Política: entre fraldas sujas e amor

Diálogo com Maria Rita Kehl. Há debates incômodos sobre classe, raça e gênero que as esquerdas devem fazer. Tachá-los de identitários ou narcisistas não ajuda. A política exige lidar com o desagradável para alcançar laços sociais e transformação

Imagem: Mãe Preta (1940), de Candido Portinari
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Ao GEPEF, que me ensina a amar na beleza e na sujeira

Manifestei certo incômodo em relação a um trecho da recente entrevista dada por Maria Rita Kehl, referenciando o artigo “Como dói o dedo na ferida” (2020). Quero elaborar melhor a verdade – sempre não-toda – de meu gesto nas redes.

O início é o amor. Talvez elementos dele sirvam como pontos de partida para o que pretendo abordar sobre política. Só há amor de verdade junto com a sujeira que dele também é parte. O exemplo mais óbvio está no cuidado com bebês. A criança faz cocô. O cheiro terrível exala da fralda e alastra-se pelo recinto. Olha-se para os céus. A esperança é de que o problema seja magicamente solucionado: alguém limpará a merda. O bebê será entregue limpinho e cheiroso.

Respira-se fundo. Não há saída. Encara-se o drama. A raiva – também uma sujeira afetiva – está lá. Limpar merda é desagradável. O bebê rechonchudo pesa. Os braços se estraçalham nas manobras da lavagem. Impedidas de se esquivarem, as narinas absorvem ainda mais o fedor. Além de tudo, a merda quase sempre resguarda surpresas: 1) Sai pelas bordas da fralda, exigindo troca de roupinha (mais trabalho no futuro com lavagem etc.); 2) Aparece esverdeada, indicando o início de uma diarreia; 3) O odor é mais forte do que se supunha – e por aí vai. Também existem boas surpresas. Um cocô durinho, por exemplo. Motivo de festejo: basta algodão com tônico de limpeza.

Fato é que outras partes compõem essa cena. Em meio à troca de fraldas aparece o bumbum fofinho do bebê. As mãozinhas dele querem te pegar. Ele dá aquele sorriso sedutor junto ao olhar amoroso. Logo, a tarefa inglória transforma-se. Abre-se um campo para a intimidade. Tem cuidado e tem merda. Tem amor e tem raiva. Quando a missão acaba, é quase certo que o amor terá invadido a raiva. Todavia, não é necessário romantizar as merdas do processo para fazer valer o amor.

Alguém pode argumentar que cenas de bebês e cuidadores são a pior escolha a ser feita para tratar a política. Questões de cuidado, ainda mais com imagens rasteiras como fraldas, papinhas, vômitos, roupas sujas etc., não estariam no escopo da vida adulta entre cidadãos que falam na pólis – lugar do logos, de discursos.

Todavia, o feminismo ensina que o trabalho com a “sujeira” da vida é parte da política. Tanto a esfera privada, quanto os cuidados reprodutivos (casa, limpeza, crianças etc.) integram a base material da vida. Exigem debates sobre distribuições mais justas. Por isso, o lema “o pessoal é político” vai na direção contrária ao que defende Maria Rita Kehl em seu “Lugar de cala-se”:

O que seria da democracia se cada um de nós só fosse autorizado a se expressar em relação a temas concernentes à sua experiência pessoal? O que seria do debate público? Cada um na sua casinha…? O que seria da solidariedade, essa atitude baseada na identificação com o nosso semelhante na diferença, se só conseguíssemos nos solidarizar com quem vive as mesmas experiências que nós?

Embora difira do lema feminista nessa passagem, o artigo segue com alguns argumentos que considero pertinentes, dentre os quais se destaca o seguinte: “Nenhuma ‘palavra de ordem’ se manteve mais atual, ao longo dos séculos, do que o lema da Revolução Francesa: igualdade, liberdade e fraternidade”.

Ainda que já tenha sido exaustivamente discutido e explicitado pelos movimentos e estudos tidos como “identitários”, insisto que o alvejado “lugar de fala” não significa manter-se na própria casinha. Embora as redes sociais favoreçam esse modelo narcísico e egóico, os estudos interseccionais de classe, raça e gênero não são identitários. Não se trata do eu narcísico. O que se pretende é situar a emissão das palavras nos diferentes estratos que compõem as estruturas de poder. O intuito não é calar, mas garantir que debates se deem com maior isonomia. Se padrões de desigualdade se perpetuam nas estruturas de poder – o que não é uma simples diferença –, eles também precisam ser politicamente considerados nas discussões.

Ou seja, a aposta no lema “liberdade, igualdade e fraternidade” não ocorre em um território liso, no qual as palavras são neutras. Bases materiais que sustentam lugares de poder não se anulam por completo na emissão discursiva. Em razão da opressão histórica, palavras também podem destoar em peso e força. Daí o apelo de comunidades ligadas pelas questões de classe, raça e gênero para que se leve em conta outras facetas de desigualdades sociopolíticas e históricas nos debates.

Nessa seara, não é incomum que “sujeiras”, antes soterradas, sejam trazidas à luz. Desqualificar tais manifestações ou julgá-las pela régua moral entre dois polos antagônicos – certo e errado – pode significar recalcar mais uma vez elementos que levaram séculos para emergir. No limite, suprimir partes sujas da vida e dos discursos pode redundar em processos de abstração dos corpos falantes. É o procedimento da extrema-direita. Como ensina Judith Butler, há corpos que se tornam mera morte a ser limpa de territórios, enquanto há corpos que pronunciam seus vereditos e determinam quem é ou não matável – concreta ou simbolicamente.

Nesse ponto, presumo que a identidade cartesiana seja a melhor opção: encarnar o método da dúvida. Se a sujeira emergiu, o debate pode se desdobrar e se enriquecer a partir dela. Será uma oportunidade para refletir e separar o joio do trigo, esperando que modelos mais equânimes possam se expandir.

Não são os “identitários” – péssimo nome, aliás – a fazerem a distinção entre matáveis e não matáveis. A articulação de classe, raça e gênero visa conceder consistência e visibilidade aos corpos política e historicamente tidos como descartáveis, invisíveis ou inaudíveis. Quando Lélia González diz “o lixo vai falar, e numa boa”, ela indica que aquilo que parecia descartável finalmente assume poder em seu lugar próprio de fala no interior dessa estrutura patriarcal e colonialista de espoliação.

Se trago tudo isso à baila é porque o momento demanda rever certa incomunicabilidade que se estabeleceu entre a esquerda de tradição marxista e as chamadas lutas identitárias (grande parte, diga-se, alinhadas a leituras marxistas). Os efeitos de tomar certas pautas como sujeiras meramente egóicas e narcísicas – elas também podem ser isso, mas não são apenas isso – e recalcá-las mais uma vez pelo julgamento são avassaladores em diferentes esferas da existência: sexualidade, afetos, laços, trabalho.

A merda está à mostra. Sem dúvida, vê-la tem um custo, mas não é necessariamente ruim. Todos somos por ela responsável. O que emana de bocas descartadas ou oprimidas por tanto tempo nem sempre virá limpinho ou organizado. O que emana de bocas privilegiadas também não aparecerá limpinho ou organizado. O que se extrai desse mar de lama revolto?

Seguindo as premissas acima explicitadas, causa espécie a insistente crítica aos movimentos ditos “identitários” por parte de uma parcela antiga de intelectuais da esquerda. Situo neste ponto o meu incômodo diante da crítica feita não só por Maria Rita Kehl, mas por tal segmento de intelectuais. Inicialmente, o que significa o predicado “identitários”? A rigor, identidade pode ser qualquer nome junto a algo que o predique: petista, psicanalista, brasileira/o. Uma grande parcela desses sujeitos “identitários” se formou com a esquerda marxista. Não é raro ouvir chauvinismos masculinos de tal parcela de cidadãos bem formados, mas esses “deslizes” são frequentemente naturalizados – a violência deles não fica registrada. Na academia, perdoa-se quase cegamente o que se repete de maneira inaceitável. Talvez o amor tenha relação com tal naturalização: por uma espécie de dívida em relação aos antigos mestres, passa-se o pano sobre muitos absurdos.

Por outro lado, não é rara a reação desqualificante por parte de certos porta-vozes da esquerda tradicional diante de alguém que pesquisa e busca colocar em prática as articulações feitas pelos estudos interseccionais de classe, raça e gênero. Hoje, em função de uma espécie de vigilância – muitas vezes excessiva, é verdade – a esquerda tradicional parece acuada. Parece ser esse, aliás, o ponto do artigo e das falas insistentes de Maria Rita Kehl contra os nichos ou bolhas “identitárias”.

Se o olhar de algumas figuras da esquerda tradicional estivesse menos atento ao próprio narcisismo, talvez elas percebessem que a lógica de cancelamentos e linchamentos é inerente à própria engrenagem digital das redes, que opera apenas por 0 ou 1. Não se trata de culpar “identitários”. Aliás, quando se instaura uma polêmica, ao contrário de cancelamentos o que se tem é uma maior visibilidade para a pauta discutida que se abre em várias direções, inclusive recuperando aspectos importantes tratados por representantes da esquerda tradicional.

Por isso, diria que o maior problema das críticas dirigidas às lutas ditas “identitárias” por parte significativa de intelectuais que representa a esquerda tradicional é simples. Chama-se limite. Ocupam plataformas de visibilidade e opinam sobre o que não se deram ao trabalho de estudar. Além disso, não se pode dizer que o “ser de esquerda” nunca tenha calado ninguém. O orgulho ressentido de cidadãos que aderiram à extrema-direita, aliás, relaciona-se com certo anseio envergonhado de participar da política. Não vendo espaço nos meios mais intelectualizados e militantes à esquerda, grudaram nos protocolos extremistas da direita. Por mais difícil que seja admitir, esse problema não é só dos fascistas – a responsabilidade e o fracasso por haver ainda hoje fascismo no mundo é de todos nós.

Se o feminismo ensina que “o pessoal é político”, a psicanálise ensina que o infantil está intensamente vivo no corpo adulto. Sobreviver ao infantil e ao pessoal, pouco articulados e elaborados, também tem sido uma tarefa política. Não dá para negar que ainda se engatinha no Brasil em relação às questões de maior igualdade entre classes, raças e gêneros. Ao invés de desqualificar lutas importantes com críticas rasas, será necessário abraçar sem preguiça o imenso trabalho que concerne à esquerda tradicional e às pautas feministas, negras, indígenas, LGBTQIAP+.

Velhas fórmulas psicanalíticas ou marxistas usadas de maneira judicativa desqualificante não cabem mais. Ninguém se salva na pureza quando dedos são apontados. Não seria melhor encarar a sujeira que nos concerne como humanos ao invés de rechaçá-la mais uma vez? Como a metáfora da fralda, acolher a sujeira da política e dos laços pode servir para uma abertura ao amor e à maior intimidade com a nossa história como cidadãos.

Maria Rita Kehl, agradeço-lhe por tudo que você já escreveu. Se aqui me dedico a comentar sua entrevista é porque também considero importante não me entregar a um bovarismo à brasileira – me atenho à nossa história, e você tem uma parte muito bonita nela.

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