Assim os EUA preparam a guerra contra a Rússia

Em Washington, senadores propõem plano de rearmamento gigantesco, com dois objetivos: enriquecer corporações da guerra e organizar o confronto total contra Moscou. Ao forjar “ataque” russo, governo polonês pode não ter agido sozinho

Soldados do Exército dos EUA na província de Kandahar, sul do Afeganistão (2011). Imagem: REUTERS/Baz Ratner
.

Por Medea Benjamin e Nicolas J.S. Davies no Countercurrents | Tradução: Maurício Ayer

Se os poderosos líderes do Comitê das Forças Armadas do Senado, senadores Jack Reed (democrata) e Jim Inhofe (republicano), conseguirem o querem, o Congresso em breve invocará poderes de emergência em situação de guerra para ampliar ainda mais os arsenais do Pentágono. A emenda foi elaborada, supostamente, para facilitar a reposição das armas que os Estados Unidos enviaram à Ucrânia, mas basta uma olhada na lista de desejos contemplada nessa emenda para que uma outra história se revele.

Senadores Jim Inhofe e Jack Reed do Comitê das Forças Armadas do Senado

A ideia de Reed e Inhofe é inserir essa emenda de situação de guerra na Lei de Alocação de Recursos para a Defesa Nacional FY2023 (NDAA), que será aprovada em uma sessão de fim de mandato antes do final do ano. A emenda passou pelo Comitê de Forças Armadas em meados de outubro e, se for convertida em lei, o Departamento de Defesa poderá firmar contratos plurianuais e conceder contratos sem concorrência a fabricantes de armas para arsenais relacionados à Ucrânia.

Mas se a emenda Reed/Inhofe é realmente destinada a reabastecer os suprimentos do Pentágono, então por que as quantidades elencadas em sua lista de desejos superam em muito as enviadas à Ucrânia?

Façamos a comparação:

• A atual estrela da ajuda militar dos EUA à Ucrânia é o sistema de foguetes HIMARS da Lockheed Martin, a mesma arma que os fuzileiros navais dos EUA costumavam usar para reduzir grande parte de Mosul, a segunda maior cidade do Iraque, a escombros em 2017. Os EUA enviaram apenas 38 sistemas HIMARS para a Ucrânia, mas os senadores Reed e Inhofe planejam “repor” 700 deles, com 100 mil foguetes, que podem custar até US$ 4 bilhões.

• Outra arma de artilharia fornecida à Ucrânia é o Obus M777 155 mm. Para “substituir” os 142 M777 enviados à Ucrânia, os senadores planejam encomendar mil novos, a um custo estimado de US$ 3,7 bilhões, da BAE Systems.

• Os lançadores HIMARS também podem disparar o míssil de longo alcance (até 190 milhas) MGM-140 ATACMS, da Lockheed Martin, que os EUA não enviaram à Ucrânia. Na verdade, os EUA dispararam apenas 560 deles, a maioria no Iraque em 2003. O “Míssil de Ataque de Precisão” de alcance ainda mais longo, antes proibido sob o Tratado INF abandonado por Trump, começará a substituir o ATACMS em 2023, mas a Emenda Reed-Inhofe compraria 6 mil ATACMS, 10 vezes mais do que os EUA já usaram, a um custo estimado de US$ 600 milhões.

• Reed e Inhofe planejam comprar 20 mil mísseis antiaéreos Stinger da Raytheon. Mas o Congresso já gastou US$ 340 milhões em 2.800 Stingers para substituir os 1.400 enviados à Ucrânia. A emenda de Reed e Inhofe irá “reabastecer” os estoques do Pentágono em um número 14 vezes maior, o que pode custar US$ 2,4 bilhões.

• Os Estados Unidos forneceram à Ucrânia apenas dois sistemas de mísseis antinavio Harpoon – já uma escalada provocativa – mas a emenda inclui mil mísseis Harpoon para Boeing (cerca de US$ 1,4 bilhão) e 800 novos mísseis de ataque naval Kongsberg (cerca de US$ 1,8 bilhão), substituto do Pentágono para o Harpoon.

• O sistema de defesa aérea Patriot é outra arma que os EUA não enviaram à Ucrânia, porque cada sistema pode custar um bilhão de dólares e o curso básico de treinamento de técnicos para mantê-lo e consertá-lo leva mais de um ano para ser concluído. E, no entanto, a lista de desejos de Inhofe-Reed inclui 10 mil mísseis Patriot, além de lançadores, que podem somar US$ 30 bilhões.

ATACMS, Harpoons e Stingers são todas armas que o Pentágono já estava eliminando, então por que gastar bilhões de dólares para comprar milhares deles agora? O que está realmente em questão? Esta emenda é um exemplo particularmente flagrante de realização de lucro de guerra pelo complexo militar-industrial-congressista? Ou os Estados Unidos estão realmente se preparando para travar uma grande guerra terrestre contra a Rússia?

Nossa opinião mais balizada é de que ambas as hipóteses são verdadeiras. 

Olhando para a lista de armas, o analista militar e coronel aposentado dos fuzileiros navais Mark Cancian observou: “Isso aqui não substitui o que fornecemos [à Ucrânia]. Constrói arsenais para uma grande guerra terrestre [com a Rússia] no futuro. Esta não é a lista do que se usaria contra a China. Para a China, teríamos uma lista muito diferente.”

O presidente Biden diz que não enviará tropas dos EUA para lutar contra a Rússia porque isso seria a Terceira Guerra Mundial. Mas quanto mais a guerra se estende e quanto mais ela se agrava, mais fica claro que as forças dos EUA estão diretamente envolvidas em muitos aspectos da guerra: ajudando a planejar as operações ucranianas; fornecendo inteligência com base em satélites; pagando a guerra cibernética; e operando secretamente dentro da Ucrânia como forças de operações especiais e paramilitares da CIA. Agora, a Rússia acusou as forças de operações especiais britânicas de responsabilidade direta em um ataque marítimo de drones em Sebastopol e na destruição dos gasodutos Nord Stream.

Como o envolvimento dos EUA na guerra aumentou muito, apesar das promessas quebradas de Biden, o Pentágono deve ter elaborado planos de contingência para uma guerra em grande escala entre os Estados Unidos e a Rússia. Se esses planos forem executados e não desencadearem imediatamente uma guerra nuclear, eles exigirão grandes quantidades de armas específicas, e esse é o propósito dos arsenais Reed-Inhofe.

Ao mesmo tempo, a alteração parece responder a reclamações dos fabricantes de armas de que o Pentágono estava “agindo muito devagar” ao gastar as vastas somas destinadas à Ucrânia. Embora mais de US$ 20 bilhões tenham sido alocados para armas, os contratos para efetivamente comprar armas para a Ucrânia e substituir as enviadas até agora totalizaram apenas US$ 2,7 bilhões no início de novembro.

Portanto, a esperada bonança nas vendas de armas ainda não havia se materializado e os fabricantes de armas estavam ficando impacientes. Enquanto o resto do mundo cada vez mais clama por uma solução por negociações diplomáticas, se o Congresso não se mexer, a guerra pode acabar antes que a tão esperada bolada chegue para os fabricantes de armas.

Mark Cancian explicou ao DefenseNews: “Ouvimos da indústria, quando conversamos com eles sobre esse assunto, que eles querem ver um sinal de demanda”.

Quando a Emenda Reed-Inhofe passou pelo comitê em meados de outubro, ficou claro que era o “sinal de demanda” que os mercadores da morte tanto aguardavam. Os preços das ações da Lockheed Martin, Northrop Grumman e General Dynamics decolaram como mísseis antiaéreos, atingindo máximos históricos no final do mês.

Julia Gledhill, analista do Projeto de Fiscalização Governamental, condenou as provisões de emergência em situação de guerra da emenda, alegando que elas  “deterioram ainda mais as já fracas barreiras existentes para impedir a manipulação de preços pelas empresas militares”.

Abrir as portas para contratos militares de vários anos, sem concorrência e multibilionários mostra como o povo americano está aprisionado em uma cruel espiral de guerra e gastos militares. Cada nova guerra torna-se um pretexto para novos aumentos nos gastos militares, muitos deles sem relação com a guerra atual que justifica o aumento. O analista de orçamento militar Carl Conetta demonstrou (ver Sumário Executivo) em 2010, após anos de guerra no Afeganistão e no Iraque, que “essas operações representam apenas 52% do aumento” nos gastos militares dos EUA durante esse período.

Andrew Lautz, do Sindicato Nacional dos Contribuintes, agora calcula que o orçamento básico do Pentágono excederá US$ 1 trilhão por ano até 2027, cinco anos antes do projetado pelo Departamento de Orçamento do Congresso. Mas se considerarmos pelo menos US$ 230 bilhões por ano em custos militares nos orçamentos de outros departamentos, como Energia (para armas nucleares), Assuntos relativos aos Veteranos, Segurança Interna, Justiça (segurança cibernética do FBI) ​​e Estado, os gastos com a insegurança nacional já atingiram a marca de US$ 1 trilhão por ano, devorando dois terços dos gastos discricionários anuais.

O investimento exorbitante dos Estados Unidos em cada nova geração de armas torna quase impossível para os políticos de qualquer um dos partidos reconhecer, muito menos admitir para o público, que as armas e guerras americanas têm sido a causa de muitos dos problemas do mundo, não a solução, e que eles também não podem resolver a última crise de política externa.

Os senadores Reed e Inhofe defenderão sua emenda como um passo prudente para deter e preparar uma escalada russa da guerra, mas a espiral de escalada em que estamos presos não é unilateral. É o resultado de ações escalonadas de ambos os lados, e o enorme acúmulo de armas autorizado por esta emenda é uma escalada perigosamente provocativa do lado dos EUA que aumentará o perigo da Guerra Mundial que o presidente Biden prometeu evitar.

Após as catastróficas guerras e os estratosféricos orçamentos militares dos EUA nos últimos 25 anos, deveríamos estar cientes da escalada dessa espiral viciosa em que estamos presos. E depois de flertar com o Armagedom por 45 anos na última Guerra Fria, também devemos estar cientes do perigo existencial de nos envolvermos nesse tipo de ameaça com um país que tem um arsenal nuclear como a Rússia. Portanto, se formos sábios, nos oporemos à Emenda Reed/Inhofe.

Leia Também:

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *