Fiori: o ciclo que se fecha na Ucrânia

Vitória da Rússia. Divórcio EUA-Grã Bretanha. Desmonte da União Europeia. Em possível virada histórica, balança o “bloco ocidental”, que venceu o comunismo, associou-se à era neoliberal e exerceu hegemonia planetária por 200 anos

Imagem: CIFTCI
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Por José Luís Fiori

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O texto a seguir integra o número 10 (março de 2025) do boletim do Observatório do Século XXI, parceiro editorial de Outras Palavras. A edição examina a história e as perspectivas geopolíticas e econômicas da América do Sul. Pode ser baixada e lida aqui.

Titulo original:
A vitória russa, o divórcio inglês e o desmonte europeu

Ao se completarem dois meses da nova administração americana, o histrionismo de Donald Trump e a perplexidade dos europeus criam uma impressão duplamente falsa com relação à Guerra da Ucrânia. Por um lado, o presidente americano se comporta como se os EUA fossem o “país ganhador”, exigindo uma “reparação de guerra” do país derrotado, a Ucrânia, que foi seu grande aliado até anteontem. Por outro, os europeus, em estado de pânico, atribuem à traição de Trump e à sua decisão de acabar com a guerra, a responsabilidade por sua divisão e derrota eminente. Como se fosse possível fazer, desfazer e refazer a história real através apenas da manipulação de “narrativas” que são inventadas e repetidas incansavelmente pelas potências que se acostumaram a controlar o “imaginário coletivo” do sistema mundial.

Na verdade, o que estamos assistindo é o reconhecimento norte-americano de um fato consumado: a vitória da Rússia no campo de batalha contra as tropas da Ucrânia, e contra os

armamentos da OTAN, mesmo que durem ainda a resistência e os ataques pontuais dos ucranianos. Neste momento, os EUA estão exigindo que seus vassalos se rendam, na forma inicial de um “cessar-fogo”, mas na verdade se trata de uma vitória russa sobre os próprios EUA, que forneceram a maior parte do equipamento bélico, base logística, apoio de inteligência e financiamento, que permitiram aos ucranianos resistirem durante três anos, promovendo uma escalada militar que chegou às portas de uma guerra atômica, no final do governo de Joe Biden.

Neste momento, a situação ainda está muito confusa, mas mesmo assim já é possível reconstruir os caminhos e principais passos que levaram a essa guerra. Uma história que começou em 1941, com a assinatura da Carta do Atlântico, pelo presidente americano, Franklin Delano Roosevelt, e pelo primeiro-ministro britânico, Winston Churchill, em Newfoundland, nas cercanias do Canadá. Carta Atlântica que se transformou na “pedra

fundamental” da “aliança estratégica” entre EUA e Grã-Bretanha (GB), que foi vitoriosa na Segunda Guerra Mundial, e que foi em seguida sacramentada pelo bombardeio atômico norte-americano das cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki. Uma aliança inquebrantável que durou 80 anos e que esteve na origem do projeto globalista de construção de um mundo unificado e tutelado pelos anglo-saxões, seguindo as regras e valores da “civilização

ocidental”.

Esse projeto anglo-saxônico mudou de rumo, entretanto, depois do discurso de Winston Churchill, em Fulton, Missouri, EUA, em março de 1946, quando o ex-primeiro-ministro britânico propôs aos seus aliados norte-americanos a construção de uma barreira de contenção militar – que ele chamou de “cortina de ferro” – separando o “mundo ocidental” da zona de influência comunista da União Soviética. Uma política inglesa, de demonização e confronto permanente com a Rússia, que foi formulada pela primeira vez logo após o Congresso de Viena, em 1815, um século antes da Revolução Soviética. A grande novidade desta proposta,

portanto, foi o convencimento e mobilização do governo norte-americano de Harry Truman a favor dessa estratégia que deu início à Guerra Fria, em 1947, seguida pela formação de um bloco dos países do Atlântico Norte, consagrado pela criação da OTAN, em 1949, e pela inauguração da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, em 1951, embrião da União Europeia, que viria a ser formalizada em 1993.

Quarenta anos depois, no momento da queda do Muro de Berlim, em 1989, e da dissolução da União Soviética, em 1993, as duas grandes potências anglo-saxãs voltaram ao seu projeto de

1941. Foi quando se falou em “fim da história” e da vitória definitiva da democracia e do capitalismo liberal e anglo-saxônico, sobretudo depois da arrasadora vitória militar dos EUA na Guerra do Golfo, de 1991/2, quando os americanos expuseram ao mundo sua nova tecnologia de guerra teledirigida, equivalente às bombas de Hiroshima e Nagasaki, do ponto de vista do impacto sobre o sistema mundial.

A partir de então, os EUA se desfizeram do seu compromisso com as Nações Unidas, e com as regras de funcionamento do seu Conselho de Segurança, e transformaram a OTAN – progressivamente – no seu braço armado de intervenção nos Balcãs, no Oriente Médio, na Ásia Central e Europa do Leste”1. Primeiro foi a Bósnia, em 1995, e depois a Iugoslávia, em 1999, que foi bombardeada pela OTAN sem a aprovação do Conselho de Segurança da ONU. E o mesmo voltou a acontecer em 2003, quando EUA e Grã Bretanha invadiram e destruíram o Iraque, apesar do veto da Assembleia Geral e do Conselho de Segurança das Nações Unidas,

e da oposição de Alemanha, França e de vários outros aliados tradicionais dos anglo-saxões. Começaram ali as “guerras sem fim” dos EUA, da GB e da OTAN no Grande Oriente Médio, e se estenderam até sua e “retirada” do Afeganistão, em 30 de agosto de 2021.

E o mesmo aconteceu na Europa, onde a OTAN se expandiu de forma contínua, multiplicando suas bases militares na direção da Europa do Leste da fronteira ocidental da Rússia. Apesar da

promessa do secretário de Estado norte-americano James Baker ao primeiro-ministro russo Mikhail Gorbachev, feita em 1991, logo após o fim da Guerra Fria, de que a OTAN não avançaria na direção da Europa do Leste, em 1994, o presidente Bill Clinton autorizou sua primeira expansão, e em 1999 a Otan começou sua “marcha para o Leste”, com a incorporação de Hungria, Polônia e República Tcheca. E em 2004, a OTAN incorporou Estônia, Lituânia, Letônia, Bulgária, Eslovênia e Eslováquia, enquanto experimentava suas

novas formas de intervenção através das chamadas “revoluções coloridas” contra governos desfavoráveis aos interesses americanos – como foi o caso da “revolução das rosas”, na Geórgia, em 2003; da “revolução laranja” na Ucrânia em 2004; da “revolução das

tulipas” no Quirguistão, em 2005.

Por fim, em abril de 2008, na cidade de Bucareste, a OTAN anunciou seu xeque-mate, com a incorporação da Geórgia, e sobretudo da Ucrânia, que Zbigniew Brzezinski (o grande

geopolítico do Partido Democrata norte-americano), considerava ser uma peça central da disputa dos EUA com a Rússia, pelo controle da Europa do Leste e de todo o continente eurasiano. Tão importante que Brzezinski chegou a propor que a Ucrânia fosse conquistada pelos EUA e pela OTAN, até no máximo 20152 – o que acabou acontecendo depois do golpe de Estado de 2014, que derrubou o governo eleito de Viktor Yanukovych, considerado hostil

pelos EUA e pela OTAN.

A Rússia protestou inutilmente contra esses sucessivos avanços da OTAN sobre sua fronteira ocidental. E, em 2007, na Conferência de Segurança de Munique, o presidente russo, Vladimir Putin, advertiu pessoalmente as potências ocidentais de que a Rússia não toleraria os avanços da OTAN na Geórgia e na Ucrânia. Sua advertência foi ignorada uma vez mais e, no ano seguinte, a Rússia foi obrigada a fazer uma primeira intervenção militar direta na República Autônoma da Ossétia do Sul, para impedir sua incorporação à OTAN. E mais à frente, em 2015, voltou a intervir diretamente contra o golpe de Estado apoiado pelos EUA e pela OTAN, ocupando e incorporando a Crimeia ao território russo.

Por fim, em 15 de dezembro de 2021, a Rússia entregou um memorando às autoridades americanas e da OTAN, e aos governantes da União Europeia, propondo a interrupção da expansão da OTAN, o afastamento de suas tropas das fronteiras russas e a desmilitarização da Ucrânia. Não houve resposta a esse memorando e o silêncio das “potências ocidentais” foi o estopim que deflagrou a invasão russa do território da Ucrânia, iniciando de fato

uma “proxy-war” entre Rússia e EUA.3

Três anos depois do início da guerra, já não cabe dúvida de que a Rússia venceu no campo de batalha, mas também no campo da competição tecnológico-militar com relação aos equipamentos fornecidos aos ucranianos pelos EUA e pelos países da OTAN. Além disso, a Rússia também venceu a guerra econômica contra as sanções que lhe foram impostas pelas potências ocidentais, e sua economia vem crescendo sistematicamente à frente dos demais

países europeus.

Não há dúvida de que a vitória russa se acelerou e consolidou nos dois últimos meses: i) com a saída dos EUA da guerra e a ruptura do seu “casamento estratégico” com a Grã Bretanha; ii) com a divisão interna da OTAN e a ameaça de saída dos EUA; iii) com a fragilização da União Europeia, depois do seu afastamento dos EUA; iv) e finalmente, com o desmonte do “bloco ocidental” e de sua hegemonia mundial exercida nos últimos 200 anos.

Como consequência, o mais provável é que as negociações post-bellum entre Rússia e EUA se transformem no primeiro passo de uma nova “ordem mundial multipolar” e “pós-europeia”, a mais importante de todas as reivindicações e vitórias russas.

1Victoria Nuland, a diplomata americana que ficou famosa por sua participação direta pessoal a favor do golpe de Estado na Ucrânia, em 2014, e que foi também representante permanente dos EUA na OTAN, de 2005 a 2008, declarou numa entrevista ao jornal Financial Times, em 2006, que “os EUA querem ter uma força com projeção global, para operar em todo o mundo, da África ao Oriente Médio e bem mais além. O Japão, como a Austrália tem vocação, igual à das nações da OTAN, para fazer parte desta força” (in Chauprade, A., Chronicque du Choc des Civilizations, Chronique Editions, Paris, 2013, p. 69).

2 Brzezinski, Z, The Grand Chessboard. American Primacy and its Geostrategical

Imperatives, Basic Books, New York, 1997

3 O novo secretário de Estado norte-americano, Marco Rubio, reconheceu recentemente

que a Guerra da Ucrânia foi na verdade uma “guerra por procuração” entre Rússia e

EUA., in UOL Noticias (https://noticias.uol.com.br), 6/3/2025

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2 comentários para "Fiori: o ciclo que se fecha na Ucrânia"

  1. Eu fico fascinado e espantado ao mesmo tempo os EUA e a Europa eram os donos da ordem hoje atualmente perderam o poder de domínio não podem mais ditar as regras apenas latem para tentar intimidar os países gigantes que se acordaram com mais poder e sutileza CHINA Rússia Índia e o Brasil que está se acordando finalmente vai colher frutos do nosso poder.
    Estão enganados não repeti comentário este é um comentário genuíno!

  2. Eu fico fascinado e espantado ao mesmo tempo os EUA e a Europa eram os donos da ordem hoje atualmente perderam o poder de domínio não podem mais ditar as regras apenas latem para tentar intimidar os países gigantes que se acordaram com mais poder e sutileza CHINA Rússia Índia e o Brasil que está se acordando finalmente vai colher frutos do nosso poder.

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