EUA e China em tensão nas Filipinas
Na região do mundo onde é mais delicado definir as fronteiras marítimas, um poder externo se insinua. Washington quer reforçar seu poder naval em todo o mundo e tolher a influência de Pequim. Manila dispõe-se a ser o pivô desta perigosa interferência
Publicado 19/06/2024 às 19:44 - Atualizado 21/06/2024 às 06:33
Por Wagner Sousa
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O texto a seguir integra a edição nº 5 (maio de 2024) do boletim do Observatório do Século XXI — parceiro editorial de Outras Palavras. A publicação, na íntegra, pode ser baixada aqui
1.Hegemonia, estratégia global e conflitos regionais
A região oceânica do Mar do Sul da China provavelmente é a mais problemática do mundo em termos de definição das fronteiras marítimas. China, Vietnã, Taiwan, Filipinas, Malásia, Singapura e Brunei estão diretamente envolvidos em uma disputa na qual as reivindicações relativas ao “mar territorial” ou a “zona de exploração de econômica” de cada país se superpõem. Como aparece no mapa abaixo:
A região é crucial para os interesses da China, por onde passa a maior parte de seu comércio exterior. Vinte por cento do comércio mundial passa por ali. É um espaço relevante também para a atividade pesqueira e se especula que há depósitos de petróleo e gás. É vista como essencial para os chineses também para a sua defesa. O país tem construído ilhas artificiais para assegurar a presença de sua marinha. Essa assertividade chinesa na defesa de seus interesses, tem despertado a oposição de outros países da região, com suas também entendidas como legítimas reivindicações territoriais marítimas. E oposição também dos Estados Unidos, nação hegemônica nos oceanos do planeta.
Esta região é, no que diz respeito à economia, altamente integrada. E é uma integração com destaque para o setor industrial, com os países da região fornecendo componentes para a indústria chinesa. Isto torna a questão mais complexa aos países da região em relação à China e este “pêndulo” entre afirmação da soberania marítima e acomodação com o gigante asiático. É a tensão entre relações econômicas e políticas importantes com o país mais relevante em termos regionais e a necessidade de resguardar o que é entendido como interesse nacional legítimo, tanto econômico, como de segurança.
E tem-se aqui o papel dos Estados Unidos. A ideia de “liberdade de navegação”, nas chamadas “águas internacionais” tem sido a principal justificativa norte-americana para se contrapor, construindo alianças com os países da região, às intenções de jurisdição marítima da China. Para tanto os EUA têm firmado acordos com os países deste entorno e feito exercícios com a participação das suas marinhas. Os encontros entre as marinhas da China, dos EUA e dos países da região não redundaram até agora, felizmente, em qualquer incidente mais sério, mas os riscos aumentam à medida que essas ocorrências vêm se tornando mais frequentes.
Controlar os oceanos é uma das capacidades da potência hegemônica, os Estados Unidos. Para tanto, administram uma vasta rede global de instalações militares, porta-aviões, satélites e possuem acordos militares em todos os continentes. No “Indo-Pacífico” (conceito criticado por muitos por unir os Oceanos Pacífico e Índico unicamente para atender ao interesse de predomínio norte-americano) vêm celebrando os mais importantes (e incentivando aliados a fazê-lo) acordos militares, como o Aukus (Austrália, Reino Unido e EUA), o QUAD (Estados Unidos, Japão, Índia e Austrália), o acordo trilateral entre EUA, Japão e Coréia do Sul, o recente acordo entre Austrália e Filipinas e a reaproximação estratégia entre EUA e Filipinas no governo de Ferdinando Marcos Jr. Todos visam a contenção da China.
2. Filipinas: a “Ucrânia do Pacífico”?
Após uma maior aproximação com os chineses promovida pelo presidente anterior Rodrigo Duterte, o novo mandatário filipino, Ferdinando Marcos Jr., volta ao tradicional alinhamento das Filipinas com os Estados Unidos. EUA e Filipinas realizarão exercícios navais e patrulhas aéreas conjuntas sobre o Mar do Sul da China e os norte-americanos terão maior acesso a instalações militares filipinas. Esta reaproximação foi precedida por um acirramento nas relações China-Filipinas, o que é exemplificado pelo site da BBC News Brasil (28.10.23):
“China e Filipinas vivem atualmente o seu momento de maior tensão dos últimos anos. Ambos os países disputam territórios no Mar da China Meridional (também conhecido como Mar do Sul da China) incluindo o arquipélago Ilhas Spratlye e o Atol de Scarborough. Estes territórios ficam a cerca de 200 km a leste das Filipinas, que os controla. Mas Pequim reivindica as áreas como suas e tem posicionado a sua força naval nas águas ao redor. No último domingo (22/10), um navio da Guarda Costeira chinesa atingiu intencionalmente um dos barcos filipinos.”
A aliança entre os Estados Unidos e as Filipinas, portanto, se coloca para as Filipinas, assim como outros países da região, como essencial para fazer frente à China e conter suas ambições
hegemônicas regionais. Para os EUA é parte de uma rede de alianças, que não se trata exatamente de uma “OTAN do Pacífico”, mas que busca aumentar expressivamente a cooperação entre os norte-americanos e os atores estatais locais como importante elemento de sua estratégia de enfrentamento global da China.
Nessa estratégia, a própria OTAN pode assumir um papel global e se juntar a esse esforço no “Indo-Pacífico.” A soma destes dois oceanos visa prevenir ou limitar a projeção de poder da China no Leste Asiático, no Oriente Médio e na costa oriental da África, além do seu poder naval neste grande espaço oceânico.
O temor de alguns analistas é que, em estratégia similar à adotada na confrontação com a Rússia, as Filipinas, assim como a Ucrânia, possam ser o “ponto de atrito”, em forma de “guerra por procuração” para desgaste militar chinês e busca de seu isolamento e enfraquecimento. No caso russo, estes objetivos não foram alcançados. Embora pareça distante, no momento, tal cenário, a crescente militarização da região promovida pelos EUA e a expansão das forças armadas chinesas, com, por exemplo, o recente lançamento do terceiro porta-aviões chinês (o primeiro comparável aos gigantes porta-aviões nucleares dos EUA) enseja o crescente risco de confronto entre duas potências nucleares, cenário muito perigoso para a região e para o mundo. À medida que o desenvolvimento chinês e sua ascensão no mundo vai colocando cada vez mais em dúvida a primazia norte-americana e do Ocidente, uma forte reação vem sendo articulada nos campos econômico, comercial, tecnológico e militar. E, para os EUA, envolver “parceiros” em “proxy wars” pode ser um trágico estágio futuro desta confrontação.