Músculos e criptos: as novas usinas da misoginia
Quando a crise corrói as perspectivas profissionais, avançam no universo macho o culto ao corpo malhado e a aposta na especulação com moedas. Como eles se relacionam com a rejeição ao Comum, ao Cuidado e, por tabela, às mulheres?
Publicado 05/09/2025 às 20:20 - Atualizado 05/09/2025 às 20:21

Por Nuria Alabao, no CTXT | Tradução: Antonio Martins
Este é o segundo texto de uma série que se propõe a percorrer as principais vertentes da masculinidade tóxica contemporânea. O primeiro artigo está aqui
No artigo anterior, analisamos a esfera vinculada às relações afetivas e sexuais, falando de artistas da conquista, “incels”, “no fuckers” e outras espécies antifeministas. O fio que conecta essas tendências ao culto do corpo musculoso e ao investidor popular – especialmente em criptomoedas – é o apelo ao desenvolvimento individual; o empreendedorismo de si mesmo explode nas redes.
Uma das explicações mais recorrentes para a ascensão das extrema-direitas em todo o Ocidente aponta para o incremento da precarização da vida, derivado do aumento da concentração de riqueza e de seus poderes concomitantes, após quarenta anos de neoliberalismo. Já existem pesquisas que relacionam o aumento da precariedade entre os jovens com a reação antifeminista, como este estudo de Javier Carbonell. Na manosfera, os sentimentos de insegurança, fracasso ou impotência encontram uma explicação e uma direção política em sentido reacionário.
É certo que os jovens se deparam com uma ausência de certezas vitais maior do que em gerações anteriores. Sem perspectivas laborais estáveis, têm enormes dificuldades para se independizar devido à crise habitacional. Veem-se condenados a uma menoridade quase eterna – a idade de emancipação econômica em relação aos pais é, na Espanha, de 30,4 anos. A tudo isso soma-se o peso psicológico da catástrofe climática. Paradoxalmente, suas expectativas de consumo são muito altas, em um mundo no qual quase tudo está à venda. Já há mais produtos diferentes do que espécies vivas no planeta. E, ainda que uma parte da população esteja excluída dessa orgia consumista, a lógica do desejo segue operando como uma força central. Comprar objetos tem uma dimensão identitária e aspiracional, serve para construir-se e representar-se perante o mundo. De modo que aumenta a distância entre os que acessam esse quase tudo e os que terão que se conformar com o que for possível.
Neste contexto, a precarização estrutural e as promessas truncadas podem ser uma estrada para a hecatombe emocional que os torna mais dependentes do sucesso nas redes. Também das mensagens que circulam na manosfera, onde a hipermasculinidade emerge como resposta compensatória, prometendo recuperar o controle sobre a própria vida por meio da transformação corporal e do sucesso econômico a partir da especulação. “A hierarquia, isso que chamamos de patriarcado, está baseada na competição. Seja responsável e ocupe sua posição nela”, diz Jordan B. Peterson, um dos famosos filósofos do antifeminismo que insta os homens a serem combativos “como as lagostas”.
Os jovens constroem sua identidade hoje uma sociedade que alimenta ilusão de cada um poder ser o que quiser (desde que tenha dinheiro). Porém, veem que essa possibilidade lhes escapa entre os dedos. Neste contexto, reafirmação da masculinidade funciona como uma aposta contra o medo. As mensagens que estes jovens recebem lhes dizem que podem resistir, que não precisam de ninguém. Ser homem, aqui, é fundamentalmente isso: a imagem da autonomia absoluta, a soberania sobre o corpo e o destino que encontra seu curso na ideologia onipresente do empreendedorismo e em uma apelação ao desenvolvimento individual – se você quiser, você pode. De qualquer forma, melhor ser homem do que encontrar-se na absoluta intempérie. Algo a que se agarrar em meio ao colapso, mas que se revela uma aposta viciada: sustentar essa masculinidade é um trabalho de Sísifo, gera um custo excessivo e não garante escapar da incerteza.
Vestidos de músculos
Após a pandemia, reforçaram-se as tendências já existentes sobre o cuidado extremo da saúde, a alergia ao envelhecimento e o medo da morte. As redes transbordam de truques para cuidar de si, os shakes mais saudáveis – e repugnantes –, as melhores rotinas de skincare para seguir prolongando a juventude até que a morte nos surpreenda. O culto ao corpo intensificou-se como uma das formas privilegiadas de subjetivação. Este fenômeno expressa-se no auge das culturas do fitness e dos homens – frequentemente jovens – que investem dinheiro e disciplina na transformação muscular de seus físicos. Embora seja algo que atravessa todos os gêneros, para os homens há uma versão desta aposta pessoal que pode vincular-se ao antifeminismo. Esse nicho existe porque este processo de “superação” é, ao mesmo tempo, uma prática de autodisciplina individual e uma forma de inserção coletiva em comunidades masculinas onde se negociam status, reconhecimento e senso de pertencimento; onde se pensa estar, também, um pouco menos sozinho.
A possibilidade de “fazer-se a si mesmo” por meio da transformação física converte-se assim em uma narrativa e em uma promessa. O corpo trabalhado funciona como prova visível de virilidade e mérito pessoal. Se você tem sucesso dominando seu corpo, sem dúvida terá neste capitalismo competitivo que exige até a última flexão — madrugar, não deixar passar um minuto sem produzir, vender ou consumir algo. Neste sentido, a academia opera como uma fábrica de subjetividades meritocráticas, onde o músculo substitui o capital como sinal de valor pessoal. Em um entorno onde as formas de construção de um senso de valor pessoal estão em crise – o trabalho como narrativa de vida, o respeito adquirido pelo papel que se ocupa na comunidade, ou mesmo o lugar na família e seu sentido transcendente –, a masculinidade expressada através do corpo funciona como um refúgio identitário.
Evidentemente há prazer na academia, na aprendizagem de habilidades corporais; há endorfinas, há formas de amizade e de companheirismo e autoestima. Mas isso pode combinar-se também com competitividade (comparação de corpos, dietas, rotinas), angústia e a sensação de que nunca se chega – para homens e mulheres. Plataformas como Reddit, Instagram ou TikTok intensificam este fenômeno, produzem subculturas onde se compartilha conhecimento técnico mas também onde circulam discursos de gênero e classe – e inclusive raça – altamente normativos. Supõe-se ainda, falsamente, que mais músculo equivale a mais capacidade de atração sexual e portanto “melhor posição” nas hierarquias que atribuem valor segundo o poder de sedução. Algumas destas comunidades oscilam entre a autoajuda e a hostilidade antifeminista, conectando com discursos da manosfera e do redpill. Nelas, o corpo musculado apresenta-se como uma arma para “conquistar mulheres” ou um antídoto frente a uma suposta “feminização da sociedade”. Os produtos que prometem incrementar a testosterona te fazem forte e homem pelo mesmo preço.
A meritocracia está rompida, quem a consertará?
Nos que a seguem, ideologia do empreendedorismo individual funde-se com uma masculinidade exacerbada até o caricato. Influencers projetam imagens de sucesso medido exclusivamente em termos materiais – carros, casas, mulheres como objetos de consumo. Associam o triunfo social a ter abdômens de tanquinho. “A pança é para otários”, “livre-se dos seus amigos com pança se quiser triunfar”; se quiser carros, casas, mulheres, diz um influencer espanhol. Parte dos homens jovens deseja ser como ele – gostariam de ser ricos, nojentamente ricos. Não conseguimos fazer com que almejar ser rico e nojento seja malvisto socialmente. Hoje, parece uma meta legítima. Cria-se assim uma realidade aspiracional que contrasta brutalmente com a realidade de classe de seus seguidores: jovens precarizados que, diante da ausência de mobilidade social tradicional, buscam “sucesso rápido” através do investimento em criptomoedas, ou seja, uma espécie de jogo de azar. Não tão distantes, aliás, dos brokers que atuam nos mercados financeiros convencionais.
Hoje, a possibilidade de ascensão social através do trabalho, pilar do capitalismo fordista, dissolve-se. Assistimos a uma crise deste trabalho como via de mobilidade social. Em boa parte do Ocidente, os salários descem o Estado de bem-estar se retrai, e passam a contar cada vez mais, para marcar a posição de classe, os ativos: sejam ações ou bens imóveis. No capitalismo financeirizado, surgem modelos de empreendedorismo individual que exaltam o risco e a iniciativa pessoal, ao mesmo tempo que culpabilizam aqueles que não “triunfam”. Parece que ninguém mais acredita na meritocracia. O sucesso é encontrar um atalho. Compre cripto, compre casas, alugue-as por quartos para maior rentabilidade. Seu sucesso econômico é prova de sua valia pessoal.
“Trabalhar é para otários”. Se nas classes baixas o caminho do trambique ou dos furtos pode proporcionar uma saída momentânea para a exploração que aguarda como destino, nas classes médias a aspiração é ter um trabalho que não o pareça: influencer ou investidor. (Embora, para a maioria dos jovens de classe média, a saída realista a médio prazo seja ingressar no funcionalismo público). Só assim se explica que os cursos online sobre criptomoedas e seus eventos físicos tenham se tornado acontecimentos de massa: entre 5.000 e 7.000 mil pessoas, fundamentalmente jovens, assistiram ao da Mundo Crypto em Madrid, em 2022. Seu principal promotor, Mani Thawani, diz ganhar mais de 60.000 euros por mês dando cursos de como investir nessas moedas virtuais.
Em uma economia da atenção que monetiza a insegurança masculina, aos cursos de conquista que comentávamos no artigo anterior, somam-se os de trading para aqueles que na realidade carecem de recursos para investir: uma espécie de Dow Jones para pobres. Paradoxalmente, esta promessa de controle para jovens à deriva articula-se através de mecanismos que geram novas formas de dependência: a especulação com criptomoedas, as apostas esportivas online, os videogames onde se joga dinheiro. Todos implicam a mesma estrutura psíquica e podem terminar em ludopatia ou vício. (Estima-se que 4% dos estudantes de 14 a 18 anos têm problemas com o jogo, segundo o Plano Nacional contra as Drogas da Espanha). Ao risco implícito de ludopatia somam-se as compras a prazo que podem terminar deixando a maior parte desses jovens endividados. Subjetividades arrasadas onde plantar a semente do ódio à política e ao outro. É outro motivo do crescimento do apoio à extrema-direita entre estes jovens.
Porque a narrativa do “soberano de si mesmo” funciona como compensação perante a subordinação estrutural, mas gera efeitos devastadores na saúde mental: vigorexia, transtornos alimentares, ludopatia, depressão por comparação com imagens inalcançáveis de sucesso, ou simplesmente incremento de mal-estares difusos. Mais tristeza e frustração, que podem inclinar-se para antifeminismo. Fracassos pessoais que se atribuem àqueles que pedem “vantagens injustas”, cuja culpa é atribuída a migrantes, ativistas LGTBIQ ou feministas.
Isso é possível porque a subcultura cripto naturaliza a ideia de que o sucesso depende exclusivamente do esforço pessoal, apagando assim as estruturas sociais, as desigualdades ou os privilégios herdados. A meritocracia está quebrada, ninguém acredita nela, mas defende-se com unhas e dentes da ingerência feminista que demanda cotas que alterariam o suposto acesso equitativo e “em igualdade de condições” aos bons empregos –funcionalismo público? Neste cenário, o feminismo aparece como um obstáculo para a ordem natural do esforço, embora nunca tenha funcionado acima das origens de classe, e além disso o faça cada vez em menor medida. Apesar disso, a contradição persiste e defende-se com virulência a ilusão meritocrática.
Neste contexto, recuperar uma leitura estrutural do mal-estar social é condição imprescindível para articular uma política libertadora; para oferecer a esses mal-estares uma saída em sentido emancipatório, e não reacionário. O trabalho político consiste em redefinir o conflito: o inimigo não são as mulheres ou os migrantes, mas as estruturas que organizam a desigualdade – as hierarquias de classe, a concentração da riqueza, a exploração laboral e a mercantilização da vida. Por isso, para fazer frente às ideias que aninham na manosfera é fundamental articular uma visão feminista da justiça social; um horizonte conjunto no qual envolver os jovens, redirecionando suas frustrações para o sistema que as provoca e pondo sua raiva para trabalhar contra ele, enquanto mudamos os valores que o sustentam. Eat the rich!
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