Marcha das Mulheres Negras: o grito pela Vida

Após a COP em Belém, é a vez de Brasília. Mulheres negras, ribeirinhas, indígenas e periféricas se mobilizam para aquilombar os espaços onde o futuro é negociado. Mostram que a rua grita porque o poder ainda não escuta – e propõem a pedagogia do Bem Viver

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Às vésperas da 2ª Marcha das Mulheres Negras por Reparação e Bem Viver, Belém viveu uma tensão que diz muito sobre o país que estamos construindo. A COP30, encontro global decisivo para definir compromissos climáticos, escancarou desafios que se repetem há décadas: a falta de acesso dos territórios às salas de negociação e uma dinâmica cada vez mais capturada por lobistas de combustíveis fósseis e interesses privados que se impõem sobre a ciência e sobre a própria noção de sobrevivência coletiva.

A xenofobia contra amazônidas, expressa em falas como “Belém não tem como receber as pessoas”, revelou os mesmos padrões de racismo e sexismo que estruturam historicamente o Brasil. É o sintoma de uma miopia profunda, que ainda enxerga a floresta e seus povos como um obstáculo, e não como a chave para a solução da crise climática.

As negociações internacionais até avançaram em alguns pontos, mas ficaram muito aquém da ação necessária para enfrentar o colapso ambiental. Como já ensinava Nego Bispo, não basta “ecologizar” a economia sem descolonizar as relações. Sem enfrentar as hierarquias de raça, gênero e território, toda transição corre o risco de reproduzir as mesmas injustiças com outro nome.

Mulheres negras, quilombolas, ribeirinhas, indígenas e periféricas, as que sustentam a vida cotidiana, seguiram, em grande parte, sem acesso aos espaços onde o futuro estava sendo negociado. Paradoxalmente, foram justamente esses grupos, historicamente excluídos das instâncias de decisão, que impulsionaram as mudanças mais concretas durante a COP. Protestos diários em frente à Blue Zone obrigaram governos a reagir. Denúncias sobre grilagem e invasões aceleraram processos de demarcação e homologação de terras indígenas. Um lembrete poderoso de que a rua continua sendo o lugar onde o que parece impossível se torna urgente.

Os protestos em Belém deixaram uma mensagem inequívoca: a rua grita porque o poder político ainda não escuta. E não escuta porque segue sendo ocupado, em sua maioria, pelos mesmos corpos, interesses e visões de mundo que historicamente ignoram mulheres, populações negras, indígenas e periféricas. Só haverá escuta real quando houver representatividade de fato nos espaços de decisão.

É nesse ponto que o Legislativo se revela central e, ao mesmo tempo, profundamente contraditório. Embora ainda marcado por desigualdades, ele tem sido também a principal porta de entrada de grupos historicamente excluídos nos espaços de poder, especialmente para mulheres negras, indígenas e periféricas que vêm ocupando mandatos e tensionando a política tradicional. Muitas vezes negligenciado nas articulações em torno da COP, é no Parlamento que o Bem Viver pode deixar de ser apenas um horizonte simbólico e se transformar em lei, programa, orçamento e proteção concreta. É ali que se definem as prioridades de alocação de recursos e se abrem espaços institucionais de escuta, como as audiências públicas.

No entanto, persiste uma distorção inaceitável: mulheres negras, que representam cerca de 28% da população brasileira, ocupam menos de 6% das cadeiras na Câmara dos Deputados. Como esperar políticas capazes de proteger a Vida sem garantir a presença de quem sustenta essa vida nos centros de decisão?

A Marcha das Mulheres Negras oferece uma resposta concreta: aquilombar-se. Construir redes de apoio, proteção e elaboração política foi o que manteve vivos territórios que o Estado historicamente abandonou. O país tem muito a aprender com essa pedagogia coletiva, podendo avançar ao mapear experiências exitosas de resistência comunitária, fortalecer programas de proteção a defensoras e defensores de direitos humanos e produzir dados consistentes que permitam diagnósticos precisos para desenhar políticas públicas mais assertivas.

Ao se prepararem para marchar em Brasília, as mulheres negras deixam um recado claro ao país: o Brasil não será próspero enquanto continuar aceitando a morte como política pública. A Marcha e a COP revelaram lados distintos de uma mesma encruzilhada histórica. Ou seguimos produzindo desigualdade e destruição em nome de um progresso para poucos, ou escolhemos um caminho de cuidado, coletividade e Bem Viver. Seguimos acreditando e trabalhando pela segunda opção. O avanço das demarcações após a pressão social durante a COP comprovou que a mobilização transforma a realidade. O crescimento de mandatos de mulheres comprometidas com o clima e com o cuidado também mostra que é possível mudar os rumos do futuro por dentro da política institucional. E, enquanto houver mulheres marchando, cuidando e legislando pelo que é essencial, a Vida seguirá encontrando caminhos. O Bem Viver só deixará de ser promessa quando for assumido como projeto político, com mulheres negras no centro da decisão.

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