A patética opção da Europa pela guerra

O espantalho da “ameaça russa” foi erguido. Assustados, “líderes” europeus triplicam seus orçamentos militares (e desmontam o Estado social). Mas indústria bélica tem muitas bocas – e vorazes. Crônica de um desastre geopolítico anunciado

Ilustração: Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.
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O texto a seguir integra o número 14 (novembro de 2025) do boletim do Observatório do Século XXI, parceiro editorial de Outras Palavras. A edição pode ser baixada e lida aqui.

Sem que se entre no mérito da questão, a percepção de risco existencial por parte dos estadistas europeus diante da Guerra Russo-Ucraniana vem funcionando como um catalisador geopolítico. Mais do que uma bem ponderada percepção de risco, é a narrativa de ameaça que parece fornecer o combustível para as decisões políticas em torno do rearmamento europeu. A despeito da premissa unionista em torno da comunidade europeia, o alinhamento dos interesses nacionais no bloco quase nunca é simples; e nesse caso, o controle da linguagem, das categorias e do modo pelo qual a ameaça moscovita aparece no discurso político e midiático tem vindo a calhar. Imaginem o tamanho do desafio de legitimar decisões políticas e financeiras armamentistas, altamente impopulares em tempos de paz, quando as atenções estão voltadas para temas imediatamente sensíveis como imigração e taxas de crescimento econômico modestas; imaginem ainda a titânica necessidade de integrar uma estrutura de defesa que, a despeito da presença da Otan, encontra-se fragmentada. Nada como ter os hunos batendo à porta para se tirar um paquiderme da inércia, e essa tem sido a estratégia narrativa de von der Leyen et caterva.

Não se julga aqui o mérito da percepção, mas os resultados esperados da narrativa que se funda nela.

Se em 2014, na Cúpula da Otan, chegou-se a um acordo não-vinculante de elevação do investimento em defesa a 2% do PIB, o início da Guerra Russo-Ucraniana fez transformar uma mera aspiração em uma questão urgente. A publicação de Strategic Compass for Security and Defence — plano de defesa da UE — e diversas resoluções no Parlamento Europeu enquadraram inequivocamente a Rússia como a principal ameaça à segurança continental e justificaram a necessidade de um salto na capacidade de defesa do bloco. Em 2024, já se esperava que 16 Estados-Membros da UE superassem a meta de 2%, e um número crescente de especialistas passou a defender 3% do PIB como um objetivo mais realista diante da “agressão russa”. Na cúpula da Otan deste ano, assumiu-se o compromisso de investimento de 5% do produto interno bruto em defesa até 2035. Em suma, um crescendo.

E Washington tem ajudado decisivamente a transformar a Rússia em mais um desses espectros que, de tempos em tempos, rondam a Europa. Por mais de oito décadas, os Estados Unidos, com sua liderança inconteste sobre a aliança transatlântica, permitiram que muitas nações europeias mantivessem orçamentos de defesa relativamente modestos. Mas quando Trump passa a ameaçar de serem deixados à própria sorte os membros da Otan que falham com seus compromissos de investimento em defesa, o prospecto de tal coisa entra, inevitavelmente, no horizonte do possível. Com o governo norte-americano eliminando qualquer ambiguidade em seu compromisso com a defesa de seus aliados, e declarando de forma explícita que “a Europa tem de pagar mais” por sua própria segurança, surgiu no horizonte um cavalo de batalha pronto a ser cavalgado pelas lideranças europeias, dispostas a convencer o contribuinte de que o esforço de ter mais armas não só vale a pena, como é inevitável.

Mas pode-se bradar aos quatro ventos tudo aquilo que as sensibilidades políticas admitem. Isso não muda fatos que são objetivos, e que estão muito além das palavras de ordem e declarações contundentes. A autonomia militar europeia esbarra em problemas de viabilidade tecnológica e industrial e, principalmente, em uma convergência política menos efetiva do que se poderia imaginar diante do “terror” provocado pelas “hordas do Leste”. Vejamos.

O mercado de defesa europeu é cronicamente fragmentado, diferentemente do norte-americano, bem orgânico e animado por economias de escala. Por conta de interesses soberanos e nacionais, na União Europeia operam múltiplos sistemas de armas dedicados a cumprir as mesmas funções, o que resulta em ineficiências, custos elevados e falta de interoperabilidade. Quatorze diferentes tanques, 15 tipos de obuseiros de 155 mm, 16 diferentes aeronaves de caça e interceptação, 5 modelos de helicópteros de ataque e 29 classes de fragatas e destróieres fazem parte do portfólio das forças de defesa da UE; enquanto os Estados Unidos operam apenas um modelo de tanque, 3 sistemas de obuseiros, 6 modelos de interceptadores/caças, 2 modelos de helicópteros de ataque e 4 classes de fragatas/destróieres. Embora esses dados sejam do ano de 2012, a situação não se alterou significativamente desde então. Cada sistema de armas redundante representa um interesse industrial doméstico protegido em detrimento da interoperabilidade continental. Não há sinais, no médio prazo, de que esses sistemas de armas serão racionalizados em prol de ganhos de eficiência e escala.

A capacidade de produção europeia está muitos graus aquém do necessário para a sustentação de uma guerra de atrito. Por exemplo, apesar do compromisso da UE de fornecer um milhão de projéteis à Ucrânia até março de 2024, a meta foi atingida com nove meses de atraso, evidenciando os gargalos na cadeia produtiva e a lenta adaptação da indústria de um modelo de produção just-in-time para um de just-in-case. A indústria europeia enfrenta ainda dependência estratégica em tecnologias e matérias-primas críticas, como é o caso da nitrocelulose (componente importante para munições), cuja maior parte da oferta provém da China. No setor aeronáutico, a despeito da existência de modelos locais como o Dassault Rafale, o SAAB Gripen e o Eurofighter Typhoon, a Lockheed norte-americana foi escolhida para fornecer a espinha dorsal da força de interceptadores europeus (com seu F-35). Isso gera um paradoxo estratégico peculiar: ao buscar autonomia justamente por desconfiar da postura internacional dos Estados Unidos, a Europa acaba vendo no F-35 (um sistema testado, interoperável e prontamente disponível) a opção de menor risco no curto prazo. O resultado, assim, é o aprofundamento, e não a redução, da dependência tecnológica europeia em relação a Washington.

Mas talvez o ponto mais delicado esteja na viabilidade política e na coesão estratégica entre os membros da UE. Primeiramente, e ao contrário do que se poderia crer, a percepção da ameaça russa não é monolítica na Europa; existe uma dissonância marcante entre as nações do flanco leste da Otan e os países da Europa Ocidental. Para os “frontline states” como Polônia, Finlândia e os países bálticos, a ameaça é entendida como existencial e imediata, informada pela geografia e por uma memória histórica de ocupação soviética. Em contraste, nações geograficamente mais distantes do “front”, como Espanha, Portugal ou mesmo a França, historicamente mantiveram uma postura mais distanciada, focada em ameaças provenientes do flanco sul, como terrorismo e instabilidade no Sahel. É claro que a Guerra Russo-Ucraniana gerou um grau de convergência sem precedentes e um reconhecimento generalizado de risco; mas disso não se pode intuir que esse risco seja sentido com a mesma intensidade. Essa diferença de percepção acaba se traduzindo em debates políticos internos variados sobre a alocação de recursos e o nível de prontidão militar necessário, que se por um lado não comprometem decisivamente a direção que segue o processo de rearmamento, por outro, vêm aumentando seus custos de transação, e reduzindo a velocidade da mudança.

E, se não bastasse, no coração da UE rivalidades históricas são revividas em meio à tensão. A nova postura militar da Alemanha é ambiciosa; parece inequívoco que Berlim pretende assumir a liderança militar da Europa e colocar em prática um abandono relativo de sua indústria manufatureira em benefício de concentrar esforços para a produção de armamento em larga escala. Em Paris, a postura “heróica” alemã diante do terror russo é vista como um desafio ao tradicional protagonismo francês na liderança da defesa europeia. Isso oferece um substancial entrave à integração dos sistemas de armas ao nível continental, à redução dos custos, à construção de uma política de aquisição comum, e aos ganhos em interoperabilidade e eficiência.

É correto afirmar que a convergência de uma ameaça externa existencial e a incerteza sobre a garantia de segurança americana criaram um impulso político sem precedentes. Mas tal fato não parece que tornará o rearmamento europeu um desdobramento inequivocamente bem-sucedido. Para além das questões tecnológicas e econômicas, que por são grandes por si mesmas, o obstáculo mais crítico permanece sendo o político: a defesa coletiva parece esbarrar em prioridades nacionais, diante das quais mesmo orçamentos vultosos e planos industriais ambiciosos resultarão em pouco mais do que uma coleção fragmentada de capacidades militares, incapaz de garantir a soberania estratégica do continente.

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