A Europa em modo III Guerra

Depois de devastar o Estado de bem-estar social, UE multiplica gastos militares, tenta expandir o conflito na Ucrânia e inicia giro contra a China. Exame do cenário geopolítico sugere: é estratégia suicida, determinada pela submissão aos EUA

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Por Fabian Scheidler, em El Salto | Tradução: Antonio Martins

Nesse exato momento, a Comissão Europeia, em Bruxelas, esforça-se para boicotar a presidência rotatória do Conselho da UE, exercida pelo primeiro-ministro húngaro, Viktor Orbán. O pano de fundo: as viagens de Orbán a Kiev, Moscou e Pequim, com objetivo de negociar um acordo de cessar-fogo na Ucrânia, estão enfurecendo os líderes da UE e os governos de Berlim, Paris e outras capitais.

Certamente há muito a dizer contra o chefe de Estado húngaro e amigo de Trump, responsável por uma série de déficits do Estado de Direito em seu país de origem. Mas acusá-lo de uma iniciativa diplomática que outros Estados-membros não quiseram ou não puderam lançar até agora demonstra até que ponto a UE se afastou de sua antiga pretensão de ser uma força de paz.

O fato de que, mesmo no mais alto nível, esteja sendo considerada a possibilidade de abolir normas essenciais da UE, tais como, neste caso, a rotação da Presidência do Conselho, com o objetivo de penalizar Orbán por suas viagens, é um mau presságio para o futuro da União Europeia. Chama a atenção que justamente este bloco, que poderia ser completamente devastado por uma possível escalada da guerra na Ucrânia, não só não faça nada para evitar esse perigo e deter a matança, mas também sabote as tentativas diplomáticas de um Estado membro.

Sabe-se há muito tempo que a Ucrânia não pode vencer a guerra e que, na melhor das hipóteses, alcançará um empate. É algo já dito claramente em novembro de 2022, pelo então chefe do Estado-Maior da Defesa dos EUA, general Mark Milley, e um ano depois pelo comandante supremo das forças armadas ucranianas, general Valery Salushnyi. Desde então, diminuem a cada dia as perspectivas de a Ucrânia manter um Estado soberano e razoavelmente funcional. Mas a UE não quer reconhecer essa simples realidade.

Pior. Em 17 de julho, como seu primeiro ato oficial, o novo Parlamento da UE [eleito no início de junho] aprovou uma resolução na qual se comprometeu a prestar apoio militar à Ucrânia até a reconquista de todos os territórios ocupados, independentemente do tempo que isso leve (isto é, de quantas pessoas morram no processo). Nem é preciso ser um especialista militar para perceber que a reconquista completa do Donbass e da Crimeia é completamente irreal, inclusive devido aos enormes problemas de recrutamento do exército ucraniano.

No entanto, a resolução vai além: segundo ela, a União Europeia “mostra-se firmemente a favor de anular as restrições ao uso de sistemas de armamento ocidentais contra alvos militares em território russo”. Com isso, o Parlamento aceita explicitamente uma escalada em escala europeia, incluindo a possibilidade de uma guerra nuclear. Também insta todos os Estados membros a destinar permanentemente pelo menos 0,25% de seu PIB ao rearmamento da Ucrânia (além de aumentar seus próprios orçamentos militares), a treinar ainda mais soldados ucranianos e a “impulsionar” suas indústrias de defesa. Nada se menciona sobre iniciativas diplomáticas.

A resolução parlamentar europeia atesta uma perigosíssima mistura de escapismo da realidade e militarismo desenfreado, que lembra a época dos “sonâmbulos” antes do estouro da Primeira Guerra Mundial. No entanto, em quase todo o resto do mundo, sabe-se há muito que só as negociações oferecem uma saída à Ucrânia.

Até mesmo Volodymyr Zelensky disse, após a fracassada cúpula de paz suíça à qual a Federação Russa não foi convidada, que a Rússia deveria participar de um próximo encontro. Ademais, o ministro de Assuntos Exteriores ucraniano, Dmytro Kuleba, esteve em Pequim para discutir as perspectivas de paz com o governo chinês. O tão propalado argumento de que é impossível negociar com alguém como Vladimir Putin foi há muito tempo refutado.

Como se sabe, do final de fevereiro ao início de abril de 2022 foram realizadas intensas negociações entre ambas as partes, sob mediação da Turquia. Estas desembocaram em um plano de dez pontos, que previa a renúncia da Ucrânia a pertencer à OTAN e a retirada da Rússia até as linhas de 23 de fevereiro de 2022. Naquela época, também o primeiro-ministro israelense, Naftali Bennett, levou a cabo negociações secretas, nas quais participaram os chefes de Estado da Rússia e da Ucrânia. No entanto, elas foram interrompidas depois que o então primeiro-ministro britânico Boris Johnson visitou Kiev, em 9 de abril. Segundo tudo o que sabemos pelos relatórios da mídia (ocidental), a mensagem de Johnson na época era que a Ucrânia deveria parar de negociar e começar a lutar.

Mas em vez de confiar na diplomacia — pelo menos agora, mais de dois anos depois, quando a perda de vidas humanas já sobe a dezenas de milhares —, os Estados da UE aderiram cegamente a um programa de rearmamento e confronto que só pode ser tachado de loucura. Agora, após as decisões tomadas na cúpula da OTAN em Washington, serão implantados na Alemanha (pela primeira vez desde a década de 1980) novos mísseis de médio alcance, que podem ser equipados com armas nucleares. Isso não aumentará a segurança da Alemanha; pelo contrário, a tornará um alvo potencial de ataques, em caso de escalada. Não houve debate público nem participação parlamentar nesse passo cujas consequências poderiam ser fatais.

Num golpe de mão e sem pestanejar, o chanceler alemão Olaf Scholz, cujo partido social-democrata (SPD) obteve apenas 13,9% dos votos nas eleições da UE, e cuja legitimidade está enormemente debilitada, aprovou outra onda de rearmamento, com consequências imprevisíveis. Uma delas: está adiada uma nova edição do Tratado de Forças Nucleares de Alcance Intermediário, sobre a proibição de mísseis de alcance médio na Europa. Uma primeira versão foi assinada por Ronald Reagan e Mikhail Gorbachev em 1987, mas cancelada por Donald Trump em 2019 e agora relegada a um futuro distante

É difícil enxergar de que forma o armamento militar maciço pode levar a uma Europa mais segura. A OTAN já tem mais de dez vezes o orçamento militar da Rússia: 1,47 triilhões de dólares contra os 140 bilhões ilhões estimados de Moscou. Os dirigentes russos já teriam que ser suicidas para atacar um país da OTAN; não sendo necessário para dissuadi-los um armamento vinte vezes maior….

Aliás, esse incremento do investimento militar seguirá sendo feito às custas da coesão social e da estabilidade política. Em vez de investir adequadamente nos sistemas da educação e da saúde, devastados pelos ajustes neoliberais, e em vez de adaptar o transporte público a um futuro sustentável, a cada ano se injeta mais dinheiro no setor econômico que é, entre todos, o mais destrutivo e o mais prejudicial para o clima: o militar.

No entanto, se o sistema político já não oferece aos cidadãos perspectivas de futuro, mas apenas cortes sociais e retórica bélica, a confiança nas instituições políticas continuará a se erodir e as forças de ultradireita ganharão ainda mais apoio.

Em vez da cooperação internacional — cujo valor ficará drasticamente diminuído, segundo o projeto de orçamento federal alemão para 2025 —, chegarão aos países do Sul Global ainda mais armas de produção alemã e europeia. Elas recrudescerão os conflitos existentes lá provocando uma maior instabilidade nas respectivas regiões.

Rearmamento contra a China


A resolução civil de conflitos desempenha um papel cada vez mais secundário na política externa da UE, que um dia foi laureada com o Prêmio Nobel da Paz. Uma nova rodada de rearmamento maciço na Europa já não se dirige só contra a Rússia mas, cada vez mais, também contra a China.

Como presidente reeleita da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen anunciou que utilizaria todos os meios — incluindo os militares — contra a China em caso de um conflito sobre Taiwan. A UE segue assim, mais uma vez, as diretrizes estratégicas de Washington. O presidente Barack Obama já havia lançado em 2012 o lema de um “giro para a Ásia” e aumentado a militarização da região do Pacífico. Agora, os navios de guerra do exército alemão também navegam pelo mar da China Meridional, para grande preocupação de Pequim. O que diriam os políticos da UE se aparecessem navios de guerra chineses no Mediterrâneo ou no Mar do Norte?

O desafio a Pequim tem um contexto simples: os Estados Unidos temem ser substituídos em breve pela China, como potência econômica dominante em escala mundial. Em termos de poder aquisitivo, o PIB da China já é superior ao dos EUA e o dos países BRICS é superior ao dos países do G7, que durante muito tempo acreditaram poder falar em nome do resto do mundo. Os Estados Unidos também temem a possível perda a longo prazo da vantagem do dólar como moeda de reserva, como admitiu recentemente a secretária do Tesouro estadunidense, Janet Yellen. Isso privaria os EUA de um instrumento crucial para financiar seus exorbitantes déficits de comércio exterior.

Impulsionados pelas sanções decretadas por Washington, a Rússia, a China e outras nações do Sul Global estão desenvolvendo sistemas de pagamento internacionais que podem dispensar o dólar. A China também está se atualizando tecnologicamente. A quadruplicação das tarifas de importação sobre os carros elétricos chineses, que agora podem chegar a 100%, demonstra que a indústria automobilística estadunidense já não está à altura da concorrência.

Em vista desses acontecimentos, tanto republicanos quanto democratas jogam cada vez mais a carta militar para “colocar a China em seu lugar”. Para isso, tentam instar os Estados da UE a uma nova rodada de rearmamento que mantenha a Rússia sob controle e viabilize ações conjuntas contra a China. No entanto, a ideia de que o “Ocidente coletivo” pode impedir militarmente que a China ganhe mais peso econômico e político é uma ilusão muito perigosa. Será verdade que os europeus pretendem travar uma guerra contra a terceira potência nuclear do mundo, com uma população de 1,3 bilhões de habitantes? Não só seria impossível ganhá-la, como provavelmente significaria o fim da humanidade tal como a conhecemos.

A única opção racional nessa situação é trabalhar por uma nova arquitetura de segurança global, que deve incluir a China e a longo prazo, quando acabar a guerra da Ucrânia, também a Rússia. Essa perspectiva também é inescapável porque as grandes tarefas do futuro, sobretudo a superação da crise ecológica e o abismo entre ricos e pobres, não são possíveis sem uma cooperação intensiva.

O planeta e a humanidade não podem suportar outro enfrentamento entre os blocos. A UE tem, ainda, uma chance de escolher. Quer se afundar em uma escalada desesperada e altamente perigosa junto a um império estadunidense que desmorona, destruindo assim os restos de seu próprio modelo social e de paz? Ou será capaz e terá vontade política para adotar uma posição independente, mediadora e pacificadora, que favoreça a diplomacia e a cooperação em lugar da confrontação? Dessa escolha depende não só o destino da Europa, mas também o de uma parte considerável do resto do mundo.

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