Ditadura: O cinema feminista na luta pela democracia
Neste 3/2, em SP, começa Mostra que revela a diversificada produção das mulheres nos anos 70 e 80, muitas vezes negligenciada. Em pauta, a luta das camponesas, as mobilizações de operárias, a questão lésbico-feminista e a organização das prostitutas por direitos
Publicado 03/02/2025 às 17:44
“Experimentações feministas – cinema, vídeo e democracia no Brasil (1972-1995)” – um recorte do 27º Festival do Filme Documentário e Etnográfico – Forumdoc BH. No CineSesc São Paulo, de 3 a 7/2. Veja a programação
“Experimentações feministas – cinema, vídeo e democracia no Brasil (1972-1995)” é uma mostra que nasce do nosso interesse em imagens dos movimentos feministas do período da redemocratização brasileira. Em nossas buscas, fomos surpreendidas por uma produção ampla e engajada em vídeo1, assinada por realizadoras ou grupos de realizadoras que, na efervescente conjuntura daquele momento histórico, abordaram pautas até hoje fundamentais para os feminismos no Brasil.
Enfrentamento à violência doméstica, sexualidade, direito a creches, reforma agrária, participação política, igualdade no mercado de trabalho, fim das discriminações raciais, direito à livre identidade e à orientação sexual e reforma urbana são alguns dos temas que ganharam força no cenário contraditório dos anos 1980, no qual conviviam os resquícios autoritários da ditadura militar e o surgimento de diversos movimentos sociais que fomentaram novos protagonistas e lideranças políticas.
Dentre esses, destacamos os movimentos de mulheres, que se consolidavam no país com certa inspiração no feminismo internacional, mas experimentavam formatos organizativos próprios, concretizados no bojo peculiar da luta pela redemocratização. Em meio à movimentação política, mulheres experimentavam também o cinema e o vídeo, suas linguagens, seus formatos e possibilidades estéticas, fazendo do audiovisual um mecanismo de elaboração coletiva, diante da luta pelo direito de falar e de se posicionar publicamente.
Afinal, era necessário divulgar pautas feministas, romper barreiras na comunicação e disputar o imaginário popular, marcado pelo racismo, pelo machismo e pelo conservadorismo religioso. O vídeo se constituiu, assim, como uma prática social dos movimentos feministas, tendo oportunizado o protagonismo feminino, a valorização das histórias de vida de mulheres marginalizadas e a visibilidade de diferentes sujeitos sociais.
Em nossa pesquisa de mestrado2, levantamos um material extenso, entre vídeos e filmes em película que elaboram temas candentes dos feminismos e analisam a conjuntura dos anos 1980, construindo um retrato fragmentado, a partir de miradas femininas (e feministas), do Brasil naquele momento histórico, com suas contradições e brechas para transformações.
Percebemos que a tecnologia do vídeo possibilitou uma ampliação significativa do documentário realizado por mulheres. Entre os motivos para tanto, está o barateamento e a maior acessibilidade do equipamento, a gravação de som acoplada, em sincronia com as imagens, e as alianças com os movimentos sociais. Para nós, a história do Cinema Moderno brasileiro de autoria feminina, na esteira da conceituação da professora e pesquisadora Karla Holanda, não deve omitir essa imensa e diversificada produção em vídeo, muitas vezes negligenciada.
É fato que a mediação provocada pelo vídeo, que coloca em relação realizadoras, filmadas e espectadoras, rompeu silêncios em um país que poucos anos antes vivia sob a censura imposta pela ditadura militar, e que historicamente emudeceu as mulheres e outros grupos alijados de direitos políticos, de direito à fala e à imagem. Nas imagens dos videodocumentários, mulheres diversas passaram a protagonizar suas próprias histórias de vida, ainda que tenha prevalecido o exercício de alianças insólitas, nos termos da ativista boliviana María Galindo, já que realizadoras e filmadas não compartilhavam as mesmas origens, experiências e situações sociais.
Durante os anos 1980, a luta pela democracia e pela nova Constituição Federal, que seria promulgada em 1988, proporcionou uma unidade histórica entre a esquerda brasileira, incluindo os movimentos de mulheres. Entre dissensos e consensos, conquistamos direitos estruturais, o que nos colocou, mulheres, em situação de igualdade formal com os homens, abrindo mais caminhos para as lutas. Sabemos, no entanto, que nossas conquistas são como areia movediça, instáveis, exigindo de nós uma vigília constante para que direitos sejam implementados.
Na dialética entre passado e presente, no deslocamento de repensar os feminismos brasileiros, suas contradições, seus encontros e desencontros, realizamos uma curadoria ampla, com filmes engajados nos movimentos de mulheres, nos movimentos negros e nas lutas pela democracia nos anos 1980. O direito à terra e a luta pela reforma agrária, na origem do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), é apresentado na sessão de abertura, A terra é um sonho, com o longa Terra para Rose (1987), importante documentário de Tetê Moraes, que acompanha, a partir da perspectiva das mulheres, o primeiro grande acampamento do movimento sem-terra no Rio Grande do Sul.
Na sessão Trabalhadoras, reunimos os curtas Trabalhadoras metalúrgicas (Olga Futemma e Renato Tapajós, 1978), Dias de euforia (Rita Moreira, 1989) e Mulheres: uma outra história (Eunice Gutman, 1988), que trazem olhares feministas para a participação das mulheres nas lutas pelos direitos da classe trabalhadora em meio aos massivos movimentos de rua contra a Ditadura Militar e pelas Diretas Já.
Na sessão Olhares lésbico-feministas, recuamos aos anos 1970, com vídeos das pioneiras Rita Moreira e Norma Bahia Pontes, que nos presenteiam com imagens do surgimento do movimento auto-organizado de lésbicas em Nova Iorque. Mulheres que amam mulheres, realizadoras e personagens nos informam sobre outras possibilidades de maternagem, bem como trazem necessários atravessamentos ao feminismo dominante, apontando que as vivências livres da sexualidade são revolucionárias.
A organização das prostitutas, suas histórias de vida e as lutas pelo reconhecimento de seu trabalho são temas da sessão Prostituição e cinema, que traz documentários pioneiros na representação dessas trabalhadoras, de suas reflexões e vivências. As diretoras Cida Aidar e Inês Castilho, Jacira Melo e Eunice Gutman se lançam às ruas e ao desafio de abordar experiências de alteridade, em um terreno complexo, marcado pelo preconceito e pela hipocrisia da sociedade moralista e conservadora.
Em paralelo a essa programação, oferecemos um curso presencial com quatro aulas, compostas de exibições de curtas e debates posteriores, com a presença de realizadoras, pesquisadoras e militantes. Na primeira aula, reunimos curtas que tratam do direito ao próprio corpo e da luta pelos direitos reprodutivos, com trabalhos fundamentais de Vik Birkbeck, Angela Freitas e Rita Moreira. A luta por creches, pelo fim da violência doméstica e pelo direito das trabalhadoras rurais são temas abordados na segunda aula, que traz curtas de Maria Luiza Aboim, Jacira Melo, Angela Freitas e Vik Birkbeck.
A terceira aula exibe o média-metragem As divas negras do cinema brasileiro, obra imprescindível de Vik Birkbeck que nos ajuda a pensar e repensar o audiovisual a partir das histórias e dos testemunhos de grandes atrizes negras do cinema brasileiro, como Zezé Motta, Ruth de Souza e Léa Garcia. Para fechar o curso, a quarta aula trata de imagens pioneiras do movimento de prostitutas, que, no Brasil, ganhou destaque e organicidade própria durante os anos 1980.
Temos consciência de que a mostra “Experimentações feministas – cinema, vídeo e democracia no Brasil (1972-1995)” apresenta um recorte, ainda insuficiente, das relações entre o audiovisual e os feminismos no Brasil daquele período. Limites que se relacionam, em parte, aos desafios que vivemos no país no que tange à conservação de nossos arquivos históricos e à preservação da nossa memória audiovisual, o que parece ainda mais crítico quando se trata de realizadoras mulheres produzindo vídeo. Assumimos, assim, a exibição de algumas cópias em baixa resolução. Na maioria das vezes, elas são as únicas existentes. Medida talvez extrema que consideramos fundamental para retirar essa produção da invisibilidade.
Agradecemos imensamente a todas as realizadoras, pesquisadoras e militantes que toparam esse projeto conosco, à Associação Cultural Videobrasil, ao Instituto Feminista para a Democracia (SOS Corpo), ao Acervo Digital de Cultura Negra Brasileira (Cultne), ao Instituto de Estudos da Religião (Iser), ao Cinelimite e à Vithèque.
Muito obrigada à Lívia Perez pela cópia de Lesbianism feminism, digitalizada em definição HD a partir da fita original, preservada por Rita Moreira. A limpeza e digitalização desses vídeos, com supervisão de Lívia Perez, foram possíveis graças ao financiamento do Dolores Huerta Research Center for the Americas, durante o projeto de M.F.A. realizado por Lívia na Universidade da Califórnia, Santa Cruz, entre 2021 e 2023, sob orientação de Isaac Julien e Mark Nash.
E, por fim, nosso muitíssimo obrigada ao CineSesc e a toda sua equipe, por terem aberto esse espaço tão generoso para nós. A mostra “Experimentações feministas – cinema, vídeo e democracia no Brasil (1972-1995)” integrou a programação do forumdoc.bh 2023 – Festival do Filme Documentário e Etnográfico de Belo Horizonte, realizado pela Associação Filmes de Quintal. Que seja uma experiência incrível e uma ótima oportunidade de trocas e diálogos.
Notas:
1 Foi durante os anos 1980 que a tecnologia do vídeo se popularizou entre os movimentos sociais brasileiros, sobretudo a partir do lançamento do primeiro cancorder, pela Sony, em 1983, equipamento que captava e gravava, ao mesmo tempo, sons e imagens, e dispensava outro aparelho para a exibição das produções, por possuir um videocassete acoplado.
2 Experimentações videodocumentais feministas: aborto e prostituição na produção audiovisual de mulheres dos anos 1980 (Prorama de Pós-Graduação em Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais), foi defendida por Larissa Costa, em 2023, com orientação de Cláudia Mesquita. Aproveitamos para agradecer as trocas nos grupos de pesquisa Poéticas Femininas, Políticas Feministas e Poéticas da Experiência, que nos abriram horizontes de pensamento e nos fizeram ampliar o olhar para a complexidade do audiovisual feminista ou, talvez, do cinema de mulheres brasileiro.