China e Rússia: uma “amizade sem limites”?

Apesar de atritos, aliança contra a hegemonia dos EUA avança. Após sanções a Moscou, comércio entre os países cresceu 64%. Parceria envolve transferência tecnológica e exercícios militares conjuntos. E, juntos, lideram iniciativas de cooperação no Sul global

Xi e Putin celebram 75 anos de amizade entre a China e a Rússia (Foto: Sergey Bobilev-TASS)

1. Hegemonia, Eurásia e blocos alternativos

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Na relação entre território e poder, a análise lastreada em conhecimentos históricos acerca da política, economia, capacidade bélica e aspectos socioculturais dos países em relação a outros pode ser definida como Geopolítica. Nesta disciplina tem especial importância a região continental definida como “Eurásia”, como o próprio termo explicita, o somatório do que se conhece como Ásia e Europa. Nesse grande espaço geográfico serão aqui destacados três países, de grande importância estratégica: Alemanha, Rússia e China.

A geopolítica britânica, com o geógrafo Halford Makinder, definiu o Heartland (o coração da Terra), como um espaço crucial na disputa do poder no mundo, situado entre a Alemanha e a Rússia. O seu controle daria a quem o exercesse o domínio global. Portanto, segundo esta teoria, do início do século XX, do ponto de vista estratégico de Londres, russos e alemães jamais poderiam ser aliados. Esta “lição” foi aprendida pelos norte-americanos: o conflito na Ucrânia tem como objetivo crucial manter Berlim e Moscou distantes, assegurar uma Europa subserviente aos EUA e confrontar a Rússia.

O outro ator estatal citado da Eurásia, a China, que sob vários aspectos é o mais relevante, vem, nas últimas décadas, liderando um processo de modernização e crescimento econômico sem precedentes na história, e se coloca na atualidade, pela sua dimensão econômica e crescente capacidade tecnológica e militar como o desafiante da hegemonia dos Estados Unidos. E é a partir dos anos 1990, auge da “hegemonia unipolar” estadunidense que se inicia a aproximação entre a Rússia pós-soviética e uma China ascendente, mas ainda sem importância que ganhou a partir dos anos 2000. Fruto desse diálogo, foi criada em 2001 a Organização para a Cooperação de Xangai, um fórum multilateral liderado por China e Rússia e que atualmente também é composto por Cazaquistão, Índia, Irã, Paquistão, Quirguistão, Tajiquistão e Uzbequistão, além de Afeganistão, Bielorrúsia e Mongólia, como membros observadores. A esta iniciativa de aliança entre Rússia e China se soma o grupo Brics, com membros também na África (Egito e África do Sul) e América Latina (Brasil). A Rússia lidera grupos de países do que considera como sua “área de influência” nas ex-repúblicas soviéticas, como a União Econômica Eurasiática, que prioriza o comércio e a Organização do Tratado de Segurança Coletiva (OTSC), que visa a defesa. O compromisso estratégico com a Rússia de seus integrantes não impediu que a China tenha assumido a proeminência no relacionamento econômico com estes, tornando-se o principal parceiro comercial. E a Belt and Road Initiative, grande iniciativa chinesa de investimento em infraestrutura vem atraindo adesões em vários continentes, construindo vínculos econômicos e políticos.

Estas iniciativas de integração se complementam e muitas vezes se superpõem e tem os seus conflitos internos. Mas há a percepção comum dos participantes de que é do interesse de todos a construção de alternativas à hegemonia norte-americana. E o “cerco” promovido e aprofundado a russos e chineses, pelos EUA e seus aliados, seja nas dimensões econômica e diplomática, seja na dimensão militar dá a essas alianças um caráter ainda mais relevante e poderia se dizer, essencial, a estes dois grandes atores políticos.

2 – China e Rússia: “amizade sem limites”

Em 4 de fevereiro de 2022, vinte dias antes do início da invasão russa do território ucraniano, o presidente russo Vladimir Putin esteve com o homólogo chinês, Xi Jinping na cerimônia de abertura das Olimpíadas de Inverno. Nesta anunciaram uma profunda parceria estratégica que, segundo comunicado conjunto, diz, dentre outros pontos: “A amizade entre os dois Estados não tem limites, não há áreas ‘proibidas’ de cooperação.” Exploração espacial, mudanças climáticas e inteligência artificial são algumas das possibilidades de colaboração anunciadas. A interferência externa em assuntos internos dos países foi rechaçada.

Desde então, a China, embora não seja um fornecedor de armamentos vem, através da intensificação do comércio, com a sua crescente demanda por energia e fornecimento de variados produtos (ocupando o espaço das empresas ocidentais que deixaram a Rússia com as sanções) e, principalmente, vendendo produtos “duais”, para utilização civil ou militar, apoiando o esforço de guerra russo na Ucrânia. O comércio entre os dois países teve a expressiva alta de 64% em 2023 em relação a 2021, antes da Guerra russo-ucraniana, chegando a 240 bilhões de dólares.

A relação vai além da dimensão geoeconômica e se manifesta também em cooperação militar, seja com transferência de tecnologia russa, apoio de satélites chineses, ou especialmente na forma de exercícios conjuntos de suas forças armadas, que tem acontecido em tabuleiros geopolíticos como o do Pacífico Norte ou do Ártico, onde a China tem presença por uma concessão da Rússia, o país com a maior costa banhada por este oceano. No caso do Pacífico Norte o recente acordo de defesa mútua entre Rússia e Coreia do Norte tem como “sujeito oculto” a China, que cede o protagonismo a Putin para evitar maior desgaste frente ao Ocidente, com quem mantém grandes interesses comerciais. Ásia Central, Oriente Médio e África são outros espaços de forte engajamento de ambos, coordenação e também disputas. Xi Jinping chegou a afirmar, na Ásia Central, mais especificamente no Cazaquistão, em setembro de 2022, que a China estaria comprometida com a soberania daquele país, após, portanto, a invasão russa da Ucrânia.

No início da década de 1970, China e Estados Unidos se reaproximaram e forjaram uma relação comercial que se tornou a mais importante do mundo, base do desenvolvimento exitoso do capitalismo de Estado chinês e fonte de produtos baratos para os EUA. Esta reaproximação, obra o secretário de Estado Henry Kissinger e do primeiro-ministro Zhou Enlai, da parte dos EUA visava distanciar China e União Soviética. A beligerância, que foi se tornando cada vez mais agressiva nos últimos anos, dos norte- americanos contra chineses e russos os “empurrou” para esta aliança cada vez mais próxima. Isto pode mudar com o tempo, a depender da conjuntura, dos interesses nacionais, de aspectos materiais de cada país e da correlação de forças internacionais. Isto vale para qualquer aliança, de quaisquer países. A Otan é questionada pelo republicano Donald Trump e seu grupo político.

A tese de Halford Makinder, citada no início deste texto, é em certa medida datada porque já não é mais a aliança ou não entre Rússia e Alemanha a definidora dos destinos do mundo, embora sua existência evidentemente pudesse desempenhar um papel de primeira grandeza. E por isso o veto dos anglo-saxões. O “espaço eurasiático” passou a ter a mesma Rússia agora com a China como a aliança que pode ameaçar o predomínio do Ocidente. Henry Kissinger foi um realista que entendeu isto muito claramente. Os formuladores de política dos EUA nos anos recentes, em governos democratas e republicanos tem demonstrado entendimento diverso e se propõe a enfrentar, com todos os recursos disponíveis, bélicos inclusive, o “eixo autoritário” Moscou-Pequim, com ajuda de seus aliados do Ocidente e outras regiões. Portanto, a “amizade sem limites” tem todos os incentivos para perdurar.

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