Por um Memorial às Vítimas da Necropolítica
Como monumentos contra o horror de guerras e genocídios são erguidos, Brasil precisará recordar para reparar o luto coletivo de mais de 520 mil mortes – enquanto, no presente, tombamos a estátua (ainda) viva da destruição nacional
Publicado 07/07/2021 às 19:52 - Atualizado 08/07/2021 às 11:47
Desde o início da pandemia, já foram mais de 520 mil vítimas de covid-19. Meio milhão de pessoas é gente demais para ser ignorada, é gente demais para ter a morte naturalizada e para que uma nação não reflita sobre o significado de tantas vidas perdidas que poderiam ter sido evitadas.
Falar em memória desse momento histórico, do luto como vivência coletiva e menosprezada por nossos governantes é urgente e necessário para que as futuras gerações conheçam o vivido e possam se munir de informações para impedir que o fato se repita.
Há quem defenda a construção de um memorial sobre as vítimas de covid-19 para que essas mortes fiquem registradas – uma forma de fazer lembrar as vítimas de processos de violência, perseguição do Estado, guerras e mesmo, como no caso atual, de políticas genocidas. Em muitos países, é possível vermos restos de prédios que foram bombardeados (como em cidades da Alemanha), monumentos que relembram vítimas “desaparecidas” (como na Cidade do México), museus visitados por estudantes argentinos de lugares onde houve tortura durante a ditadura militar. A falta de memória coletiva produz efeitos nefastos em uma sociedade, a exemplo do que vivemos com o período anterior de ditadura militar, fato que ficou banalizado, esquecido – onde anistiamos tanto quem resistiu à ditadura como quem perseguiu, torturou e assassinou as pessoas que se opuseram à violência e ao rompimento do pacto democrático. Hoje, temos no poder representantes dos porões da ditadura e vemos a falta que fez o não processamento da sociedade brasileira sobre o significado deste período.
Voltemos à atualidade. Neste 1 ano e 3 meses de pandemia, aumentou a tragédia social e econômica do povo brasileiro, principalmente das mulheres. São diversos os estudos e pesquisas que confirmam o aumento da sobrecarga das mulheres neste período de pandemia, e que apontam sobretudo o aumento das violências, em uma sociedade já bastante violenta como é o caso do Brasil. Em 2020, foram assassinadas 1.388 mulheres no Brasil, a maioria negra, mostrando mais uma vez como se amplia o fosso das desigualdades estruturais e sociais de um país racista e machista. O aumento dos casos de feminicídio no país fez surgir o Levante Feminista – Campanha Nacional contra os Feminicídios no Brasil. “O clima favorável ao extermínio, que dá aos homens licença para matar, é efeito desse Estado que, em conluio com forças religiosas ultrarreacionárias, vem destruindo direitos duramente conquistados pelas mulheres. O Estado feminicida vem impedindo a prevenção à violência contra mulheres e meninas, deixando-as abandonadas à própria sorte, entregues a abusadores e violentadores que acabam por se converter em seus assassinos”, denuncia um trecho do Manifesto do Levante, que já soma mais de 110 mil assinaturas.
Os movimentos negros, indígenas e feministas vêm denunciando quão nefasto e trágico é o comando político de representantes de uma ordem política e ideológica misógina, fundamentalista, racista, etnocida e ultraneoliberal. É como se fôssemos comandados por um governo de homens brancos (herdeiros dos senhores de engenho, escravocratas) e “machões” (no pior sentido da palavra, daquele que se opõe a respeitar e a enxergar as mulheres como seres iguais, usando da violência e demais formas de opressão para subjugar-nos a um lugar servil, sem vontade própria) violentos, endinheirados pela corrupção, exploradores das trabalhadoras e trabalhadores, de nossos bens comuns em detrimento dos povos que vivem nos territórios e que cuidam de nosso meio ambiente, como os povos indígenas, quilombolas, pescadoras e pescadores artesanais, e demais povos das florestas e das águas.
Governo genocida, feminicida e ecocida
As denúncias feitas por esses movimentos, a partir de números reais, de iniciativas legislativas de representantes dessas mesmas forças políticas anti-povo e da intencionalidade política em não atuar para coibir a epidemia do covid-19 no país fornecem elementos para as acusações de que estamos diante de um governo genocida, feminicida e ecocida.
Bolsonaro institucionalizou a necropolítica (conceito crivado por Achile Mbembe) em seu governo, e é de fato um governo de morte, que promove e institucionaliza a morte sob suas diversas formas, inclusive com a disseminação do ódio na sociedade, prova disso é o aumento da violência política de gênero e raça contra mulheres que estão em espaços de poder e decisão.
No dia 2 de julho, a Frente Parlamentar Feminista Antirracista com Participação Popular lançou a campanha “A democracia precisa de diversas vozes” com o objetivo de dar visibilidade ao tema. Movimentos e deputadas que integram a Frente convocaram a sociedade brasileira a enfrentar essa realidade a partir de uma ação conjunta, pois tem sido frequente as tentativas de intimidação, de calar vozes das deputadas em sessões de plenário no Congresso Nacional, ameaças de mortes diante de câmeras, agressões verbais e censuras. O mesmo acontecendo também com ativistas feministas, negras, indígenas que persistem em defender a cidadania e a vida das brasileiras. Tem sido corriqueiro assistirmos os ataques destes senhores, que se chamam de “nobres deputados” e afins, às mulheres, negras e pessoas trans eleitas em mandatos coletivos e/ou comprometidas com agendas libertárias e progressistas nas últimas eleições municipais.
Paralelo ao aumento da violência e das mortes, a população brasileira acompanha a cada semana os desdobramentos da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) no Senado Federal sobre a pandemia. A lista de responsabilização do governo Bolsonaro sobre as mais de 520 mil mortes de brasileiras e brasileiras cresce a cada novo depoimento. Gabinete paralelo, incentivo de uso de medicamentos para tratamento precoce e sem comprovação de eficácia, disseminação de fake news, superfaturamento na compra de vacinas, falta de gestão nos piores momentos da crise como a exemplo do caso de Manaus que chocou o país, com a ausência de oxigênio nos hospitais. A lista é grande e repetimos a pergunta: por que ele ainda está no poder?
Bolsonaro já é o recordista de pedidos de impeachment na Câmara dos Deputados, são mais de 100 e, mesmo assim, o presidente Arthur Lira não vê motivos para julgar os pedidos. No dia 30 de junho foi protocolado um superpedido de impeachment na Câmara, com 46 assinaturas, que imputa a Bolsonaro mais de 20 crimes previstos na Lei 1.079/50, conhecida como Lei do Impeachment. Entre os crimes: cometer ato de hostilidade contra nação estrangeira, tentar dissolver o Congresso Nacional, atrapalhar investigações, violar o direito à vida dos cidadãos na pandemia, incitar militares à desobediência à lei e não agir contra subordinados que agem ilegalmente.
Enquanto isso, a base governista segue na tentativa de “passar a boiada”. Avançam as propostas de privatização de empresas nacionais, a reforma administrativa – que retira a estabilidade dos funcionários públicos –, a retirada de direito das populações indígenas, as investidas contra a legislação ambiental, só para citar alguns exemplos.
Nas últimas semanas, Bolsonaro conseguiu sem muitos esforços a aprovação para privatizar a Eletrobrás (PLV 07/2021) e também autorização para aumentar, ainda mais, a tarifa de energia elétrica no país. O combo de interesse econômico (duvidosos) não para, enquanto privatiza de um lado e de outro, com o apoio dos ruralistas e de sua base, continua com as ofensivas contra os povos indígenas. A promessa de campanha de não demarcar nem um centímetro de terras indígenas se cumpre materialmente com a aprovação do PL 490/2007, aprovado na Comissão de Constituição e Justiça no dia 23 de junho e que segue para votação no plenário da Casa.
Por mais de 20 dias mais de 800 indígenas de diversas regiões do país acamparam em Brasília para resistir e lutar contra a aprovação do que chamam de PL da Morte, que na prática inviabiliza a demarcação de terras indígenas e promove a abertura dos territórios ao agronegócio, à mineração e à construção de hidrelétricas. O Supremo Tribunal Federal julgará em agosto as ações de reintegração de posse movida pelo Governo de Santa Catarina contra o povo Xokleng, referente à Terra Indígena (TI) Ibirama-Laklãnõ, onde também vivem os povos Guarani e Kaigang. A decisão do STF terá status de “repercussão geral” e servirá como diretriz para a gestão federal e todas as instâncias da Justiça, sobre a demarcação das TIs. Para saber mais sobre a tese do marco temporal, defendida por ruralistas, e como ela inviabiliza a vida dos povos indígenas acesse o site da APIB – Articulação dos Povos Indígenas do Brasil.
Toda a situação enfrentada pelos indígenas tem embasado nossos parentes a produzirem uma peça jurídica recém-apresentada ao Tribunal Penal Internacional com objetivo de imputar a Bolsonaro o crime de ecocídio – conceito que recentemente ganhou definição jurídica e avança rumo à penalização e que se refere, principalmente, a danos graves e duradouros ao meio ambiente e planeta.
Mortes evitáveis
Mais de 120 mil mortes teriam sido evitadas no Brasil no período de março de 2020 a março de 2021, se o país tivesse sob orientação de um governo preocupado com a vida de seu povo. Os dados são do Estudo Mortes Evitáveis por Covid-19 no Brasil, produzido pelo Movimento Alerta e apresentado por Jurema Werneck na CPI da Covid no Senado, no dia 24 de junho. Em uma longa sessão, senadores e senadoras puderam ver os dados sobre as consequências da ação negacionista e do projeto de morte do desgoverno.
Durante um ano de pesquisa foram analisados dados oficiais sobre a morte no país de Bolsonaro. Jurema, ativista negra e médica, destacou em sua apresentação, que o Brasil teve tempo para se preparar para os efeitos da pandemia. Teve tempo, mas o governo debochou da calamidade de saúde pública que se avizinhava. “Haviam formas de salvar em partes as vidas que perdemos”, destacou Jurema Werneck, que é Diretora da Anistia Internacional no Brasil. Era possível ter uma redução de 40% das mortes.
O Estudo também confirma o fosso de desigualdades provocados pelo acesso à saúde no Brasil, mais de 66,1% das internações de negros, amarelos e indígenas por covid-19 foram concentradas em hospitais públicos. “As desigualdades estruturais tiveram influência sobre as altas taxas de mortalidade. A maioria das pessoas que morreram no Brasil eram negras, eram pobres”, apontou Jurema Werneck.
Com o SUS pressionado, sobrecarregado, Werneck ressaltou que das 20 mil pessoas que morreram em unidades pré-hospitalares não tiveram condições de atendimento adequado.
Entre as recomendações do Estudo, Jurema Werneck destacou a necessidade de criar um memorial para as vítimas da covid no país, proposta apresentada pelas organizações que assinam o Alerta, defendendo que “a sociedade brasileira precisa viver esse luto”. Além do memorial, também foi apontado a necessidade de criar um plano de responsabilização e reparação, “responsabilização daqueles que deixaram de fazer o que era preciso fazer. Uma reparação coletiva. A sociedade brasileira precisa encontrar formas de reparar danos que foram causadas pela pandemia”.
Em abril deste ano, em meio as mobilizações de greve geral na Colômbia, que já duram dois meses, contrárias as medidas de austeridades adotadas pelo governo de Iván Duque, um cartaz saltou aos olhos de milhões de pessoas: “Se um povo vai às ruas em meio a uma pandemia, é porque o governo se tornou mais perigoso que o vírus”. Por aqui, inspirados nos colombianos, foram muitos os cartazes que repetiam a mesma frase nas manifestações massivas que ocorreram nos dias 29 de maio, 19 de junho e 3 de julho em várias cidades do país e que pedem a saída de Bolsonaro e Mourão da presidência do país.
O governo fascista de Bolsonaro aprofundou o ódio no país, aprofundou o ódio sobre as mulheres, sobre a população negra, sobre direitos dos povos indígenas, e essa ingerência sobre a pandemia faz parte da necropolítica instituída no país.
É, portanto, passada a hora de dizer um basta a esse governo genocida, feminicida, ecocida que extermina o povo brasileiro e destrói nossas florestas e bens comuns. As mulheres sempre estiveram nas ruas na luta por direitos e por justiça nesse país. E será nas ruas, mais uma vez, que nós mulheres, com nosso feminismo antipatriarcal, anticapitalista e antirracista. Seguiremos ecoando nossas vozes pela derrubada deste governo e toda sua representação bolsonarista. Nossas vozes também clamam por memória, e pela defesa de um governo civil, livre da tomada militarista – e miliciana – do poder que se instalou na política institucional. Daí a importância da soberania popular diante da crise política exposta atualmente, pois o fato do governo mais violento, nefasto, antidireitos, corrupto persistir é prova dos limites das nossas instituições que são negligentes diante da gravidade da situação.
Como demonstram as sessões da CPI no Senado é possível imputar responsabilidade aos “nobres” senhores que comandam a política atual pelas mortes evitáveis de centenas de milhares de brasileiros e brasileiras que estão morrendo pela pandemia. E, como ecoam militantes e a sociedade civil brasileira também é possível imputar responsabilidade pela ação persecutória, violenta e exterminadora destes senhores contra as mulheres, indígenas, povo preto, favelado e trabalhador deste país. Fora Bolsonaro e Mourão!