Congresso: feministas mapeiam o conservadorismo

Pesquisa aponta: só mobilização pode superar conservadorismo do Congresso. Lá, 40% alinham-se ao “panico moral”; 57% evitam discutir aborto; 20% são contra atendimento às vítimas e apenas um em cada cinco defende valores progressistas

Brasília – Bancada feminina faz ato no Plenário do Congresso Nacional contra cultura do estupro (Wilson Dias/Agência Brasil)
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Depois de seis anos de intensos retrocessos, desmonte de políticas públicas e da ciência, que culminou em um projeto genocida de nação, respiramos aliviadas no dia 1º de janeiro, quando Lula subiu a rampa do Planalto acompanhado de representantes das pautas progressistas e populares. Apesar desses novos ares que revigoram o Brasil, exatamente um mês depois, o Congresso mais conservador da história republicana tomou posse.

Dado que ameaças à democracia se ancoram também nas pautas antigênero, é fundamental entender o que pensam os/as parlamentares a respeito dos direitos sexuais e direitos reprodutivos, violência contra as mulheres, concepção de família, cuidado e religião. Com esse objetivo, fizemos uma pesquisa sobre o perfil dos/as eleitos/as frente à agenda feminista e antirracista, com base nas suas redes sociais (Facebook, Instagram, Twitter, YouTube e site oficial), durante o período oficial de campanha eleitoral nos dois turnos de 2022.

Com base nos resultados, também chamamos a atenção para a hegemonia masculina e branca que ainda perdura e se complexifica com a maior presença de mulheres eleitas de extrema direita que estão a serviço do patriarcado e das tradições coloniais. Tais parlamentares se apropriam das pautas feministas propondo soluções que acabam por fortalecer ainda mais as desigualdades de gênero de raça.

Controvérsias sobre a Lei Maria da Penha

A Lei Maria da Penha e o enfrentamento à violência doméstica são temas que aproximam parlamentares em seus posicionamentos nas redes sociais, atraindo, inclusive, conservadores. Ela foi vocalizada por um quarto (25%) dos deputados/as eleitos/as em suas campanhas, e indiretamente defendida pela metade dos eleitos. No Senado, esse apoio aumenta para 64%.

Apesar dessa notável adesão, há baixa menção ao machismo como um problema estrutural no contexto de violência contra as mulheres: menos de 15% dos parlamentares, tanto na Câmara, quanto no Senado, tratam do tema nessa perspectiva. Como falar de violência contra as mulheres sem falar de machismo? A conta não fecha!

(Posicionamento sobre violência e hierarquias de gênero na Câmara)

Essa falta de compreensão sobre como se estruturam as desigualdades de gênero acende um alerta sobre como as políticas relacionadas ao tema podem ser deturpadas. Um exemplo é o movimento de atrelar a Lei Maria da Penha a soluções punitivistas, conforme visto nas propostas das candidaturas conservadoras e de extrema direita que associam equivocadamente a posse de armas como forma de enfrentar a violência doméstica. Esse discurso, inclusive, é defendido por mulheres, como as deputadas Carla Zambeli (PL/SP), Julia Zanatta (PL/SC), Bia Kicis (PL/DF) e Magda Mofatto (PL/GO).

Como vimos não só nestas eleições, apesar da representatividade política ser uma agenda estratégica para os feminismos brasileiros e latino-americanos, não adianta eleger mulheres que não defendam nossas pautas em uma perspectiva progressista e antirracista. Ter apenas a defesa de mulheres e meninas em seu discurso de forma autoritária não efetiva políticas públicas em prol da transformação social. Tratamos desse assunto com mais profundidade na Série Histórica Mulheres e Eleições 1996-2012, onde problematizamos a “política de ideias”, o que é o mais importante para promover uma agenda orientada pela igualdade e justiça social, em comparação a “política de presença”, conforme articula a cientista política Anne Phillips .

A presença da ex-ministra Damares no Senado que, inclusive, foi muito bem votada no Distrito Federal, é um bom exemplo disso. Vemos o investimento da extrema direita nas mulheres à serviço do patriarcado, em defesa de pautas que as limitam aos papéis tradicionais de gênero – como boa mãe, esposa e dona de casa – e as unificam em uma categoria de “mulher” excludente e elitista, desconsiderando as especificidades de raça, classe e demais interseccionalidades. Queremos, sim, mais mulheres na política, mas mulheres que façam políticas de ideias!

Família é pluralidade

Outra pauta bastante cara para a agenda antidireitos é a imposição de modelo único de família patriarcal, cisgênero e heteronormativa. Essa ideologia restringe o exercício da sexualidade e de projetos de vida de populações LGBTQIAP+, assim como desqualifica outras composições de família, como a maternidade solo, exercida principalmente por mulheres negras no Brasil.

Como resultado, vimos que 35% do Senado é refratário a avanços no campo da pluralidade familiar. Além disso, 16% dos/as deputados/as eleitos/s sustentam posições de viés hierárquico, patriarcal e tradicionalista para o cuidado com os filhos. Estes dados demonstram que esses/as parlamentares se elegeram por meio de discursos patriarcais e misóginos proferidos em suas campanhas. Apesar da pouca representação, muitos/as eleitos/as ainda não se posicionaram sobre o tema, o que demonstra que esse número pode ser ainda maior.

Violência sexual e aborto devem ser pautas integradas

A violência sexual e o aborto são temas que devem caminhar juntos. Exemplo disso são as notícias que estouraram na mídia a respeito das meninas menores de idade, do Espírito Santo, Piauí e Santa Catarina que enfrentaram uma série de barreiras ilegais impostas pelo próprio Estado para conseguirem acessar o direito ao aborto legal em caso de estupro, negligenciando direitos e os procedimentos de cuidado configurados nos permissivos legais brasileiros.

Ao contrário de eleições passadas, em que o aborto foi moeda geral de troca política, o tema do aborto não foi tratado de forma majoritária: 57% dos/as deputados/as não mencionou o assunto durante suas candidaturas e a mesma quantidade não se posicionou sobre a violência sexual.

Ainda mais escandaloso, os grupos contrários ao atendimento para vítimas de violência sexual representam mais de 20% dos/as deputados/as eleitos/as.

(Posicionamento sobre aborto e violência sexual na Câmara)

Nenhum dos senadores/senadoras se posicionou favoravelmente ao direito de interrupção da gravidez nas redes sociais. O cenário que podemos indicar é que apenas 5% é presumivelmente favorável, contra 22% explicitamente contra. Quanto à violência sexual, apenas 6% se posicionaram favoráveis a medidas de apoio e proteção às vítimas de violência sexual.

Grupos ideológicos

Visto os posicionamentos reacionários, racistas, misóginos e lgbtqia+fóbicos dos/as parlamentares eleitos/as, criamos cinco grandes grupos ideológicos para localizar os/as deputados/as frente à agenda feminista (lembrando que uma pessoa pode estar em mais de um grupo).

Os resultados são desafiadores para nós: o grupo armamentista é composto por 10% da Câmara. O grupo religioso, formado principalmente por defensores da agenda contra o aborto, onde se localizam os e as eleitas mais antagônicas à agenda feminista, compreende aproximadamente 20% dos/as eleitos/as.

Além deles, o grupo da pauta de costumes são representados aproximadamente por 25% dos/as eleitos/as. Eles são defensores da “família tradicional”, apegados a argumentos com base essencialista, que desqualifica a sexualidade da população LGBTQIAP+. Temos também 40% dos eleitos classificados no grupo das/dos conservadores, alinhados às pautas de costumes, mas apoiam algumas lutas das mulheres, sobretudo o combate à violência de gênero e a violência doméstica. Por fim, temos aproximadamente 20% dos/as eleitos/as são do grupo feminista, que reúne parlamentares antirracistas que se elegeram apresentando pautas dos direitos das mulheres e da diversidade sexual.

Democracia em ataque e a resistência feminista e antirracista

Com base nesses resultados, temos a Câmara dos Deputados e o Senado Federal com bancadas ainda mais conservadoras, com uma extrema direita consolidada para lidarmos nesses próximos anos. Isso impõe a tarefa ainda mais atenta de monitoramento e articulação política por parte dos movimentos feministas e antirracistas.

Respiramos aliviadas com o resultado das eleições presidenciais e celebramos as belas posses dos ministérios representados por minorias sociais, mas muitos desafios ainda virão pela frente. A forma com que representantes do Estado lidam com esses temas também são termômetros para medir a nossa democracia, em estado de fragilidade. Pouco mais de um quarto (28%) de deputadas/es/os federais eleitas/es/os concordam com a ideia de que religião e política não deveriam se misturar. No Senado, 36% de senadores/as concordam com a mesma ideia. Assim vemos o risco colocado para que a laicidade do Estado seja afirmada no Brasil. E os reflexos desta tensão respingam não apenas nas pautas que defendemos aqui, mas em todos os direitos da população.

Em perspectiva macrossociológica, os dados com que trabalhamos refletem também a normalização da pauta antigênero no Brasil, através da chamada “ideologia de gênero”. Este é um movimento transnacional, inclusive muito bem arquitetado, para impingir ao mundo uma pauta moral que luta para redomesticar corpos insubmissos e insurgentes ao script do patriarcado e do capitalismo neoliberal, como bem analisa a pesquisadora feminista Sônia Correa, integrante do Observatório Sexualidade e Política, a SPW.

As hordas antidireitos fermentadas por Olavo de Carvalho, Bannon e Dugin, originais pensadores dessa ideologia, obtiveram êxito em disseminar no mundo e no Brasil o pânico moral contra os movimentos feministas e LGBTQIA+. Como sustentação, é alimentada a ameaça pulsante do fantasma do comunismo em parte da população cristã e/ou insatisfeita com os governos petistas, que deram o status de estadista a um homem de desqualificada carreira parlamentar, cujo o mérito terá sido congregar uma parte da sociedade brasileira que rejeita sua própria história sobre a formação política-cultural brasileira, desde sua origem, como colônia de Portugal, nossas raízes escravocratas, de extrema violência e racismo. Este grupo subverte a linguagem e os objetivos de justiça social defendidos pelos direitos humanos, ao mesmo tempo que esperneia para não abrir mão das estruturas de desigualdades que sustentam os privilégios do elitismo, do classismo e da branquitude.

Como diria Angela Davis, a liberdade é uma luta constante. E a defesa da democracia também é.

(Para acessar mais detalhes da pesquisa, acesse o sumário executivo em nosso site, clicando aqui.)

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