Flotilha e sumud

A imagem desse comboio que reúne gente de cerca de 50 países, engrossando desde Barcelona, passando por diversos portos, com destino à costa de um outrora gueto transformado em campo de extermínio, suscita devaneios de imensidão e sugere outra forma de vida, comunal e amiga da humanidade

Por Priscila Figueiredo

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Flotilha e sumud


A imagem desse comboio que reúne gente de cerca de 50 países, engrossando desde Barcelona, passando por diversos portos, com destino à costa de um outrora gueto transformado em campo de extermínio, suscita devaneios de imensidão e, na própria estratégia adotada, sugere outra forma de vida, comunal e amiga da humanidade

Por Priscila Figueiredo

I-

Quando soube que a impressionante frota de solidariedade Global Sumud Flotilla teria a envergadura que tem e estava aberta a voluntários, me deu ganas de me alistar (estou de licença quinquenal no trabalho) e partir com ela rumo ao infinito… Parece que cometo duas graves imprecisões usando o verbo alistar, que lembra exército, serviço militar, propósito beligerante, quando o da flotilha é solidário e não violento, e falando em infinito quando o mais certo é que esses barcos darão com a cabeça na parede, tendo de retornar com toda a sua carga indestinada, isso no melhor dos casos, pois não é desprezível o risco que correm de ser interceptados, bombardeados (ataques em dois barcos por drones já ocorreram na última semana), de ter parte de sua tripulação sequestrada, enviada para prisões etc., como aliás já o ameaçou o ministro da Segurança Nacional de Israel Itamar Ben-Gviri, ainda que a frota tenha vindo a adquirir outra magnitude, uma magnitude mundial pela sua representação, em relação às iniciativas anteriores e similares de quebrar por via marítima o bloqueio que impede toda solidariedade aos famintos, doentes, recém-nascidos, mutilados e profissionais de saúde sem recursos para ministrar tratamentos em Gaza. Contudo, justamente pela enormidade do cerco, pela obstinação do opressor e mais ainda pelo fato, ligado a estes, de que ações humanitárias são vistas hoje por Israel e Estados Unidos como provocação bélica, o empreendimento me parece tão arriscado e imperativo, ainda que de estrutura e estratégia de ação muito distinta, como o foram as Brigadas Internacionais na Guerra Civil Espanhola. Me parece, em suma, uma forma de existir com mais integridade. As brigadas eram resistência armada, formada por voluntários estrangeiros e organizadas pelo Komintern (ou Terceira Internacional Comunista), a flotilha é uma iniciativa de ação direta, pacífica, autônoma e auto-organizada, ou melhor, uma coalizão de coletivosii, que não conta com a proteção da marinha dos 50 países nela representados; mas, na constelação atual, quando a possibilidade de deter Israel, que nas últimas 72 horas atacou, além de Faza, naturalmente, Doha, no Catar, e Sanaa, no Yêmen, é mais do que remota, não se cumprindo, senão muito raramente e de forma parcial, o compromisso de Estados signatários de convenções do direito internacional sobre o genocídio de acusá-lo, puni-lo e usar a força armada se necessária, quando a fome é usada como mais um meio de extinção e devora naquele grau que começa a desfazer a fisionomia humana, e isso ocorre muito mais celeremente nas crianças, quando o Estado sionista alardeia uma nova fase de suas operações em Gaza, certamente ainda mais temerária, e 17.000 novos assentamentos na Cisjordânia – esses barcos, lindamente quixotescos pela margem de êxito, mas não pelo problema, muito concreto, que abordam, produzem um tensionamento não desprezível nesse mortificante “nada acontece” em relação a Israeliii. Se o humanitarismo se tornou afrontoso (seu inimigo o vê “não só como uma ação política, mas uma tentativa ilegal de ignorar o bloqueio”iv), então ele não é mais apenas humanitarismo. No caso de Gaza, o “paradigma humanitário” mostrou o quanto já estava com a data vencida.

Ouso dizer que há poucas ações atualmente de tanta importância. Há quem os acuse de voluntaristas, de agir de forma pré-política ou meramente por indignação moral, como se esta dimensão fosse inferior à política e não tivesse alimentado a política em momentos grandiosos na história contemporânea. Por outro lado, sua saída de Barcelona e sua aproximação da tormentosa costa –um novo Cabo das Tormentas, que não é natureza, mas diante do qual todos naufragaram e dificilmente será dobrado com êxito –, prevista inicialmente para acontecer neste 13 de setembro, o que não ocorrerá, pois, por mais de uma razão, ela permanece ainda na Tunísia, deu ensejo a chamadas para manifestações de rua em todo o mundo. Também indicativa do grau de tensionamento produzido e sua enorme virtualidade política, é a declaração de Ricardo Ruddino, trabalhador portuário de Gênova, de que, se perdessem contato com a flotilha, “com nossos colegas”, mesmo que por 20 minutos, bloqueariam tudo, bloqueariam a Europa: “Daqui, de 13 a 14 mil contêineres partem para Israel todos os anos. Bem, não sairá um único prego. Faremos uma greve internacional, bloquearemos estradas e escolas”. Tal decisão foi prontamente acolhida pelo CALP (Coletivo de Trabalhadores do Porto de Gênova), do qual Ruddino faz parte, e pela USB (União Sindical de Base), e a ela ainda se seguiu “uma marcha noturna com tochas que reuniu 40 mil pessoas nas ruas da cidade”v. Conforme reflexão da USB, que tem um de seus integrantes na esquadra, “Os trabalhadores podem desempenhar um papel decisivo em influenciar os acontecimentos e agir como porta-vozes do amplo apoio que esta iniciativa corajosa desfruta (…). Ao bloquear navios e aviões que transportam armas para zonas de guerra, eles conquistaram um papel fundamental e todo o direito de desafiar as políticas de rearmamento e suas consequências em nossas vidas”vi.

Alguns veem na iniciativa apenas uma forma de espetáculo, uma espécie de big brother da solidarização. É preciso dizer que a exposição (ainda assim bastante comedida para sua proporção), bem como o recato com que agem, mantendo-nos ignorantes sobre a identidade e mesmo a quantidade precisa de suas embarcações e tripulantes, são também medidas de proteção. Creio que, antes de ser um espetáculo, e o é também, usando dele recursos para se fazer saltar à vista, eriçar nosso olho, externo e interno, e arrastá-lo por um corredor até alcançar a faixa de terra que vem a ser também uma faixa mental, na qual nossa humanidade possa habitar com os palestinos –antes de ser um espetáculo, a flotilha é uma imagem que faz sonhar.

II-

A imagem desse comboio que reúne gente de cerca de 50 países, engrossando desde Barcelona, passando por diversos portos, com destino à costa de um outrora gueto transformado em campo de extermínio, suscita devaneios de imensidão e, na própria estratégia adotada, sugere outra forma de vida, comunal e amiga da humanidade. Como se pode notar, a palavra sumud é recorrente na designação de alguns coletivos (Flotilha Sumud do Magrebe, comboio Sumud Nusantara), que constituem a coalizão da Global Sumud Flotilla e no próprio nome desta. Em páginas de mídia de todo tipo no Ocidente –verdade que a cobertura pela banda da imprensa liberal tem sido mais que insuficiente para o Acontecimento que é esse comboio –, essa palavra árabe aparece traduzida como “resiliência”. A esse propósito vale lembrar a distinção feita entre ambas as noções por alguém mais que envolvido com o conteúdo prático e as virtualidades terapêuticas desse significante, a psiquiatra palestina Samah Jabr, e antes dela a literatura e o próprio povo palestino, que em certo momento de sua história retirou esse termo do tesouro adormecido de seu léxico e o fez novamente circular na língua viva. Numa das crônicas reunidas no livro Sumud em tempos de genocídio, publicado entre nós pela editora Tabla (organizado e traduzido por Rima Awada Zhara), em 2024, a dra. Jabr assim o explica:

Apesar da dificuldade de obter uma definição precisa e abrangente desse termo, há inúmeros exemplos de sumud em atitudes individuais e coletivas, tanto em situações extremas quanto cotidianas. Embora termos como “resiliência” e “desenvolvimento” de comportamentos adaptativos frente às adversidades sejam atualmente populares na psicologia positiva, os palestinos têm usado a palavra sumud desde a época em que desafiavam o mandato britânico. O termo assumiu significados variados em diferentes estágios da luta palestina e em resposta a eventos complexos: deslocamento massivo e forçado, vida sob ocupação, vida como palestino com cidadania israelense, prisão e exílio. Enquanto a resiliência é um conceito orientado para um estado de espírito, sumud expressa tanto um estado de espírito como uma orientação para a ação.

Portanto sumud não significa apenas a capacidade de sobreviver ou a habilidade de se restabelecer para lidar com o estresse e a adversidade. Sumud é a realização dessas coisas, além da disposição de manter um desafio inabalável à subjugação e à ocupação. Sumud não é uma característica inata ou a consequência de um único evento na vida, mas um sistema de habilidades e hábitos que podem ser aprendidos e podem ser desenvolvidos. Sumud cria as bases de um estilo de vida de resistência, agarrando-se à terra como uma oliveira profundamente enraizada, preservando a própria identidade, buscando autonomia e liberdade de ação, e preservando a narrativa palestina e sua cultura diante da destruição.

Aprendi esse conceito tardiamente, e tardiamente é aqui em dois sentidos. No primeiro, é porque o aprendi “no meio do caminho da nossa vida”, quando eu deveria tê-lo conhecido bem antes, e o segundo porque, quando ocorreu, em abril de 2024, já estava em curso o período mais trágico da vida palestina desde a Nakba (1947). Há uma sensação estranha em ser apresentado com atraso a um conceito na hora em que ele está bambeando um pouco nas pernas por conta de uma investida exterior com cuja magnitude ele não contava. Já a ideia de resiliência é familiar para mim, familiar para nós, ocidentais, desde pelo menos os anos 90 do século 20, difundida furiosamente tanto quanto a ideologia neoliberal, da qual, aliás, é um emissário. Vinda da física, passando pela ecologia nos anos 70 e aportando em domínios como a “psicologia positiva”, nos anos 80, engrolando a língua de managers, coaches, psicólogos de RH, CEOs, essa noção, que frequenta há muito a política, a economia, academia (a do fitness e a dos estudos superiores), a imprensa e a vida cultural, propagandeada como virtude da esquerda à extrema-direita, supõe na verdade todo um modo de subjetivação, como sumud também o supõe (“um sistema de habilidades e hábitos que podem ser aprendidos e podem ser desenvolvidos”) ainda que de tipo muito diferente, senão oposto. O homo resiliens estabelece o padrão pelo qual “a identidade de uma pessoa, de uma nação ou de um sistema em geral não é danificada por experiências traumáticas, mas, ao contrário, é fortalecida pela exposição a mudanças radicais”vii. O sangue nos olhos, útil para a concorrência, não contradiz sua docilidade, a adaptação contínua à catástrofe contínua e ao trabalho heterônomo.

A ocupação impediu de muitas formas, como a fragmentação territorial, que a Palestina realizasse a mesma integração capitalista do seu ocupante. Sumud tem brandas energias tradicionais, pré-capitalistas, significando não “apenas a capacidade de sobreviver ou a habilidade de se restabelecer para lidar com o estresse e a adversidade” (para repetir as palavras de Jabr, que aponta aí um valor psicológico e moral), mas também a “disposição de manter um desafio inabalável à subjugação e à ocupação” (com um sentido mais político agora). No entanto, num texto, agora datado de novembro de 2023, de uma fala proferida para o Coletivo Antipsiquiátrico Antonin Artaud, na Itália, também publicado no livro, lemos:

Sou psiquiatra, com longa experiência de trabalho com profissionais de saúde mental em Gaza. Mas não estou aqui para falar sobre o impacto inimaginável do genocídio na saúde mental dos palestinos ou para romantizar a sumud palestina. Estou aqui para alertá-los sobre o colapso iminente do nosso senso de humanidade. Como palestina sem cidadania e que enfrenta atualmente um nível sem precedentes de repressão israelense em Jerusalém e na Cisjordânia, apelo aos princípios universais de vocês como seres humanos para ajudar a expor a realidade dolorosa que se desenrola em Gaza, um lugar que está sendo marcado por um dos capítulos mais sombrios da história da humanidade.

Duas frases nessa passagem me chamam a atenção mais que todas: “Mas não estou aqui para falar sobre o impacto inimaginável do genocídio na saúde mental dos palestinos ou para romantizar a sumud palestina” e “apelo aos princípios universais de vocês”. A primeira se recusa a tratar por dos temas principais de sua reflexão; contudo, ao dizer que não quer “romantizar a sumud”, é como se esse valor, retirado do belo arcabouço comunitário e crescentemente politizado ao longo do tempo, exigisse, com o genocídio, uma precaução inédita em sua exposição ou proclamação, como se o choque extremo da realidade lhe tivesse tirado um pouco a cores; a segunda pede aos universais do Ocidente que honrem a sua palavra de universais. Já na “Carta aberta aos profissionais de saúde em Gaza”, publicada no mesmo mês daquele ano, se por um lado ela reconhece que “o que enfrentamos é a futilidade das nossas ferramentas e do nosso trabalho como profissionais da área da saúde mental” em meio a bombardeios, ausência de lugar seguro, água ou comida, recorre ainda à velha noção, convertida por ela desde há muito em conceito operativo de sua clínica e reflexão, para explicar a milagrosa determinação de seus colegas:

Seu sumud é o pilar da nossa resiliência como profissionais de saúde mental na Palestina, ou em qualquer lugar do mundo onde as pessoas aspiram à liberdade. […] Caros colegas, construam seu apoio psicológico sobre esses conceitos sempre que eles são evocados. Utilizem a terapia coletiva e estratégias de psicologia da libertação […]. Apesar da extensão da destruição, ainda temos a capacidade de manter respeito, interesse e empatia uns pelos outros”.

Isso há quase dois anos.

A flotilha, ao emprestar sumud para sua autodesignação, não só a homenageia e homenageia a cultura em que surgiu, como a amplia para nomear tudo que é ainda possível de humanidade (“sumud global”). E talvez mais curioso e mais bonito seja o fato de que retira força e inspiração dessa palavra – velha senhora obstinada e fiel a sua oliveira, a quem no entanto as duras provações desde outubro de 2023 tornaram um tanto fatigada –para a aventura internacional, antissistêmica e anti-imperialista que empreende.

i Ele apresentou um plano para Benjamin Netanyahu e três outros ministros, como Israel Katz, da Defesa, divulgado no início do mês, para encarcerá-la em prisões de alta segurança, Ketziot e Damon, por tempo ilimitado e sem concessões, como uso de celular, rádio, TV ou comida especial, alegando que ela apoiaria o Hamas e colocaria em risco a soberania do Estado de Israel (https://www.jpost.com/israel-news/article-865898, última consulta em 11/09/2025).

ii https://www.esquerdadiario.com.br/A-Global-Sumud-Flotilla-parte-rumo-a-Gaza-E-preciso-parar-este-genocidio-que-e-intoleravel (última consulta em 11/09/2025)

iii A indiferença a esse compromisso, com rara exceção, como a da África do Sul, Espanha, Colômbia, dos mais de 150 Estados que subscreveram, por exemplo, a Resolução n. 260 da ONU deu ensejo à criação por 100 acadêmicos do Tribunal Internacional de Gaza, sem força de lei, porém. Esse tribunal há algumas semanas apelou para que houvesse intervenção armada contra Israel: “Em uma coletiva de imprensa em Istambul na última segunda-feira (18), o presidente do tribunal, Richard Falk – professor emérito judeu-americano de direito internacional na Universidade de Princeton e ex-relator especial da ONU sobre direitos humanos nos territórios palestinos – apelou aos governos para contornarem o Conselho de Segurança da ONU e autorizarem a intervenção por meio da Assembleia Geral. ‘Se não tomarmos medidas de natureza séria e drástica neste momento, qualquer coisa feita de forma mais moderada será tarde demais, tarde demais para salvar as pessoas sobreviventes que já foram traumatizadas por mais de 22 meses de genocídio’, disse Falk (https://fepal.com.br/tribunal-de-gaza-pede-intervencao-armada-urgente-para-deter-genocidio-de-israel/, consulta em 10/09/2025). Gustavo Petro anunciou há alguns dias que pediria na Assembleia Geral da ONU a intervenção de uma Força de Paz, medida que, conforme a Resolução n.260, está entre as cabíveis pelos Estados signatários.

iv https://www.jpost.com/israel-news/article-865898 (última consulta em 11/09/2025)

v (https://horadopovo.com.br/estivadores-italianos-bloquearao-porto-de-veneza-caso-israel-ataque-a-frota-humanitaria-rumo-a-gaza/, última consulta em 11/09/2025).

vi https://phmovement.org/pt-br/flotilha-global-sumud-esta-pronta-para-acabar-com-o-bloqueio-de-israel-faixa-de-gaza (última consulta em 10/09/2025)

vii V. de Rodrigo de La Fabián Albagli e Mauricio Sepúlveda Galeas “Gubernamentalidad postsecuritaria y resiliencia: una nueva metafísica de la identidad”, in Athenea Digital, 18 (3), novembro de 2018.

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