Depois do neoliberalismo, a renovada oligarquia?

Estaremos vivendo o fim da era neoliberal? É cedo para dizer, mas guerra tarifária indica uma guinada oligarquica e nacionalista no sistema. E cria um impasse: como conciliar ações contra a crise climática com o impulso de cada país à própria “modernização”?

Imagem: Wesley Merritt/New Republic
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A conjuntura da guerra tarifária iniciada por Trump traz à tona mais um paralelo do período atual, desde a reascensão da extrema direita na década passada, com a década de 1930. No entanto, é necessário um cuidado com os entendimentos lineares da comparação e dos eventos que se desenrolaram naquele período. Foi em função do erguimento de barreiras tarifárias pelos próprios países centrais, em resposta à crise de 1929, que abriu-se uma janela de oportunidade para que alguns países latino-americanos fizessem o mesmo, o que, por sua vez, criou as condições para o longo período – que no Brasil seria encerrado com o fim da ditadura militar nos anos de 1980 – de vigência do projeto nacional-desenvolvimentista, baseado na industrialização por substituição de importações (ISI).

Estaríamos diante do fim da era neoliberal, na direção de um regime oligárquico-corporativo? Ou de um processo de transformação ainda interno ao neoliberalismo (uma guinada oligárquica e nacionalista, porém ainda neoliberal)? Ao lado do favorecimento escancarado das grandes corporações, percebe-se uma tentativa, por parte do governo estadunidense, de ficar livre dos resquícios de alguns elementos herdados do modelo fordista-keynesiano, nas porções do Estado de bem estar social que ainda restam – o que indica um movimento de neoliberalização radical. Por outro lado, lança-se ao mar a ala neo-ricardiana do livre comércio internacional, que constitui uma base fundamental do processo de neoliberalização, complementar e diretamente vinculado à mundialização que vem à tona a partir do final da década de 1970. Seria uma guinada oligárquica e neomercantilista por dentro do neoliberalismo?

O que está claro neste momento é que a China venceu o grande jogo econômico configurado pelas potências ocidentais no período de Thatcher e Reagan e a partir dele, através de uma estratégia política que reflete sua longa tradição de inteligência conflitiva, consistindo no uso da força do oponente para seu próprio benefício (a altíssima massa de lucros garantidas às grandes empresas ocidentais através da atração dos investimentos diretos, que depois dariam lugar às próprias empresas chinesas tomando o protagonismo e a liderança, inclusive na produção de tecnologia).

Por cima deste quadro, Trump parece voltar a um modo de exercício hegemônico direto e assumido, que pode envolver um balcão de negócios em que concede acesso ao mercado estadunidense de acordo com concessões e benefícios que poderia obter de outros países, que, como ele parece supor, fariam fila para negociar com os EUA, que sempre teriam a vantagem na mesa de negociação. Outra trajetória provável é a reconfiguração de um mundo bipolar, em novos termos, em que EUA e China criam circuitos paralelos de comercialização e investimentos – provavelmente com a possibilidade de sobreposições fracas, como parece ser o caso da estratégia brasileira neste momento, mas que os EUA já anunciaram que pretendem combater diretamente.

Em termos geopolíticos, trata-se de um movimento bastante preocupante, pois rompe-se com a velha máxima liberal do comércio internacional produzindo interdependências que fazem com que as potências militares evitem o conflito direto – como na pax britannica do longo período de ausência de grandes conflitos, com exceção da guerra franco-prussiana, entre o fim das guerras napoleônicas e a primeira guerra mundial. O rearmamento europeu, forçado por Trump como uma forma de exportar o velho keynesianismo militar estadunidense, joga lenha nessa mesma fogueira, e envolve uma aposta altamente arriscada, que pode resultar num isolamento dos EUA, impulsionando fortemente a passagem da hegemonia na direção da China. A estratégia de geração de crescimento econômico através do impulso às forças armadas talvez seja o elemento do velho Estado keynesiano que entrou de forma mais harmoniosa no Estado neoliberal, e o fato dos europeus não terem precisado de ativá-lo em grande escala explica em parte a resiliência de seu aparato de bem estar, agora frontalmente ameaçado. Como disse o presidente finlandês, Alexander Stubb, em janeiro, “acabaram as férias que a Europa tirou da história”.

Em relação à semi-periferia e à eventual possibilidade de retorno da ISI e duma nova rodada desenvolvimentista, seria ela capitaneada por capitais chineses? Em que sentido as relações com eles poderiam ser diferentes das relações (de centro e periferia) que estabelecemos com as economias do Atlântico Norte e que foram tão significativas na reprodução de nossa inserção heterônoma no sistema-mundo e de nossas estruturas produtoras de injustiça e precariedade? Os ideólogos sinófilos – alguns enxergam o céu socialista na terra na experiência iniciada por Deng Xiaoping – apontam para a preferência da diplomacia chinesa por relações de reciprocidade benéfica (ou “ganha-ganha”). No entanto, a rigor, não foi exatamente isso que aconteceu no Brasil desde o início do século, a nossa desindustrialização tendo sido muito impulsionada pela parceria comercial com os chineses (que produziram o boom de commodities dos anos 2000 em troco da exportação de sua produção industrial).

Em que medida poderia se fazer presente, diante de todo este cenário de recrudescimento de forças reacionárias, a perspectiva pós-desenvolvimentista (que se fortaleceu muito desde aquela conjuntura do neoextrativismo hegemônico da década de 2000, informada e abastecida pelo ganho de protagonismo das populações tradicionais, que aumentaram sua presença nas redes de mobilizações diversas, chegando ao ponto de constituir um grupo como a Teia dos Povos, que hoje ocupa uma posição de ponta nas constelações de movimentos sociais no país)? Daquele ponto de vista, a conjuntura histórica maior, marcada pelas crises múltiplas e imbricadas (da crise ecológica à crise de ansiedade em larga escala), não pode ser respondida com mais modernização – que o eventual retorno da trajetória de industrialização desenvolvimentista implicaria. No entanto, o fortalecimento de uma ameaça real no plano da geopolítica requer a constituição de um meio que seja capaz de resistir à alta pressão advinda daquela ameaça, e com isso a via do pós-desenvolvimento e do decrescimento, necessária diante do quadro da emergência climática e de uma série de outros quadros sociais críticos, tende a perder espaço. Um dos maiores desafios que o retorno da extrema direita ao cerne do poder da hegemonia maior em pleno declínio nos coloca é exatamente este: como deixar de responder através das formas que ele força seus oponentes a fazer, justamente como no militarismo europeu reativado?

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