Feminicídios: a incontornável dimensão colonial
Às vésperas das grandes manifestações contra a brutalidade machista, pesquisadora ressalta: negras são as maiores vítimas. E não será possível encarar o fenômeno sem enfrentar a ideia arraigada de que as vidas não-machas e não-brancas valem pouco
Publicado 05/12/2025 às 19:01

Jackeline Romio, em entrevista a Glauco Faria
O feminicídio e a violência contra a mulher no Brasil ocuparam o topo do noticiário nos últimos dias em função de casos recentes que impressionaram pela brutalidade e grau de perversidade. Infelizmente, são comuns. Apenas em 2024, o país registrou 1.450 feminicídios, um aumento de 12% em relação ao ano anterior. A realidade é bem pior, já que os dados são subnotificados — um padrão que se estende a outros crimes cometidos contra mulheres, refletindo o viés de gênero no sistema de justiça.
Esse tipo de violência reflete desigualdades históricas que atravessam raça, classe social e território. Para a demógrafa Jackeline Ferreira Romio, que se dedica ao estudo das relações de gênero e é autora da pesquisa Quem são as mulheres que o Brasil não protege?, da Fundação Friedrich Ebert no Brasil, compreender esses fatores é essencial para enfrentar a violência de forma efetiva. Como ela afirma, “a violência feminicida é uma violência pautada no ódio; e, quando o ódio racial se soma ao ódio de gênero, a dimensão desse ódio é muito maior”.
Em entrevista a Outras Palavras, a pesquisadora detalha como a interseccionalidade — no caso, a sobreposição de violências de gênero, raça e desigualdade econômica — amplia drasticamente o risco para mulheres negras, indígenas e periféricas. Ela lembra que, no Brasil, “68% das vítimas de feminicídio são mulheres negras” e que essa diferença não pode ser explicada apenas pela exposição geral à violência de gênero, mas por falhas sucessivas do Estado: “Em que ponto a linha de atenção falhou? A denúncia não foi levada a sério? A medida protetiva não foi fiscalizada?”
“Para erradicar a violência de gênero, são necessárias três áreas: prevenção (que a gente nunca faz), sanção e punição”, avalia Jackeline. “A violência é estrutural — econômica, racial e de gênero — e organiza a sociedade. Mudar o feminicídio implica transformar essa estrutura e enfrentar o racismo patriarcal. O feminicídio é um sintoma, assim como a mortalidade materna, a gravidez na adolescência ou a população vivendo em situação de rua: expressões de uma estrutura social quebrada.”
Confira os principais trechos da entrevista abaixo.
Interseccionalidade e desigualdades no feminicídio
O feminicídio atinge todas as mulheres, independentemente da classe social, da raça ou da origem. Mas, na sociedade brasileira, desigualdades se relacionam e aumentam a chance de uma violência ter um agravamento maior para mulheres mais vulneráveis. Os dados mostram maior incidência entre vítimas negras, indígenas e da periferia — negras no sentido de pardas e pretas, que juntas formam a população negra brasileira. As indígenas, embora representem apenas 1% da população, são entre 2% e 4% das vítimas de feminicídio.
As mulheres da periferia, brancas e negras, compõem o grupo de maior incidência e são as maiores vítimas, por causa da interseccionalidade das violências. Elas não estão expostas apenas à violência por serem mulheres, mas simultaneamente à violência racial e à violência econômica. A soma dessas violências aumenta o risco. Muitas moram longe de equipamentos de segurança pública, e a dificuldade de acessar esses serviços eleva o risco de morte.
América Latina e grupos racializados
Na América Latina, onde a agressão física e doméstica contra as mulheres é muito alta, a desigualdade se repete em diversos países. Na Colômbia, por exemplo, mulheres negras, palenqueras e raizales [grupos étnicos afro-colombianos] formam um grupo de maior vulnerabilidade: representam 10% a 11% da população, mas 30% das vítimas de feminicídio. Isso se repete em vários territórios.
A mulher rural e a mulher indígena têm índices de violência doméstica e feminicídio muito superiores também na Bolívia. Mesmo que as categorias raciais não sejam idênticas às do Brasil, a comparação entre a média nacional e a realidade dos grupos racializados mostra médias muito superiores, 20% a 30% maiores. Esse padrão aparece em todos os países latino-americanos que produzem dados.
Reconhecimento estatal e visibilidade das vulnerabilidades
Nos últimos anos, a pauta ganhou visibilidade nacional, especialmente via Ministério da Igualdade Racial e Ministério das Mulheres, que destacam a situação de mulheres negras e indígenas. E isso se dá por um entendimento de que as desvantagens sociais se interconectam. A violência feminicida é uma violência pautada no ódio. Então, se existe o ódio racial multiplicado pelo ódio de gênero, qual é a dimensão desse ódio? É muito maior. A incidência da violência contra corpos e vidas negras é aumentada pelo racismo patriarcal.
Temos esse termo, racismo patriarcal, que é a interconexão entre raça e gênero e relaciona a mulher negra a diversas imagens de controle e estereótipos, fragilizando-a muito mais perante a sociedade.
Acesso à segurança pública e revitimização
Se há um grupo de enquadramentos para o gênero, em que a mulher deve caber dentro da caixa de gênero e, se sair, pode ser assassinada, essa caixa é menor ainda para as mulheres negras, que, além da condição vulnerável, têm maior dificuldade de acesso a equipamentos de segurança pública e de serem entendidas socialmente como vítimas.
Existem pesquisas de vitimização no Brasil que afirmam que a mulher negra tem maior chance de ter suas denúncias não atendidas na área da segurança pública, por recusa a registros. Ela chega à delegacia e é desestimulada a registrar ou revitimizada como a própria causadora da violência que sofreu. Isso também vale para as mulheres periféricas, chegando a um ponto em que, simplesmente, elas não fazem a denúncia porque acreditam que ela não será levada a sério pela instituição policial.
Tudo isso vai agravando e aumentando as chances de essas mulheres chegarem ao ponto máximo da violação de gênero, que é morrer por feminicídio.
Intersetorialidade das políticas públicas
O enfrentamento exige diálogo intersetorial. Não adianta a prevenção ser feita apenas na saúde se não houver encaminhamentos e rede de atenção funcionando. A saúde, por ser descentralizada, está presente em todos os municípios, diferentemente da segurança pública, que concentra serviços especializados como delegacias da mulher, atendimentos a vítimas de violência sexual e patrulhas de medidas protetivas em menos locais.
As mulheres que estão nas grandes capitais têm mais chances de serem atendidas do que aquelas em áreas rurais ou periféricas. Por isso, muitas vezes, elas serão atendidas apenas pela saúde pública. A Lei Maria da Penha prevê o funcionamento da atenção às mulheres sobreviventes e vítimas de violência doméstica como uma rede complexa e integral, mas, infelizmente, ela não se implementa. Temos uma lei complexa, universal, que não se efetiva, e que ainda necessita de particularidades, como a atenção às mulheres negras e indígenas vítimas de violência.
Racismo institucional e protocolos antirracistas
É necessário enfrentar o racismo institucional por meio de políticas de sensibilização e protocolos antirracistas, como ações para evitar a rejeição de denúncias de mulheres negras nas delegacias e desconstruir estereótipos. Na saúde, houve avanços recentes com programas voltados ao parto humanizado para mulheres negras, reconhecendo práticas discriminatórias históricas.
Porque existem práticas que não estão escritas na lei. Mas o servidor age daquela forma porque tem um padrão mental racista, e a lei tácita autoriza que ele faça certas discriminações negativas no atendimento à vítima negra e à vítima branca. No caso da saúde materna, existia uma prática de menor atenção pré-natal para mulheres negras; prescrevia-se menos anestesia porque persistia o estereótipo de que eram mais fortes e tolerantes à dor, permitindo usar menos anestesia “para economizar”.
Apenas por meio de normativas e de programas especiais para correção dessas práticas de racismo institucional vamos conseguir superá-las.
Violência estrutural
Hoje os dados mostram resultados claros: 68% das vítimas de feminicídio são mulheres negras (pardas e pretas). É preciso investigar o que produz essa diferença, já que todas as mulheres estão expostas à violência de gênero. Em que ponto a linha de atenção falhou? A denúncia não foi levada a sério? A medida protetiva não foi fiscalizada? Faltou acesso a programas de habitação ou assistência alimentar? Em que momento o Estado perdeu essa mulher?
A violência é estrutural — econômica, racial e de gênero — e organiza a sociedade. Mudar o feminicídio implica transformar essa estrutura e enfrentar o racismo patriarcal. O feminicídio é um sintoma, assim como a mortalidade materna, a gravidez na adolescência ou a população vivendo em situação de rua: expressões de uma estrutura social quebrada.
Evolução legislativa
O Brasil não foi o primeiro país da região a legislar sobre feminicídio; Costa Rica e México o fizeram antes. Para erradicar a violência de gênero, são necessárias três áreas: prevenção (que a gente nunca faz), sanção e punição.
Infelizmente, ficamos mais na punição, uma ação direta, porém prejudicada por várias questões. Uma delas é a incapacidade de resolver os casos de violência. Temos no Brasil 38% de casos de homicídios resolvidos, um índice muito baixo. Então, nem a punição estamos fazendo direito. E é praticamente a única coisa que fazemos.
Por outro lado, temos avanços legislativos. Quando se tem uma lei, não necessariamente ela é implementada; para isso, é preciso programas, vontade política conjunta e aceitação social, por meio da informação, para que ela “baixe à terra” e funcione. Quando uma lei “pega”, isso é um bom indicador. Tanto a Lei Maria da Penha quanto a Lei do Feminicídio se popularizaram.
A Lei do Feminicídio reconhece juridicamente um tipo específico de violência letal, tratada como crime hediondo, descrita pelo teor de ódio que qualifica esses assassinatos. Antes, não havia esse enquadramento. Basta observar como essas mulheres foram assassinadas: não é uma facada, são 60; não é um soco, são 60. Não são homicídios dolosos simples, são qualificados pelo teor de ódio, representado pela forma como se mata essa mulher. Ter um crime específico ajuda a garantir que todas tenham a mesma chance de ver o agressor punido dentro do mesmo nível de punição.
Antigamente não era assim, é um avanço legislativo. Isso sozinho não impede novos feminicídios, mas dá a chance de que todos sejam julgados na mesma métrica.
Prevenção e rede de proteção
A métrica do feminicídio tem a punição elevada por seus níveis de qualificação, relação com o ódio e chance mínima de defesa. Porque o agressor, em geral, controla o cotidiano: são relações íntimas, a pessoa vive no mesmo domicílio, conhece a rotina, controla às vezes até as senhas do celular, sabe quanto a vítima tem no banco. As chances de escapar de um plano de morte são baixas; só por meio de uma intervenção estatal nessas relações particulares somos capazes de salvar a vida dessas mulheres.
A outra parte é a prevenção, por meio de uma rede de atenção que funcione, integrada e especializada. Como existem outras violências inter-relacionadas, é preciso tratar habitação, empregabilidade e saúde mental, além de oferecer assessoria jurídica. Essa mulher precisa entender como se separar, quais direitos tem e precisa ter meios para fazer isso. Se ela chega ao equipamento público e é maltratada, revitimizada, volta para casa e tenta resolver sozinha. Só que, ao tentar resolver sozinha, a chance de agravamento letal é maior. Ela já passou por diversos constrangimentos que a fazem acreditar que o problema é ela. E é nesse silêncio, nesse isolamento, que acontece o pior.
Uma violência histórica
O assassinato de mulheres no Brasil é historicamente alto desde a década de 1970. Não é novidade: somos uma sociedade patriarcal que assassina mulheres, com casos envolvendo todas as classes sociais, inclusive figuras públicas. Esse fenômeno vem se agravando como uma bola de neve e, se não houver sensibilização social sobre sua gravidade, o futuro é previsível: aumento contínuo da violência de gênero, especialmente nas comunidades mais vulneráveis. Enfrentar isso exige serviços públicos robustos e uma transformação cultural profunda.
O machismo brasileiro remonta à escravidão, ao colonialismo e às sequelas dessas violências, que permanecem na cultura até hoje. Essa lógica aparece até em músicas, cantigas e composições folclóricas que normalizam violência e abusos. Interromper esse ciclo exige desconstrução consciente da alienação coletiva em torno do lugar das mulheres na sociedade.
A perversidade cultural contra a mulher brasileira também permeia o imaginário mundial. Mulheres brasileiras são vítimas de violência e assassinatos em outros países, como Portugal. A violência se expressa em múltiplas dimensões e se moderniza. Assassinos escolhem vítimas por aplicativos de relacionamento, e há casos de mortes transmitidas ou replicadas ao vivo nas redes sociais.
Morte como entretenimento nas redes sociais
A replicação incessante de vídeos de feminicídios, como o atropelamento e arrastamento de uma mulher cujas imagens circulam diariamente, naturaliza a violência. Com isso, também se produz a naturalização da morte, do assassinato e da agressão contra mulheres como entretenimento nas redes sociais.
É necessária a responsabilização das mídias que autorizam esse tipo de circulação; poderia ser facilmente detectado e encerrado, mas não é. Porque gera engajamento. O ódio gera engajamento. E é por isso que os feminicídios estão em alta nas redes sociais. Se as pessoas quisessem realmente retratar o problema, poderiam falar dos quatro feminicídios por dia. Só que elegem um ou outro caso relacionado ao sensacionalismo e ao engajamento que vão gerar.
Isso reforça uma cultura patriarcal e uma naturalização que alimenta um sadismo em torno desses óbitos e deveria ser um ponto para os veículos de comunicação discutirem como um protocolo. Qual é o protocolo da mídia brasileira para retratar a violência feminicida? Como vocês vão transmitir isso para a sociedade?
Levante Mulheres Vivas
Neste domingo (7), diversas cidades do Brasil vão contar com atos do Levante Mulheres Vivas, mobilização que, segundo as organizadoras, “nasce da indignação diante do crescimento alarmante das violências cometidas diariamente contra mulheres no Brasil”.
A mobilização vai apresentar também uma Pauta Nacional de Referência, construída coletivamente e organizada em oito eixos estratégicos para o enfrentamento à violência contra mulheres e meninas.
Entre os principais pontos estão: delegacias da mulher 24h e atendimento especializado com implantação das Casas da Mulher Brasileira; Casas-Abrigo e Acolhimento Imediato; resposta rápida no Sistema de Justiça; autonomia imediata para mulheres em risco; proteção integral a filhos e filhas de mulheres em violência; paridade feminina obrigatória no poder público e Judiciário; regulação das plataformas digitais e combate ao ódio e violência online; e orçamento obrigatório e cumprimento integral da Lei Orçamentária.
“A politização da violência de gênero é fundamental, trata-se de um assunto que deve ser assumido por toda a sociedade”, pondera Jackeline Romio. “As manifestações mostram exatamente isso: mulheres, e também homens, ocupando as ruas para demonstrar publicamente que a sociedade não tolera mais a violência de gênero. A expectativa é que cada vez mais homens também se engajem nesses protestos, porque essa é a dimensão essencial do debate.”
Para a pesquisa, o movimento também é de contracultura. “Vivemos em uma sociedade marcada por uma cultura patriarcal, e são esses levantes, essas manifestações públicas dizendo ‘não toleramos o feminicídio’, que instauram uma força contracultural. É um gesto político que retira o patriarcado do centro”, reflete. Confira abaixo a agenda de manifestações:
06/12
MATO GROSSO
- Cuiabá – 14h – Pça Santos Dumont
RIO GRANDE DO SUL
- Porto Alegre – 17h – Praça da Matriz
PARÁ
- Belém – 8h – Bulevard Gastronomia
SANTA CATARINA
- Joinville – 14h – Praça da Bailarina
07/12
AMAZONAS
- Manaus – 17h, Largo de São Sebastião
MINAS GERAIS
- Belo Horizonte – 11h – Praça Raul Soares
- Juiz de Fora – 15h – Escadaria Câmara Municipal
MATO GROSSO DO SUL
- Campo Grande – 09h – Av. Afonso Pena (esquina com a 14 de julho)
PARANÁ
- Curitiba – 10h – Praça João Cândido / Largo da Ordem
RIO DE JANEIRO
- Rio de Janeiro – 14h – Posto 5 / Copacabana
RIO GRANDE DO NORTE
- Natal – 09h – Mercado da Redinha
SÃO PAULO
- Botucatu – 10h – Praça da Pinacoteca
- São Paulo – 14h – Vão livre do MASP
- SJC – 15h – Lgo São Benedito
- SJRP – 09h – Praça Rui Barbosa
- Ubatuba – 17h – Pista de Skate
SANTA CATARINA
- Florianópolis – 13h – Cabeira da Ponte Hercílio Luz – Lado Ilha
MARANHÃO
- São Luís – 9h – Praça Igreja do Carmo – Feirinha
DISTRITO FEDERAL
- Brasília – 10h – Na Feira da Torre de TV
PIAUÍ
- Parnaíba – 16h – Parnaíba Shopping
- Teresina – 17h – Praça Pedro II
CEARÁ
- Fortaleza – 16h – Estátua de Iracema Guardiã / Av. Beira Mar
14/12
BAHIA
Salvador – 10h, Barra (do Cristo ao Farol)
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