Seria o dildo um objeto anti-fálico?

Provocações do filósofo trans Paul B. Preciado. Mais que simulacro, o pênis artificial pode abalar o signo de poder na sociedade. Mostrar a instabilidade do sistema heterocentrado. E contestar a biologia e a psicanálise como demarcações de nossas zonas erógenas

Caixa com dildo e outros acessórios eróticos de casco de tartaruga feitos no Japão na década de 1930 (Wellcome Collection)
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Este texto integra o dossiê O Falo no Divã da edição 308 da revista Cult, parceira editorial do Outras Palavras

Talvez as mais duras e potentes provocações feitas hoje ao movimento psicanalítico e às teorias e práticas que o sustentam se materializem no discurso do filósofo trans Paul B. Preciado. Um elemento central de seu pensamento é a crítica radical do que foi denunciado pelo pensamento feminista da segunda metade do século 20, Monique Wittig e Luce Irigaray à frente, como logofalocentrismo psicanalítico: o modo como a psicanálise legitimaria, com suas teorias e práticas, a dominação masculina, o patriarcado e a redução a objeto das mulheres, seja objeto epistêmico, seja objeto de troca, sexual ou mercantil.

Não por acaso, o falo está no núcleo dessa categoria, bem como dos dispositivos, operações e efeitos que ela procura descrever. É visando a essa centralidade que a operação contrassexual desencadeada por Preciado toma em suas mãos um dildo, ou vários.

Dildo? Preciado, em seu Manifesto contrassexual, afirma tratar-se de algo aparentemente marginal, “um objeto de plástico que acompanha a vida sexual de certas sapatonas e gays queers, e que até agora havia sido considerado como uma simples prótese inventada como paliativo da incapacidade sexual das lésbicas”.

Tal objeto, para muitos pouco significativo, tem o poder de desestabilizar precisamente esse signo maior da psicanálise e do seu poder, o falo. Parte dessa perturbação se materializa precisamente em sua banalidade, no caráter ridículo de sua posse, que o leva a ser escondido no fundo de gavetas e em compartimentos secretos. Theo Barreto, em seu conto “Coxas”, narra as desventuras de um jovem homem trans que, diante da visita inesperada de policiais, vê sua “valiosa coleção de caralhos voando pelos ares” e se embaraça diante da necessidade de explicar por que precisa de tantos ou por que nenhum, nem aqueles de carne, parece cumprir totalmente com o que deles esperamos.

O dildo traz consigo algumas das propriedades do falo, ou as sublinha, como ser transformável, destacável do corpo ou servir de instrumento de poder, capaz de fazer o outro gozar. Mas, por outro lado, talvez denuncie e interrogue, ou desconstrua, até mesmo a partir da reafirmação desses elementos, o vínculo imaginário entre o pênis e o falo, ou o poder deste último como eixo fundamental da relação consigo mesmo e com o outro.

Preciado nos lembra de que se o falo é um significante, como tal está, na verdade, pouco presente em nossa linguagem ordinária. Falamos, como Freud falava, de pênis, e se o falo – termo, aliás, de rara presença no texto freudiano – aparece como signo de poder, completude ou onipotência, em diversas manifestações culturais, artísticas ou religiosas, ao longo da história da humanidade sua materialidade se dá como representação figurada do órgão masculino, ou seja, para a maioria de nós, sob a forma simples de um pau duro.

É contra esse imaginário que se faz de simbólico que Preciado se volta, então, quando organiza sua resistência ao dispositivo de sexualidade a partir da eleição do dildo em representante maior de um novo regime de corpos e prazeres.

Seu elogio do pênis artificial, protético, acessível a todes, nos remete ainda à consideração de que se a redefinição estrutural da narrativa edípica, operada por Lacan, por um lado retirou dos nossos processos de socialização e de constituição subjetiva o peso excessivo da historinha familiar pequeno-burguesa, destacando, em vez disso, a dimensão simbólica desses processos, por outro operou o apagamento – ou o desmentido – da incidência nesses processos de um imaginário profundamente marcado pela cultura – e, portanto, por dominação masculina, patriarcado e outras coisas mais. Passamos a lidar com abstrações tão sofisticadas que se torna difícil perceber sua presença concreta em nossa experiência cotidiana. Nesse sentido, poderíamos dizer que, com Preciado, o dildo faz o falo descer à terra.

O elogio do dildo desencadeia ao menos dois grandes movimentos: no primeiro deles, o dildo toma o lugar do pênis na performance sexual, mostrando que ele pode ser substituído e, assim, desmascarando sua pretensão de encarnação do falo; no segundo, o dildo destitui o falo, tomando mais uma vez seu lugar, como nas diversas cenas cinematográficas de nudez frontal nas quais uma prótese se oferece a nosso olhar enquanto o original desaparece de vista, como se o genital verdadeiro não pudesse ou não fosse digno de ser exibido. Primeiro a afirmação do simulacro, depois a desconstrução através da paródia.

Há, de fato, algo de absolutamente irônico no elogio do dildo, do consolo, do peru de borracha, algo de risível que se imiscui no reino da sacralidade sexual, incorporada pela psicanálise, que instiga comparações do orgasmo com uma pequena morte ou sua leitura na esfera mística do encontro com Deus e o sagrado. Ironia com importantes efeitos políticos e epistêmicos, a começar pela reintrodução da pura fantasia, do devaneio, do obsceno, em nossa reflexão teórica, tanto quanto em nossas práticas sexuais.

O campo, o terreno no qual Preciado joga, brinca com o dildo e sua potência, é a vida sexual, o registro dos corpos e prazeres, como desejaria Foucault, e não o da linguagem ou da ordem simbólica. O dildo reintroduz no corpo a materialidade e também, nas conversas sobre sexo e gênero, a materialidade do ato sexual.

Tendo mais valor como performance do que por seus efeitos performativos, o dildo desloca para o campo da ação, para a territorialidade corporal, certas operações de produção de sentido que cobrem os corpos de significado. Dessa forma, já não será a biologia ou a psicanálise que demarcarão, por exemplo, nossas zonas erógenas. O gozo, o orgasmo, se torna teatral. Uma cena. Não por acaso, Preciado resgata uma noção cara a Judith Butler, a ideia de paródia, associada a uma transformação plástica do ato sexual que incide sobre o seu sentido e o descola da reprodução ou mesmo de uma anatomia naturalizada. Subverte-se, assim, o caráter produtivo da penetração e destaca-se seu aspecto supérfluo.

O falo, com o dildo, se transforma definitivamente em mercadoria, e podemos dizer que o sexo se inscreve na lógica do consumo, com seus múltiplos modelos e referências a estrelas da indústria cultural. Mas o dildo talvez nos revele apenas o que já estava lá, embora agora todos possam ter a pica mágica do ator pornô Jeff Stryker. No império do dildo, não há lugar para a inveja do pênis.

Sua subversão da ordem fálica, operação de democratização do seu poder, se faz no corpo, pelo corpo, para o corpo. É na materialidade dos corpos que gênero e sexualidade se fazem, mas essa materialidade não é da ordem da natureza, e sim da prótese, já que, investido do poder fálico, o pênis é, na verdade, também ele uma prótese, só que de uso exclusivo do corpo masculino.

Empurrando-nos para o território das próteses, vizinho ao vasto campo da “experimentação química”, no qual se encontram o fármaco e o pornográfico, o dildo aponta o monstruoso, o ciborgue, corrompe o humano ou expande seus limites. Assim, inscreve-se no que constitui um dos elementos centrais do horizonte ético-político do pensamento queer: a interrogação das fronteiras da humanidade – ou do nosso tão idolatrado humanismo.

Nesse ponto, não custa lembrar que o falo aparece na psicanálise como elemento central de duas grandes mitologias: os complexos de Édipo e de castração, frequentemente convertidos em invariantes antropológicas responsáveis pela demarcação absoluta dos limites do humano e pelo núcleo de uma antropogênese de matriz psicanalítica.

Esse pequeno, ou às vezes enorme, objeto se torna então instrumento decisivo na construção da utopia contrassexual de Preciado, cujos princípios se desenham a partir de valores como: o apagamento das distinções entre masculino e feminino; a afirmação da incerteza e da instabilidade do sistema heterocentrado e da epistemologia da diferença sexual que estrutura os processos de corporificação e também de nomeação das existências ditas humanas; a perturbação das hierarquias, que se materializam nos sistemas de filiação e parentesco e se articulam a práticas de disciplinarização e docilização dos corpos e prazeres, sobretudo a hierarquia fundada na ideia de natureza e que baseia a distinção entre natural e antinatural, ou entre normal e anormal, como a distinção – também hierárquica – entre o necessário e o supérfluo, afirmando, contra natura, em seu lugar, o valor e a potência do fabricado, do prostético, do ciborgue; recusa da distinção entre o público e o privado, sustentando, contra ela, o reconhecimento da potência política do íntimo, como elemento central da luta pelo autogoverno.

Tudo se passa na esfera do jogo, da apropriação, da paródia, da brincadeira irresponsável. Ou talvez devêssemos dizer simplesmente, em bom português, nos domínios da sacanagem. Preciado sacaneia o falo, retira dele qualquer sacralidade e transcendência, e acredita nos poderes políticos desse ato (contrassexual). Desse ato saem efeitos, lições, para a psicanálise? Transaríamos melhor se deixássemos o falo de lado e brincássemos com o dildo de Preciado (estou me referindo a nossas teo­rias e práticas clínicas, naturalmente)?

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