A pandemia, o cuidado, o que foi e o que será

Os afetos e o cuidar de si e dos outros não são lugar de submissão das mulheres, mas chave para novas lutas e processos emancipatórios. Diante do horror bolsonarista, sangue frio e coração quente são essenciais para enfrentar incertezas, lutos e fomes

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Desde que a pandemia se instalou, em 2020, nos demos conta da vertiginosa mudança que o distanciamento social, envolto na crise paradigmática, nos atirava enquanto ativistas, tanto do ponto de vista pessoal, quanto político. A linha de ação para o autocuidado e cuidado coletivo que o CFEMEA vinha desenvolvendo até então precisou se refazer, se adequar, ousar experimentar alternativas que fortalecessem a capacidade de resiliência pessoal e coletiva de uma militância aguerrida, feminista, popular, antirracista e anticapitalista. Outros recursos, outros encontros, novas trilhas, desde então vieram sendo traçadas, para criar oportunidades para que cada um@ pudesse cuidar melhor de si e que o cuidado entre ativistas se efetivasse. Novos espaços além dos presenciais foram criados para que a nossa presença no mundo, aqui e agora, seja força de resistência macropolítica e, ao mesmo tempo, possibilidade de transformação, no plano micropolítico.

De fato, o nosso ativismo tem sido provedor de vínculos de reciprocidade entre as mulheres que estão na luta e espaço precioso de formação feminista, ampliando a experiência e aprofundando a estratégia do cuidado solidário e da solidariedade cuidadosa.

Sobrevivemos. Estamos sobrevivendo. Inventando outras formas de viver, de nos relacionar, tanto nas relações mais íntimas como nos espaços coletivos. Fomos buscando nos entender, nos reconhecer e nos acolher no meio da pandemia, durante o isolamento, e em meio à crise politica-social-econômica-ambiental em que ainda estamos imersas.

A crise e a pandemia exigiram e ainda estão exigindo de nós sangue frio e coração quente pra lidar com tantas incertezas, lutos, riscos, fomes… Para quem é ativista, para quem se indigna com as injustiças e se move para o bem comum, a certeza de não estar só, de poder se sustentar em laços fortes, nas lutas coletivas, em confiança mútua, cuidado solidário e afetos revolucionários dá fôlego e sentido à vida. Dá esperança e renova o ânimo para as batalhas pelo bem-viver.

Nesse contexto tão pesado, ser ativista feminista antirracista, manter vínculos fortes de pertencimento a um coletivo, a um movimento social, estar em redes que sustentam e cuidam da vida, ser Tecelã do Cuidado1, tem revigorado as nossas forças vitais. Estamos criando novos laços, novas conexões, amenizando dificuldades, antes que a privação das condições materiais e afetivas indispensáveis à vida aniquilem algumas companheiras, principalmente aquelas entre nós que já vivem em condições de muitíssima vulnerabilização. Mas a batalha contra o fascismo é muito desigual. As feridas das violências patriarcal, racista, brancocêntrica, ainda se abrem e a todo momento sangram nos corpos de mulheres negras, indígenas, trabalhadoras, periféricas, LBTQIA+, doem, acuam, envergonham, exploram, não nos dão descanso.

O cuidado coletivo, o afeto amoroso, o reconhecimento d@ outr@ e de suas necessidades de acolhimento, são alguns cicatrizantes que as mulheres conhecem e compartilham para cuidar dos outros. Contudo, o domínio dessa capacidade pelas mulheres, indispensável à sobrevivência da espécie humana, sempre foi invisibilizado, desvalorizado, desqualificado, estigmatizado pelas sociedades patriarcais e racistas em suas várias formas.

A verdade é que os vínculos que sustentam a individualidade de cada um@ na sociedade são criados e mantidos pelas mulheres. A falsa ideia de uma individualidade independente2 é invenção milenar do racismo patriarcal, atualizada nesses tempos de individualismo neoliberal. E não tem outro objetivo senão esconder a dependência dos patriarcas e dos outros homens aspirantes a esse posto para conservar seus micro e macro poderes e lucros, seja nas grandes corporações transnacionais, no sistema político ou na intimidade das famílias.

O ativismo feminista antirracista de mulheres negras e indígenas ao ressignificar o cuidado e se apropriar da sua potência para os processos de transformação ecossocial que engendramos dar uma guinada, posicionando o cuidado não mais como lugar de submissão das mulheres e, sim, de emancipação.

A fibra do afeto, da amizade, do respeito, da amorosidade, da solidariedade cuidadosa, do autocuidado, da reciprocidade no cuidado coletivo, vem tecendo redes fortes de ativismo, por onde a trama da transformação ecossocial vai se expandindo, pelo autocuidado, pelo cuidado com as outras/os/es e por ser cuidada por elas/es, por cuidar dos Comuns e da Pachamama e ser por elas cuidada.


1 Cfemea. Rodas virtuais de autocuidado e cuidado entre ativistas – https://www.cfemea.org.br/images/stories/publicacoes/rodas_virtuais_autocuidado_cuidado_entre_ativistas.pdf

2 HERNANDO, Almudena. La fantasía de la individualidad – sobre la construcción sociohistórica del sujeto moderno. Madrid, 2012. Ler aqui.

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