Davi vs. Golias: o Iêmen enfrenta Israel 

Num mundo ultraglobalizado, interromper um ponto nodal do tráfego marítimo desarranja o sistema. Por sabê-lo, os Houthis podem defender os palestinos e mostraram que é possível enfrentar a opressão com inteligência e coragem

Uma vista aérea de apoiadores Houthi protestando contra Israel e o presidente dos EUA, Donald Trump, em 9 de maio de 2025. Foto:Mohammed Hamoud / Getty Images
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Por Ashok Kumar, em Jacobin | Tradução: Antonio Martins

Em 12 de maio, um artigo do New York Times intitulado “Por Que Trump Declarou Vitória Sobre a Guerrilha Houthi” revelou involuntariamente o fracasso da coalizão liderada pelos EUA no Iêmen. O texto destacou que, enquanto os Estados Unidos queimavam munições, os Houthis iemenitas (também denominados Ansar Allah), continuavam a atacar navios e abater drones impunemente. Em outras palavras: o Iêmen, um dos países mais pobres do mundo, impôs com sucesso um bloqueio ao Mar Vermelho — uma das rotas marítimas mais críticas do mundo — enquanto os EUA e seus aliados patinavam, desperdiçando bilhões em defesa antimísseis, contra um oponente que os superou em cada novo lance.

As operações militares dos EUA no Iêmen resultaram em baixas civis significativas, com estimativas drasticamente conflitantes. A Airwars, um monitor de conflitos baseado no Reino Unido, documenta centenas de mortes de civis iemenitas em 181 ações militares estadunidenses desde 2002. Esses números contrastam dramaticamente com os relatórios do Pentágono, que admitem apenas treze mortes civis. Vista de forma mais ampla, a guerra civil iemenita, em curso desde 2014, provou-se ainda mais devastadora. Especialistas independentes estimam que os bombardeios e o bloqueio da coalizão liderada pela Arábia Saudita — apoiada por Washington — tenham contribuído para mais de 150 mil mortes, e sejam parte de um conflito que já custou centenas de milhares de vidas iemenitas no total.

Como tudo isso aconteceu? Três fatores-chave explicam a capacidade dos Houthis de manter o bloqueio apesar da oposição ocidental: seu controle sobre um ponto geográfico vital, seu arsenal doméstico de mísseis e drones, e as vulnerabilidades inerentes à indústria naval globalizada e oligopolizada

O bloqueio que abalou o mundo

Em 19 de novembro de 2023, combatentes Houthis abordaram o navio Galaxy Leader, vinculado a Israel, no Mar Vermelho, estabelecendo o primeiro bloqueio naval da história imposto por uma força sem marinha própria. A partir daquele momento, o Iêmen bloqueou efetivamente uma das rotas comerciais mais vitais do mundo, interrompendo um terço do tráfego global de contêineres e quase um quarto de todo o comércio marítimo entre países sem fronteiras comuns. Os choques econômicos foram imediatos. Gigantes do transporte marítimo redirecionaram navios para o Cabo da Boa Esperança (no sul do continente africano) pela primeira vez em mais de 150 anos, fazendo disparar os tempos de transporte, custos e prêmios de seguro.

Quando começou, em 14 de novembro de 2023, o bloqueio visava apenas navios com destino a Israel. Desde o princípio, os Houthis assumiram o compromisso de acabar com o genocídio em Gaza, pressionando Israel economicamente.

Os Estados Unidos responderam com a Operação Guardião da Prosperidade, uma coalizão de vinte nações — parte das quais se recusou a ser identificada publicamente — destinada a proteger o comércio no Mar Vermelho. Mesmo assim, o bloqueio do Ansar Allah continuou. Sua estratégia revelou uma mudança de paradigma fundamental na guerra nos mares: um ator não estatal, usando tecnologia barata e de produção doméstica, superava a aliança militar mais poderosa da história.

No início de 2025, um frágil cessar-fogo foi estabelecido. O bloqueio do Mar Vermelho foi temporariamente suspenso. Porém, em março, quando Israel rompeu a trégua e intensificou sua campanha de fome em Gaza, o Ansar Allah agiu rapidamente para reimpor o cerco marítimo. Desta vez, os EUA lançaram uma campanha de bombardeios unilateral contra o Iêmen, com a Grã-Bretanha — sempre a parceira júnior leal — rapidamente alinhando-se.

O poder dos pontos geográficos estratégicos

O estreito de Bab el-Mandeb, uma passagem de trinta e dois quilômetros de largura entre o Iêmen e o Djibuti, é um dos gargalos mais críticos do comércio global. Cerca de 12% a 15% de todo o comércio mundial passam por ele, incluindo 12% do petróleo e 30% dos bens transportados em contêiners do planeta. Quando o Ansar Allah (Houthis) fechou o estreito, o impacto econômico foi colossal.

Sob condições normais, os transtornos em Bab el-Mandeb custam à economia global cerca de US$ 23 bilhões por ano. Imagine, então, num bloqueio total. Sem acesso ao estreito, os navios foram forçados a desviar pela longa e tempestuosa rota ao redor do Cabo da Boa Esperança, na África, adicionando semanas aos tempos de trânsito e milhões em custos de combustível por viagem.

Os Estados Unidos e seus aliados não podiam simplesmente bombardear o problema. O controle do Iêmen sobre o litoral significava que até mesmo alguns mísseis ou drones bem posicionados poderiam deter o transporte comercial indefinidamente.

Produção doméstica de armas e apoio do Irã

A geografia, por si só, não explica o sucesso da estratégia do Ansar Allah. Na última década, o grupo construiu uma indústria bélica doméstica notável, produzindo mísseis de cruzeiro, mísseis balísticos e drones capazes de atingir navios a centenas de quilômetros de distância.

O Irã teve um papel crucial nesse desenvolvimento, fornecendo know-how técnico, componentes de mísseis e treinamento. Pelo menos desde 2014, a Força Quds do Corpo da Guarda Revolucionária Islâmica enviou assessores e armas para o Iêmen por via aérea e marítima, ajudando o Ansar Allah a estabelecer fábricas de mísseis em Saa’da.

Mas a capacidade do Iêmen de adaptar tecnologia comercial para uso militar — como drones de fabricação chinesa reconfigurados — foi igualmente importante. Essa combinação de inovação doméstica e apoio estrangeiro permitiu ao Ansar Allah travar uma guerra assimétrica contra adversários muito mais ricos.

A fragilidade do comércio marítimo global

A incapacidade dos EUA e seus aliados de interromper o bloqueio do Ansar Allah expôs os custos ocultos por trás da “eficiência” do capitalismo marítimo moderno. A marcha da indústria naval nas últimas décadas em direção à consolidação e à escala minou a estabilidade das rotas comerciais marítimas. Essa fragilidade foi explorada com efeito devastador por grupos como o Ansar Allah.

Hoje, o comércio global passa por um funil cada vez mais estreito. Nos últimos cinco anos, três ou quatro alianças de navegação controlaram mais de 90% do tráfego de contêineres entre Ásia, Europa e América do Norte. As frotas dessas alianças são compostas por navios porta-contêineres ultragrandes (ULCVs), impensáveis há algumas décadas. Nos anos 1980, os maiores navios carregavam 4.500 contêineres; hoje, um ULCV típico transporta 24.000.

Mas a adoção do transporte em larga escala também teve um custo. Esse novo modelo trouxe três consequências principais:

-A restrição portuária: ULCVs exigem portos de águas profundas com infraestrutura especializada, tornando apenas alguns poucos hubs globais capazes de atendê-los.

-A armadilha da eficiência: A busca por capacidade máxima eliminou toda folga do sistema. O transporte moderno funciona na precisão just-in-time, onde atrasos medidos em horas podem causar congestionamentos de semanas. Quando o navio Ever Given bloqueou o Canal de Suez em 2021, estrangulou 12% do comércio global por seis dias.

-O domínio das alianças: Com controle quase total das rotas vitais, as alianças de transporte criaram um sistema onde sua aversão ao risco tornou-se uma profecia autorrealizável. Quando as seguradoras hesitam ou exigem prêmios crescentes, as alianças redirecionam suas rotas em massa – como fizeram durante o bloqueio do Ansar Allah. A revolução dos contêineres, iniciada nos anos 1960, tornou este sistema possível, aumentando a produtividade portuária em cem vezes. Mas também eliminou os amortecedores que antes absorviam os choques. No passado, os estivadores moviam a carga peça por peça, criando redundâncias naturais. Hoje, máquinas automatizadas movem montanhas de contêineres em horas — até que algo de errado. O Ansar Allah aparentemente entendeu perfeitamente esse cálculo. Eles não precisavam derrotar a Marinha dos EUA; apenas fazer com que os prêmios de risco do Mar Vermelho superem seus lucros.

O Comandante Eric Blomberg, que supervisionou a Operação Guardião da Prosperidade, admitiu com relutância: “nós [EUA] só precisamos errar uma vez… Os Houthis só precisam acertar uma.” Este é o paradoxo do capitalismo do século XXI: as mesmas eficiências que geram lucros impressionantes também criam vulnerabilidades catastróficas. A maior força do sistema – sua interdependência fortemente entrelaçada – tornou-se sua maior fraqueza, quando confrontada com um movimento capaz de explorar seus pontos de pressão.

A crise econômica de Israel

O bloqueio atingiu Israel de forma especialmente dura. Cerca de 60% de seu PIB depende do comércio, e 99,6% disso (por peso, 65% por volume) é transportado por mar. Três portos – Haifa, Ashdod e Eilat – operam 80% do tráfego marítimo do país. Mas em meados de 2024, a Eilat – que opera ligação vital de Israel com a Ásia pelo Mar Vermelho – estava efetivamente morta, tendo declarado falência oficialmente ao parlamento (Knesset).

Os navios recusaram-se a arriscar a viagem, optando pelo desvio de 11.000 milhas náuticas ao redor da África. Os prêmios de seguro dispararam 900%, e os custos de transporte da China para a Europa quadruplicaram. “Até as aclamadas exportações de gás natural de Israel foram paralisadas. O país perdeu a chance de realizar seu sonho de se tornar um hub regional de exportação de gás natural liquefeito (GNL), dada a dificuldade e o custo de trazer grandes petroleiros para seus portos.

Um novo capítulo da guerra assimétrica”O bloqueio do Ansar Allah no Mar Vermelho representou mais que um sucesso tático – revelou como atores menores podem alavancar as vulnerabilidades de uma economia global interconectada. Ao perturbar uma das rotas de navegação mais críticas do mundo, ele demonstrou que numa era de comércio hipereficiente, até capacidades militares limitadas podem ter efeitos estratégicos desproporcionais. Os EUA e seus aliados, apesar de seu poder de fogo esmagador, lutaram para conter uma campanha que visava não apenas navios, mas a economia subjacente do comércio marítimo. Enquanto a doutrina militar tradicional prioriza a força bruta, a abordagem do Ansar Allah explorou fraquezas sistêmicas – rotas de navegação consolidadas, logística just-in-time e mercados de seguros avessos ao risco.”

O resultado foi uma crise que não poderia ser resolvida apenas com mísseis. Este conflito tem implicações mais amplas sobre como o poder é projetado no século XXI. O domínio militar já não garante controle quando pontos de pressão econômica – rotas de navegação, cadeias de suprimentos, sistemas financeiros – podem ser contestados por meios não convencionais. As ferramentas da globalização, projetadas para maximizar a eficiência, também criaram novas vulnerabilidades.

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Um comentario para "Davi vs. Golias: o Iêmen enfrenta Israel "

  1. Parabéns! Antônio Martins, pelo texto. Compartilhando entre os nativos piauienses!

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