Futebol: Sobre os estupradores-herois

Ex-editora de emblemático jornal feminista aponta: casos de violência sexual de Daniel Alves e Robinho mostram que universo do futebol masculino precisa ser educado – e muito! Responsabilizar-se, como hoje faz o treinador Cuca, é um começo

Foto: Ivan Storti (Divulgação)
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Março de 2024 marca a entrada no debate público brasileiro da responsabilidade dos homens pela violência que exercem contra as mulheres. É o passo que falta pra caminharmos além da necessária punição, rumo à utopia de sociedades onde as mulheres não tenham de viver com medo.

“Os estupradores que viraram heróis” é o título da matéria publicada em 1987 pelo jornal Mulherio sobre a chegada ao Brasil de quatro jogadores do Grêmio – entre eles Alexi Stival, o Cuca, depois de ser presos pelo estupro coletivo de uma menina de 13 anos num quarto de hotel da cidade de Berna, na Suíça. Mulherio é um jornal feminista criado em 1981 por pesquisadoras da Fundação Carlos Chagas, de que fui editora entre 1984 e 1988.

A reportagem, assinada pelas pesquisadoras da UFSC Miriam Grossi e Carmen Rial, relata como eles ficaram surpresos ao ouvir, em meio às tentativas de se justificar, os gritos de “putas, putas” dirigidos à vítima, a menina Sandra Pfäffli, por cerca de 500 torcedores presentes no aeroporto do Porto Alegre. O processo foi anulado; a menina morreu aos 28 anos.

A tentativa de se justificar foi amplamente facilitada pela imprensa. “O fato ocorrido no hotel de Berna é normal em quase todas as excursões, fora ou dentro do país. Se os jogadores tivessem furtado, praticado desordem séria ou outra atitude demasiadamente desabonatória, eu aconselharia sua eliminação do clube. Mas um deslize de ordem sexual em que, visivelmente, colaborou para sua consumação uma conduta, no mínimo, quase conivente da chamada vítima, não deve servir de amparo a uma decisão drástica”, escreveu Paulo Santana no Zero Hora de 29 de setembro de 1987. A culpada sempre foi a vítima.

Ontem, um ano depois de ter sido impedido pela torcida de ser treinador do Timão, o agora técnico do Athletico Paranaense, 60 anos, finalmente se desculpou.

“O mundo é um lugar muito diferente para homens e mulheres e quando a gente enxerga isso a gente pode até resistir, mas alguma coisa começa a mudar. E esse é o primeiro passo. Depois o sentimento é de real desejo de mudança. Só que as mudanças honestas e verdadeiras levam tempo, exigem dedicação, estudo, são dolorosas e desafiadoras”, disse numa coletiva.

“Todos nós, homens, somos importantes nessa luta”, comentou Casagrande. “Precisamos todos nos educar e Cuca entendeu isso”, falou Juca Kfouri. Depoimento “inesperado, forte, histórico e comovente”, disse a jornalista de esporte feminista Milly Lacombe, e lembrou que precisamos de aliados. “Não vamos mudar o mundo sozinhas, e notar as pessoas se transformando é evento tão bonito quanto potente.”

O universo do futebol masculino precisa mesmo ser educado, muito. Os casos Daniel Alves, condenado e preso na Espanha, e do Robinho, sentenciado a nove anos de prisão na Itália, com julgamento marcado dia 20 no STJ pra decidir se cumpre a pena aqui, mostram que a cultura do estupro tem muito a mudar, e educação leva tempo.

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