crime avance quase sem controle real. Penso que quando ele [Noboa] disse que com a nova Constituição o Tribunal Constitucional acabaria, isso acabou jogando contra ele”, explica a analista política da Universidade Flacso do Equador, Sofia Cordero, à BBC Mundo. “Foi um erro pensar que a violência que o Equador está vivendo foi por causa da Constituição de 2008.”

Contexto de um governo em declínio

A política de “linha dura” de Noboa não tem obtido resultados e, a despeito das inúmeras versões que busquem justificar o fracasso da gestão, os resultados eleitorais apontam que a população talvez não aceite a mais a mera guerra retórica do presidente, que transfere a culpa da violência para o correísmo, o Tribunal Constitucional ou à própria Constituição. Segundo dados do Ministério do Interior, até o início de novembro houve 6.797 assassinatos no país e este ano deve ser o mais violento no Equador desde 2021, ano que marca o início da onda de criminalidade com fações locais se associando a cartéis da Colômbia e do México.

“Quando a vida cotidiana se aperta, o simbolismos perdem força e atalhos emocionais param de funcionar”, avalia o professor universitário e analista político Matthias Abade Merchan ao site Primicias. “Até mesmo a desinformação oficial chocou de frente com uma realidade teimosa: homicídios de cabeça, massacres recorrentes, Execução orçamentária estagnada, gestão ministerial fraca e decisões macroeconomia que ainda não são sentidas nos bolsos das famílias. Essa lacuna entre fala e dados acabou corroendo a credibilidade da mensagem oficial.”

Os “nãos” parecem ser também uma rejeição, pelo menos nestas circunstâncias, da exploração e manipulação do medo que será a tônica de processos eleitorais como o chileno, de agora, e provavelmente do brasileiro, de 2026, e do negacionismo como estratégia política, no qual os dados entram em conflito com as versões. Não deixa de ser uma ótima notícia para aqueles que desejam um debate político calcado em um horizonte político mais largo, combinado com questões concretas.

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