A precariedade militar da América do Sul

Em quase toda a região, Forças Armadas têm histórico de intervir indevidamente na vida política. Esta tendência contrasta com sua incapacidade para defender os respectivos países. Balanço de uma deficiência gravíssima, em tempos de Trump

Fragata da classe Tamandaré, um dos projetos mais avançados das forças armadas brasileiras. São as mais bem equipadas da região, mas também dependem tecnologicamente das grandes potências
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Por Daniel Barreiros

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> O texto a seguir integra o número 9 (janeiro de 2025) do boletim do Observatório do Século XXI, parceiro editorial de Outras Palavras. A edição examina a história e as perspectivas geopolíticas e econômicas da América do Sul. Pode ser baixada e lida aqui.
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Se considerarmos os orçamentos e o pessoal ativo no total da população, a América do Sul apresenta níveis apenas moderados de militarização. Isso contrasta de forma expressiva com a concentração de recursos naturais nesse continente, incluindo recursos hídricos, e que por força das circunstâncias exigem capacidades de controle territorial e dissuasão pelos Estados nacionais da região.

Países do Oriente Médio, como Israel e Arábia Saudita, em um contexto geoeconômico igualmente complexo, frequentemente mantêm mais de 10 militares por 1.000 habitantes, enquanto na América do Sul essa proporção geralmente varia entre 2 e 5 militares por 1.000 habitantes, dependendo do país. O Brasil, o maior país do continente, possui cerca de 1,7 milhão de militares e reservistas em uma população de 216 milhões, representando uma proporção relativamente baixa. Na América do Sul, os gastos militares representam geralmente entre 1% e 2% do PIB, abaixo de regiões como América do Norte e Europa, onde podem ultrapassar 3% do PIB, como nos EUA e na Polônia.

Tudo isso indica um alto grau de exposição geopolítica dos Estados-nação sul-americanos, em um contexto cada vez mais incerto acerca das garantias de resolução pacífica de conflitos na terceira década do século XXI. Embora as ameaças de incorporação do Canadá e da Groenlândia feitas pelo atual chefe de Estado norte-americano sejam apenas bravatas, elas certamente são algo mais do que se tivessem sido proferidas por um polemista qualquer.

Mas mesmo a força dos números já não basta na guerra moderna. Vivemos em um contexto militar no qual as forças são cada vez mais especializadas, mais profissionalizadas, e tecnologicamente intensivas. Os choques convencionais entre forças militares seguem no portfólio de opções das grandes potências – vide a guerra russo-ucraniana -, a despeito da crescente importância da guerra cibernética e das operações de guerra híbrida no front interno. O controle territorial e a dissuasão requerem ativos militares modernos; e pesando ainda mais sobre as desvantagens numéricas sul-americanas, está a sua quase absoluta dependência tecnológica em relação a potências estrangeiras. Esse é um prospecto que dificilmente pode ser revertido no curto prazo, embora os exemplos da Ìndia e da China soem como promissores. Há, contudo, um abismo entre as condições políticas e econômicas que permitiram a Délhi e a Pequim garantir suficiente autonomia tecnológica militar nacional, e aquelas vigentes na América do Sul.

Nem mesmo no que diz respeito ao básico (armas leves, blindados, artilharia), os países mais militarizados da região contam com autonomia. A relativa exceção é o Brasil, com uma indústria de defesa suficientemente consolidada para a produção de seus próprios veículos blindados, como o formidável Guarani VBTP-MR (mas mesmo nesse caso, em parceria com a italiana Iveco), em serviço desde 2014, e também exportado para o Líbano, Gana e Filipinas. O Brasil produz o sistema de mísseis Astros II (Avibras), operado não só pelo exército brasileiro mas pelas forças armadas do Iraque, Bahrein, Catar, Arábia Saudita, Indonésia e Malásia.

A comparação com as demais nações mais militarizadas da América do Sul é impactante. A Argentina encontra-se estagnada, mantendo em operação o obsoleto TAM (Tanque Argentino Mediano) em serviço desde 1983, e não conta com capacidade de produção nacional de armas de artilharia A Venezuela, também desprovida de uma indústria de defesa sólida, depende de importações da Rússia e da China, como no caso do tanque T-72 e do sofisticado sistema de mísseis S-300. A Colômbia e o Peru são igualmente dependentes de importações e da assistência técnica provida por potências estrangeiras.

No que tange ao poder naval, somente o Brasil conta com capacidade, ainda que limitada, de construção de vasos de guerra. A marinha brasileira encontra-se em processo de substituição das fragatas classe Niterói (operadas desde 1975) pela sofisticada fragata classe Tamandaré, com projeto e produção nacionais, em parceria com a Thyssenkrupp Marine Systems. Na América do Sul, é o único país capaz de construir submarinos convencionais, e através do ProSub (em parceria com a França) pretende comissionar um submarino nuclear até 2034. A Argentina conta com estaleiros militares capazes de produzir as corvetas da classe Espora (com apoio alemão, e já obsoletas) e pequenos navios de patrulha costeira. Nos anos 1980 a Argentina era a única nação sul-americana com capacidade de construção de submarinos (classe TR-1700), mas atualmente a infraestrutura de engenharia e logística necessária encontra-se fora de operação, e tecnologicamente defasada. Venezuela, Colômbia e Peru não contam com construção naval militar significativa, e operam submarinos da classe Kilo (importados da Rússia) e Tipo 209 (modelos de exportação, produzidos na Alemanha).

No que tange o poder aéreo, a situação é ainda mais complicada. Mais uma vez, só o Brasil dispõe de engenharia e indústrias para a produção de aeronaves militares, e mesmo nesse caso, fortemente dependente de tecnologia estrangeira. O icônico A-29 Super Tucano, produzido pela Embraer, e operado por 21 forças aéreas no mundo, é um formidável aparelho para emprego em patrulhamento e contrainsurgência, mas incapaz de garantir poder de interceptação e superioridade aérea. Para tal, o Brasil opera o F-39 Gripen, caça multiuso de 4ª geração, de origem sueca, montado parcialmente no Brasil (a partir de acordo de transferência parcial de tecnologia). Do total, apenas oito de trinta e seis unidades foram entregues, devido a dificuldades orçamentárias. As defesas aéreas do Brasil dependem hoje em grande parte da frota composta por antigas aeronaves F-5 Tiger II, que apesar de modernizadas pela Embraer, são insuficientes para a tarefa.

A Argentina outrora integrou o hall de países construtores de aeronaves militares, especialmente com seu IA-58 Pucará, avião de ataque leve e contrainsurgência, mas hoje opera uma força aérea absolutamente insuficiente e dependente dos Estados Unidos: em 2024 o Departamento de Estado norte-americano aprovou a transferência de 24 caças F-16 da Força Aérea da Dinamarca para a Força Aérea Argentina (ainda não entregues), de modo a conter a oferta de um lote de JF-17 Thunder produzidos pela China. Neste quesito, a Argentina junta-se ao Chile, o maior operador de caças F-16 na América do Sul (esse último com 48 unidades). Já a Venezuela não tem qualquer capacidade de projetar e produzir aeronaves, e depende do emprego dos avançados Sukhoi Su-30MK2 russos e de obsoletos Chengdu F-7 chineses. A Força Aérea Venezuelana também opera com o F-16 da Boeing, mas devido ao status das relações com Washington, a manutenção dessas

máquinas segue prejudicada. Tal como a Venezuela, o Peru não produz aeronaves, e opera um número pequeno de aeronaves MiG-29, de fabricação russa, bem como cerca de uma dezena de caças Mirage 2000 franceses, projetados ao final dos anos 1970.

A situação da Colômbia é ainda mais crítica, pois a espinha dorsal de suas defesas aéreas conta com apenas seis caças Kfir, de fabricação israelense, ainda operacionais. É desnecessário dizer que os atritos recentes entre os governos Petro e Netanyahu, em função do genocídio perpetrado por Telaviv em Gaza, cortou totalmente o suporte técnico da IAI (Israel Aircraft Industries) à Força Aérea Colombiana. A expectativa é de que a Colômbia perca todo seu poder de interceptação aérea em um ou dois anos.

Em todos esses casos, há uma constante: o tremendo risco geopolítico envolvido na dependência de serviços de engenharia, assistência técnica e de tecnologia mantidos por potências estrangeiras. Cumpre dizer que o acordo de transferência de tecnologia entre a SAAB e a Embraer enfrentou recentemente um pedido de investigação pelo Departamento de Justiça dos Estados Unidos, por supostas irregularidades no processo de concorrência em que a Boeing foi derrotada pela empresa sueca. A ele se somam preocupações em Washington de que, por conter componentes de origem norte-americana, o F-39 Gripen não possa ser objeto de transferência de tecnologia sem aprovação legislativa nos EUA.

Uma política externa altiva e independente, se perseguida de maneira vigorosa na América do Sul, pode, no curto prazo, produzir ruídos capazes de gerar paralisia em elementos vitais para a preservação da integridade territorial e da segurança nacional, a depender do grau de exposição enfrentado por um determinado país. Esse é o preço da dependência tecnológica. E um enquadramento bipolarizante, no qual depender das indústrias russas e chinesas apareça como mal necessário diante da hegemonia norte-americana, tem a face de Jano: não há dependência melhor que outra quando o assunto é preservar ou ampliar os graus de liberdade e autonomia nacional perante o sistema.

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