Europa: O teatro político da imigração

Em Portugal, extrema direita surfa na xenofobia, com uso de violência descarada. E cortar políticas não evita a explosão de imigrantes – apenas relega-os à trabalhos precários e a viver nas ruas. A ironia: portugueses sofrem o mesmo em Luxemburgo

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A qualificação da seleção de futebol de Cabo Verde para a fase final do Campeonato do Mundo levou centenas de pessoas a comemorar nos bairros de Amadora e Sintra e na Grande Lisboa.

Na Reboleira a polícia carregou sobre 200 pessoas, disparando balas de borracha.

Certamente, se fosse o Benfica a ganhar uma taça ou a Seleção Nacional a ser apurada, a polícia não teria começado a disparar. 

Esta violenta repressão não foi praticamente noticiada e a escassa informação não parece ter revoltado a opinião pública. Prevalece a ideia de que os imigrantes e os portugueses afrodescendentes não são cidadãos e que devem ser tratados a tiros de shotgun quando comemoram a vitória do país dos seus pais.

Este é um posicionamento xenófobo que os emigrantes portugueses conhecem muito bem, mesmo nos ditos Estados civilizados da União Europeia.

No pacífico grão-ducado do Luxemburgo, onde metade da população é estrangeira, assim como dois terços das pessoas que ali trabalham, durante o Mundial, em junho de 2006, dois jornais luxemburgueses publicaram editoriais a dizer que a exibição de bandeiras portuguesas nas janelas das casas dos emigrantes era um sinal de “falta de integração”. Acrescentando que devia ser proibida qualquer exibição de bandeiras portuguesas nas janelas que não estivessem acompanhadas, acima, de uma bandeira luxemburguesa. De pronto, elementos de extrema-direita começaram a bater à porta das casas dos portugueses para os obrigar a retirar as bandeiras das quinas. 

A discriminação dos emigrantes portugueses na sociedade e sobretudo no ensino levou a escritora luxemburguesa Béatrice Peters a escrever o romance Fremde Heimat (Pátria Estrangeira) que relata a discriminação que sofrem os migrantes, entre eles muito portugueses. O livro tem como principal personagem Jô (diminutivo de João), filho de pais portugueses que trabalham na construção e na limpeza, que cria um partido para acabar com a desigualdade no ensino.

Fora do romance não há nenhum partido de imigrantes, e o sistema de ensino continua a dividir as crianças quando atingem os 12 anos: os professores decidem o futuro do adolescente, obrigando-o a seguir ou a via que dá acesso à universidade, para onde vão quase todos os luxemburgueses e menos de 20% dos portugueses, ou a via técnica e a vocacional, esta última para onde é enviada a maioria dos filhos de imigrantes.

Essa última é uma via pensada para pessoas que o sistema de ensino considera que não têm aptidão para poderem estudar e sair do seu lugar mais pobre e excluído da sociedade.

O sistema de ensino não é aqui um elevador social, mas uma garantia de que os imigrantes não podem ambicionar ser cidadãos de corpo inteiro. É uma máquina para reproduzir e manter as desigualdades sociais e nacionais.

O teatro político da imigração

As recentes eleições autárquicas em Portugal mostram que a política de discriminação dos imigrantes, considerando-os culpados de todos os males, dá votos. O PS sobe em Loures, depois de ter passado a pré-campanha a despejar, para a rua, mais de uma centena e meia de pessoas, 50 das quais crianças, das frágeis barracas no Talude. A tudo isso se soma um grande crescimento do Chega no município.

Quem trabalha em Portugal não consegue acessar habitação. A especulação financeira e a turistificação fazem de Portugal o país onde o preço das casas sobe mais. Grande parte da população ganha o salário mínimo e a maioria das rendas ultrapassa bastante esse valor.

As barracas estão a reaparecer em força nos subúrbios das grandes cidades, dado que as pessoas, muitas delas imigrantes com dois ou três empregos, não conseguem ter dinheiro para alugar um quarto, quanto mais uma casa.

O Governo não faz nada para resolver esta situação. Está mais preocupado em garantir os lucros da especulação imobiliária. Enquanto o Parlamento legisla sobre a proibição da burca em espaços públicos – que certamente vai fazer subir os nossos salários, melhorar os transportes, combater o aquecimento global e dar casas a todos…

A promulgação da recente lei da imigração não visa contrariar a suposta política de portas abertas, que nunca existiu. O número de imigrantes sobe porque é preciso mais gente na na agricultura, nas pescas, na hotelaria, na construção e nas entregas, áreas onde já mais de 30% da mão de obra é estrangeira e contribui com cerca de 3 bilhões de euros líquidos para a Segurança Social.

Na apresentação do livro Introdução ao Liberalismo, de Miguel Morgado, em Lisboa, Pedro Passos Coelho abordou os dados divulgados, dia 16 de outubro, pela AIMA, que indicam que o número de cidadãos estrangeiros a residir em Portugal quadruplicou em sete anos, com cerca de 1,5 milhões registrados no final de 2024, para salientar que “em muito pouco tempo entrou imensa gente em Portugal”.

Se não houvesse imigrantes, o País parava. A única forma de regularizar a imigração e de a reduzir é, segundo o especialista Hein de Haas, dar direitos fundamentais, sociais, laborais e autorizações de residência aos imigrantes

“E, se tudo se mantiver como está com o reagrupamento familiar e por aí fora, bem, qualquer dia também acontecerá cá aquilo que acontece noutras sociedades em que as pessoas, os nacionais, as pessoas que fazem parte daquela sociedade, se sentem estrangeiras na sua própria terra”, advertiu Passos Coelho.

O teatro político a que assistimos não visa controlar a imigração, mas relegá-la para a clandestinidade e para a escravatura laboral, com os trabalhadores a receberem salários abaixo do salário mínimo nacional e a viverem em contentores ou num só quarto para dezenas de pessoas.

“Os políticos que são contra a imigração são os mesmos que não punem quem os explora [os imigrantes]”, diz esse geógrafo e sociólogo dos Países Baixos em entrevista ao Público, fazendo notar: “A ironia é que o controlo de fronteiras apertado é que encoraja as pessoas a ficarem.”

O momento populista

O terreno da política faz-se construindo uma hegemonia sobre o que está em jogo, quem são os nossos amigos e os nossos inimigos. É preciso deslocar esse terreno da ideia de que os trabalhadores dos subúrbios, os pobres, imigrantes e as populações racializadas são os inimigos dos trabalhadores portugueses e são a causa de estes não terem uma vida melhor. 

Para isso é preciso politizar as escolhas econômicas, garantir possibilidade de alternativas e conseguir construir uma identidade e uma consciência de classe que junte trabalhadores, independentemente da sua origem nacional e da sua diversidade cultural.

“Vivemos numa época de aceleração histórica e desnorteamanento profundo. (…) Parece que os mapas e as bússolas do passado não funcionam no presente, e que as categorias políticas lutam para captar uma realidade que parece tanto trágica no seu conteúdo, quanto farsesca. (…) Contemplamos um mundo de eventos catastróficos, da pandemia ao impacto crescente da mudança climática, da guerra na Ucrânia à beira de tornar-se um conflito global, da crise energética vinculada a essa guerra e de uma crise económica crescente que pode condenar milhões à pobreza.

(…) As velhas certezas da globalização neoliberal, a ideia do mundo unido sob um mercado comum e de intercâmbios globais cada vez mais descomplicado, via internet e mercados financeiros entrou em questionamento”, defende o sociólogo Paolo Gerbaudo nas primeiras páginas do seu livro O Grande Recuo, a Política Pós-Populismo e Pós-Pandemia.

Este autor defende que as crises, a pandemia, a guerra e o crescimento da insegurança ditaram o fim do neoliberalismo. As pessoas percebem que não estão seguras com o mercado e precisam de um Estado cuidador. O que está em disputa é a forma que terá esse Estado e os objetivos que se propõe conseguir. Já defendia Lenine que o Estado era a forma como as classes opressoras se organizavam, e não era algo de independente entre as partes. A sua orientação dependia da correlação de forças existentes na sociedade. 

O horizonte político contemporâneo é definido pelo colapso do consenso neoliberal. 

“O populismo é crucial para entender a gênese do realinhamento político do presente. (…) O senso comum ideológico contemporâneo já não é apenas neoliberal, e sim cada vez mais neoestatista. (…) O neoestatismo também é um campo de batalha no qual surgem diferentes perspetivas do Estado e da sua missão”, faz notar Gerbaudo. 

O que está em disputa é a luta por dois tipos de Estados cuidadores. É a escolha entre um Estado xenófobo, nativista e identitário e um Estado que combate as desigualdades sociais e cria novas formas de produção não capitalistas. É claro que neste momento a extrema-direita leva uma enorme vantagem nesta disputa. 

Um dos principais problemas é o fato de os trabalhadores não se identificarem como tal e ignorarem o papel do seu trabalho na criação da riqueza da sociedade.

O regresso da classe trabalhadora

O Centro de Investigação Sociológica (CIS), espanhol, determinou em 2019 que 41% da população de Espanha era constituída por operários, qualificados ou não qualificados. Entre os primeiros encontram-se, por exemplo, carpinteiros, maquinistas, cozinheiros ou trabalhadores das artes gráficas; entre os segundos, jornaleiros, trabalhadores da construção civil, repositores de supermercado ou teleoperadores. Talvez o orgulho de classe tenha desaparecido, mas os operários continuam lá. E são muitos.

No entanto, quando se pergunta às pessoas o que são, torna-se evidente a mudança mental e ideológica. Apenas 10,3% dos inquiridos se considera da classe operária ou trabalhadora (o inquérito agrupa os dois termos), enquanto 58,6% se identifica como pertencente à classe média (alta, média ou baixa), de acordo com o Barómetro do CIS de fevereiro de 2024.

Existe uma forte divergência entre os resultados empíricos e a perceção dos factos. Os cidadãos preferem não se ver como classe trabalhadora, mesmo que trabalhem. Devido às fortes mudanças económicas, sociais e ideológicas ocorridas nas últimas décadas, a consciência de classe está a diminuir.

É preciso politizar as escolhas econômicas,garantir possibilidade de alternativas e conseguir construir uma identidade e uma consciência de classe que junte trabalhadores, independentemente da sua origem nacional e da sua diversidade cultural

As pessoas, nos países da UE, veem-se numa espécie de lugar social ascensional e têm vergonha de ser parte da classe trabalhadora, até porque nesta sociedade a produção de riqueza aparece como que desligada do trabalho, fruto do reino dos unicórnios e distribuída no casino da especulação financeira.  

Alguns comentadores, como Daniel Oliveira, insistem que a esquerda só se safa reagrupando-se numa nova forma partidária, uma espécie de Livre-Bloco depois da destruição do PCP, que poderia mendigar os votos da novidade e os renovados favores da cobertura mediática. 

Não estou convencido de que a solução para a “esquerda à esquerda do PS” se resolva com uma nova fórmula eleitoral. Acho que essas cristalizações institucionais, para resultarem e mudarem a sociedade, têm de corresponder a uma alternativa social que seja construída de baixo para cima. 

Os movimentos sociais, os militantes e as formações que chamamos de “esquerda” têm de estar no terreno social. Só vencem se se tornarem a voz dos trabalhadores e das populações dos bairros periféricos. Têm de conseguir unificar nas lutas trabalhadores imigrantes e portugueses. Conseguir demonstrar que é o trabalho que cria riqueza e que quem trabalha deve ter mais poder nesta sociedade.

O resultado das eleições ajuda a fazer este caminho, mas, na verdade, ele é resultado da falta de enraizamento social. Só vai mudar quando a raiva individual, que se expressa na extrema-direita, se tornar uma revolta social e coletiva que não dê voz a um falso messias, mas a todas as pessoas que não estão de acordo com a situação atual em que vivemos. 

O problema da esquerda em luta com a extrema-direita é que esta última fala com as entranhas e a esquerda responde com Excel. As forças políticas que querem representar os trabalhadores têm de ser capazes de conquistar melhores salários, mas sobretudo de construir o imaginário de uma sociedade que possa substituir o capitalismo e sair deste eterno presente.

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