Amazônia: O colonizador não vê aquilo que não é espelho

“Stonehenge da Amazônia”. “Capela Sistina dos Antigos”. “Meca Amazônica”. Há marketing, claro. Mas alcunhas de achados arqueológicos rebaixam a criação indígena e reativam o colonialismo: tudo que não se encaixa no discurso dominante versão selvagem do Ocidente

Foto: Serra da Capivara/JC Fagundes
.

Em países de histórias oficiais curtas, como os da América Latina, o conhecimento tradicional, e também a ciência, têm um papel importante para trazer à tona as histórias ignoradas e a enorme profundidade cronológica da presença e da ancestralidade das raízes culturais desta porção do planeta. A arqueologia tem um papel importante para ajudar a contar essas histórias e dar visibilidade para lugares onde elas aconteceram. O problema é que essas histórias acabam noticiadas como versões diminuídas da história europeia: uma construção indígena milenar no Amapá é a “Stonehenge da Amazônia”, um paredão de pinturas indígenas na Colômbia é a “Capela Sistina dos Antigos”, e – mais recentemente – uma cidade indígena anterior à invasão colonial, sob a atual cidade de Santarém, foi descrita como a “Meca ou Jerusalém Amazônica”.

O que pode parecer uma interessante estratégia de marketing, ao atrair a atenção a partir de referências mundialmente reconhecidas, acaba agindo como um efeito contrário. As histórias locais, as sabedorias ancestrais, a força e a potência indígena de construir modos diversificados de habitar a Amazônia são diminuídos como versões de histórias já conhecidas. Versões que fortalecem o colonialismo, deslegitimando, diminuindo e apagando o protagonismo dos nativos americanos, os povos indígenas, e suas contribuições para a formação das sociedades contemporâneas. As sociedades desta parte do mundo são apresentadas como se tivessem perdido o “Trem da História”. São classificadas como “Proto alguma coisa”, “semi-alguma coisa”, “incipiente” e/ou “subsistente”, termos que inferiorizam pessoas e períodos arqueológicos/históricos. A questão é que, nessa ideia de caminho único e linear da humanidade, esse Trem da História é desconsiderado como máquina do colonialismo, do escravismo e de todas as facetas do atual capitalismo. Máquina esta que sempre demandou quantidades insustentáveis de recursos da parcela colonizada. Na viagem onde o norte global senta no vagão da primeira classe, o mundo tropical é a lenha queimando na caldeira da locomotiva. 

A ciência ocidental e a academia mudaram muito desde o século XIX, quando muitas áreas do conhecimento começaram a se estruturar, contudo, preconceitos e racismos estruturantes permanecem arraigados tanto nessas áreas quanto na maneira de se divulgar e de se apresentar contextos arqueológicos e históricos não ocidentais. Trazer essa reflexão nos parece importante, pois é uma evidência de que ainda precisamos fazer o “nosso dever de casa”, como cientistas ou como comunicadores da ciência, não podemos perpetuar propostas racistas que nasceram de um projeto de colonização e dominação. Como afirmava o grande intelectual quilombola, Nego Bispo, “Nomear é Dominar” e quando essa nomeação acontece de maneira comparativa ao mundo colonizador ocidental, ela serve como instrumento de controle de narrativa, do conhecimento e da potência de outros processos históricos.

Os três exemplos de materialidades espetaculares, deixados por sociedades indígenas que viveram na Amazônia, mencionados anteriormente, são interessantes para pensar no papel da ciência e da divulgação científica para lidar com assimetrias históricas e regionais.

Calçoene

Nos anos 2000, foram retomadas as pesquisas em uma região na costa norte do Estado do Amapá onde, desde o século XIX, os sítios arqueológicos fascinaram viajantes. No Rego Grande, a nova equipe de pesquisa fez descobertas fascinantes. Grandes pedras de granito, pesando mais de uma tonelada, foram extraídas de pedreiras, carregadas até o local do sítio e implantadas no solo com diversos alinhamentos e inclinações. Elas formam uma grande estrutura, de formato mais ou menos circular, com cerca de 30 metros de extensão.

Sítio Rego Grande: sabedoria indígena milenar na construção de um observatório solar (foto Mariana Cabral).

As pesquisas arqueológicas na área mostraram ainda a construção de câmaras funerárias, onde pessoas mortas foram enterradas em grandes potes cerâmicos ricamente decorados, caracterizando a área como um cemitério. Câmaras essas que parecem ter sido revisitadas e reorganizadas várias vezes ao longo de séculos pelas populações indígenas que as construíram, com a colocação ou rearranjo de mais urnas. Além disso, a equipe constatou também que o local não foi utilizado exclusivamente como cemitério. O alinhamento cuidadoso dos monolitos extremamente pesados, que resistiram aos séculos, demonstra também um sofisticado conhecimento astronômico das populações nativas que habitavam a região.

A população indígena que construiu essa estrutura de pedra tinha um conhecimento preciso do movimento solar, alinhando determinados blocos com o nascer do sol do solstício de dezembro (inverno amazônico) e seu movimento ao longo da tarde. Construíram assim um observatório solar, que materializou na pedra a sabedoria refinada de eventos astronômicos.

As constatações evidenciam a profundidade histórica milenar do conhecimento minucioso das populações indígenas americanas sobre o mundo que habitam. O ineditismo de megalitos nessa região da Amazônia gerou uma resposta imediata da mídia nacional e internacional. A criatividade e originalidade das pessoas que construíram, porém, foi capturada pelo rótulo fácil de uma referência europeia: Stonehenge da Amazônia. A potência da história indígena americana se esvaiu em comparações ligeiras, resumindo a invenção indígena e local em uma versão menor do cânone inglês.

Os possíveis observatórios astronômicos da Amazônia e do Reino Unido possuem pouco ou quase nada em comum, nem de uma perspectiva histórica, nem tecnológica, nem cultural. Mas, quando colocados em comparação, o da Amazônia vira uma versão de um marco monumental do velho mundo e informa pouco além disso. A história indígena das Américas vira uma versão da história da Europa.

Serraía de la Lindosa

Painel principal do sítio Cerro Azul (foto Claide Moraes).

Mais recentemente, no final do ano de 2020, outro sítio indígena na Amazônia ganhou visibilidade internacional. O jornal inglês The Guardian estampou em suas páginas algumas fotos maravilhosas da Amazônia colombiana para anunciar a descoberta da “Capela Sistina dos Antigos”, o que, segundo a matéria, era a descoberta de arte rupestre numa das regiões mais remotas do mundo. A matéria antecedeu a divulgação de um documentário produzido pelo também britânico Channel 4. O título do documentário era ainda mais pitoresco –  Jungle Mystery: Lost Kingdoms of the Amazon. Em ambos os casos faz-se referência a elementos ocidentais para apresentar locais e histórias não ocidentais. Em si, comparações nem sempre são negativas, elas podem nos trazer elementos de compreensão, mas o que queremos destacar é a maneira como foram e são realizadas essas comparações: os contextos indígenas americanos são retratados como variações de contextos europeus, perdendo qualquer possibilidade de existirem como uma história própria e relevante em si.

Repetindo um estilo comum em documentários sobre arqueologia, a narrativa tenta comunicar uma ideia de que está sendo registrado um instantâneo de descobertas que irão mudar completamente a forma como conhecemos o assunto, flertando muito mais com a ficção do que com a realidade das pesquisas. O uso de outro artifício comum, de tornar o assunto excitante, para um público ocidental ou sob influência do ocidente, é a apresentação dos trópicos como um lugar inóspito, selvagem e perigoso. Surpreendentemente, o documentário presta um serviço importante, além de mostrar algumas das maravilhas feitas pelas populações do passado, alerta para a situação de fragilidade e perigo pela qual passam muitas das comunidades indígenas da América do Sul; destaca a importância de suas lutas pelo direito de continuar existindo; a maneira antiética que as comunidades tradicionais frequentemente são abordadas pela ciência e a acelerada destruição da Amazônia. Mas, de modo geral, além da Capela Sistina, dos perigos e mistérios da floresta com suas onças, sucuris e outros seres extremamente mortais; pouco resta da mensagem.

Que se fale em reinos e que se evoque a genialidade de Michelangelo Buonarroti para atrair um público de espectadores europeus, tão familiarizados com o assunto, é compreensível como propaganda. A questão é que a divulgação científica local passou a repetir os mesmos termos, e dessa vez para um público que se apoiará em referências distantes, formado por pessoas que jamais poderão ver ao vivo a prova da genialidade de Michelangelo ou que muitas vezes nunca ouviram falar dele, mas que a partir de agora terão uma imagem distorcida da própria história, a de que a valorização da arte indígena só ganha pleno reconhecimento se ela for como “a obra de Michelangelo”. Oportunidade perdida de contar sobre a história indígena em uma das regiões de maior diversidade linguística e cultural do planeta. 

A cidade dos Tapajó

E nem só de mídia internacional é feita essa contínua referência das obras indígenas a histórias de outros continentes. Recentemente, a mídia veiculou com grande destaque o resultado de décadas de pesquisa arqueológica na cidade de Santarém.  “[A]ntes da chegada dos europeus, Santarém era uma Meca ou uma Jerusalém amazônica”, afirmam reportagens diversas.

As notícias apresentam os extensos sítios arqueológicos da área central e portuária de Santarém (Aldeia e Porto), hoje ocultos sob o peso da urbanidade e de onde já foram retiradas algumas das mais belas cerâmicas indígenas da Amazônia.

Pessoa indígena representada em peça de cerâmica (foto Maurício de Paiva).

Em uma trajetória cheia de versões, onde nos falta a das construtoras e construtores originais, estes sítios já tiveram outros nomes: Ocara-açu, a principal cidade Tapajó, onde hoje está assentada a cidade de Santarém. Ocara-açu, o termo em língua geral que continuou a ser mencionado em textos históricos, articula duas palavras de origem tupi: ocara, a praça central de uma aldeia, e açu, de tamanho de grande, o que sugere uma impressão de grandeza que esse lugar gerou entre visitantes. Lugar que o colonialismo dos invasores europeus a partir do século 16, tratou de apagar, se utilizando da violência e do genocídio praticados pelas tropas de resgate e proselitismo religioso. Corpos mumificados, que materializavam a importância de cultos aos antepassados foram queimados, locais simbólicos foram profanados e incendiados, figuras agentivas jogadas nas águas, festas e celebrações tradicionais foram proibidas e combatidas. Desta forma, a manutenção do ordenamento do cotidiano local e, de maneira ampla, da cultura regional foi desestruturada.

Como narrado meticulosamente nos documentos da igreja católica que chegaram até nós, desde o início do estabelecimento das missões religiosas na região de Santarém o objetivo era claro: em nome de uma nova ordem, profanar e acabar com todas as práticas cerimoniais dos indígenas. Em vários momentos em que a conversão pela fé não foi eficiente, expedições punitivas foram executadas para castigar os indígenas. Em outras situações, se abandonaram as tentativas de conversão e foram adotados o genocídio e a escravização.

Parte dos marcos arquitetônicos desta profanação podem ser claramente observados na Santarém de hoje. Navegando pelos rios Tapajós e Amazonas atualmente, é possível avistar de longe a imponência da Igreja Matriz e suas duas torres. Propositalmente situada no mesmo lugar onde, em 1542, os invasores europeus Francisco de Orellana e Gaspar de Carvajal davam notícia do avistamento de uma cidade indígena, de umas das mais aguerridas e populosas nações com as quais eles se depararam. Marco de grande povoação indígena que hoje se encontra escondido abaixo do concreto e do asfalto da cidade. A história que se passou onde viria a ser a cidade de Santarém, como em praticamente todas as antigas aldeias que passaram pelo processo de colonização, tinha como objetivo apagar e destruir referências culturais e religiosas não cristãs.    

Se com a igreja católica a situação não foi fácil, como parte da máquina colonial estatal, a coisa ainda ficaria pior no período pombalino. Como parte do apagamento histórico colonizador, a Vila dos Tapajós, sua vizinha Vila dos Borari e vários outros centros da região foram renomeados com os nomes portugueses que prevalecem até os dias atuais. Os religiosos foram expulsos e as línguas nativas proibidas de serem faladas. Desde então, a província dos Tapajó, ou Ocara-açu, passou a existir apenas nas menções do bairro periférico da Aldeia,  para onde a população indígena que resistiu a tanta violência foi empurrada.

Daí em diante, a despeito da resistência de diversos povos originários que compõem a sociedade santarena e de uma abundante materialidade da presença indígena na região que remonta há mais de 12 mil anos, a história local é de apagamento. Mais de uma dezena de povos reivindicam direitos originários na região de Santarém, mas ainda sofrem os reflexos dos séculos de combate de suas práticas culturais, da proibição da continuidade de uso de suas línguas maternas e de sua negação nos documentos oficiais. E o pior é que agora eles são frequentemente acusados de serem “falsos índios” exatamente por terem tido direitos e práticas culturais negados. Neste sentido, associar de forma comparativa os registros de sua existência pré-colonial à Jerusalém do mundo ocidental, um marco importante também para o cristianismo, é profanar mais uma vez a materialidade originária de práticas genuinamente nativas americanas, referenciando a história indígena pela lógica do invasor cristão europeu. Dupla profanação: diminui a criação indígena e ainda ativa o cristianismo – força destruidora na América colonial – como referência.

Apagando histórias

Com suas raízes profundas no século XIX, hoje em dia, o colonialismo interno segue sendo o principal mantenedor destas ações deletérias, agindo de maneira disfarçada ou velada, se utilizando de parâmetros “científicos” que não condizem com as formas de ordenamento do cotidiano indígena, na tentativa de perpetuar suas políticas excludentes e preconceituosas.  

Na América do Sul, somos todos países com populações majoritariamente miscigenadas, resultantes das máquinas coloniais inauguradas pelo grupo de Cristóvão Colombo em 1492.

Como nações, somos o resultado destas violências coloniais. Mesmo que a arqueologia reivindique algumas dezenas de milhares de anos de história das pessoas indígenas em território americano, os europeus deram a eles mesmos a falsa premissa de fundadores da história do novo mundo. O que aconteceu antes temos dificuldade de situar e muitas vezes é chamado de pré-história. Sem refletir muito, “pré-história” pode até parecer adequado. Ainda mais pensando que compartilhamos como espécie humana nossa origem na Eva mitocondrial de 200 mil anos, originária da África, nosso berço ancestral. Mas qual seria o nome “Eva” se a “pré-história” não fosse contada pelo mundo branco ocidental?

Num mundo plural, teria que haver espaço para que narrativas indígenas também pudessem ser apresentadas para falar de suas trajetórias e para nomear seus lugares significativos. E se tivesse espaço para Eva ser nomeada pelos yanomami, ou se pudesse ser uma mulher Okoymoyana (do povo da cobra grande) como conta a tradição dos povos Caribe da margem norte da Amazônia Brasileira?

Davi Kopenawa conta que:

No início, nenhum ser humano vivia ali. Omama e seu irmão Yoasi viviam sozinhos. Nenhuma mulher existia ainda. Os dois irmãos só vieram a conhecer a primeira mulher muito mais tarde, quando Omama pescou a filha de Tëpërë-sikɨ num grande rio. No início Omama copulava na dobra do joelho de seu irmão Yoasi. Com o passar do tempo, a panturrilha deste ficou grávida, e foi assim que Omama primeiro teve um filho. Porém, nós habitantes da floresta, não nascemos assim. Nós saímos, mais tarde, da vagina da esposa de Omama, T’uëyoma, a mulher que ele tirou da água. Os xamãs fazem descer sua imagem desde sempre. Chamam-na também de Paonakare. Era um ser peixe que se deixou capturar na forma de uma mulher. Assim é. Se Omama não tivesse pescado no rio, talvez os humanos continuassem a copular atrás do joelho! (KOPENAWA; ALBERT, 2015, p. 82).

As palavras de Kopenawa nos ajudam a entender que existem muitas formas de explicar a criação do mundo e que algumas delas vão enfatizar relações dialógicas entre as pessoas e o que chamamos de mundo da natureza, ao invés das relações de domínio ou exploração que caracterizam a história ocidental sobre a evolução humana.  Essa narrativa encontra eco também no modo como muitas populações indígenas na Amazônia explicam o mundo.

Um de nós, Jaime Xamen Waiwai, conta aqui uma das histórias de criação que ele aprendeu entre seu povo, os Waiwai, habitantes do interflúvio da margem norte do rio Amazonas.

Baseado nas epistemologias do meu povo Waiwai,  tudo começa com a relação de homens e florestas, não existiam mulheres. Os primeiros de nós eram dois gêmeos, Mawari e Woxi. Mawari e Woxi eram os melhores para fazer flecha. Suas habilidades atraíram mulheres, porém estas não eram mulheres como eles. Para contar essa história, precisamos traduzir não apenas as palavras da língua Waiwai para o português, mas também traduzir ideias, em um movimento de dentro para fora, desta forma aprenderemos  sobre as epistemologias Waiwai. Nessa história, os gêmeos pescam com suas flechas duas mulheres de outro povo, o povo da anaconda, que vive debaixo do rio, os Okomoyana.

No início, eles não tinham nenhuma experiência de se relacionar. As duas mulheres disseram que eram filhas de Okoymo yana. Elas ainda não estavam prontas para ser mulheres, seus úteros estavam cheios de peixes. Piranha, mandi, poraquê e muitos outros. Para se tornarem  mulheres elas tiveram que passar pela Umawa, a casa da transformação, a casa comunal tradicional dos povos Waiwai. Alí elas tiraram uma parte do corpo e assim Mawari e Woxi se casam.

Assim, surgiram as primeiras famílias, depois os dois irmãos se separaram, Mawari subiu e Woxi desceu o rio. Isso é o que é sabido sobre os parentes indígenas, que desde então cresceram e se dispersaram. Foi assim que o nosso povo se criou, o que somos hoje é a mistura disso.

Depois de muito tempo esses povos são contactados, são colonizados e aldeados, povos que nem tinham noção do que é cristianismo. Esses povos estavam articulados com seres de mundos diferentes, os chamados kakinaw (donos da natureza). Viver é negociar em todos esses mundos.

Essa maneira de organizar a vida é modificada, chegaram os missionários e disseram que esses lugares eram cheios de maldade, palcos do diabo e essas práticas não eram humanas. Aos poucos os povos foram mudando os pensamentos e as histórias foram ocupadas por outros seres.

Longe de ser a “pré-história” de todos, ela tem sido apenas dos que dominaram o discurso e o transformaram em documentos oficiais. Além disso, a maneira como o termo vem sendo empregado para o continente europeu e os outros continentes difere enormemente. Na Europa, a pré-história é o palco de muitos humanos, o início da história dessas humanidades, na América Latina, “pré-história” é quase todo mundo antes dos colonizadores. Nesse cenário os colonizadores se tornam o grande marco civilizatório enquanto os processos históricos dos povos originários são simplesmente ignorados. A face mais perigosa desta situação é que ela transforma trajetórias ancestrais em não-histórias. E como já dizia Emília Viotti Costa, “Um povo sem memória é um povo sem história. E um povo sem história está fadado a cometer, no presente e no futuro, os mesmos erros do passado.” E se, pautados apenas numa versão que segue errando, estivermos também deixando de pensar nos acertos do passado?

Quando os europeus chegaram, a estimativa é que 10 milhões de indígenas viviam na Amazônia. Uma história de relações de pelo menos 13 mil anos. Depois do extermínio da maior parcela desses 10 milhões, a Amazônia só voltou a ter 10 milhões de habitantes nos anos 1970. Uma parte desses novos 10 milhões não sabe viver com a Amazônia. Cinquenta anos não foram suficientes para entender como é possível viver com a Amazônia, mas foram suficientes para destruí-la ao ponto de alerta de não retorno.  

No mundo dos documentos oficiais, um povo que tem “pré-história” ao invés de história tem seus direitos negados. Os que sabem escrever a história, mas não sabem viver com a Amazônia, aprenderam a usar grilos para envelhecer documentos e criar novos direitos, os dos grileiros de terras.

Não por coincidência, estes dois assuntos, história e direitos, vêm sendo manipulados com muita artimanha ao longo dos séculos que nos separam do início da invasão europeia. Um dos expoentes mais representativos do racismo europeu do século XIX, Carl Friedrich Philipp von Martius, médico e naturalista, conhecido por contribuições para os registros botânicos da América do Sul, mesmo alertando para sua falta de especialidade no assunto, teceu suas opiniões sobre história e direito dos nativos brasileiros. Em suas próprias palavras podemos ler o seguinte:

Quem, de perto e sem prevenção, observar o homem americano, deve concordar que o seu estado actual está muito longe de ser o natural, alegre e infantil, que uma voz interior nos diz deve ter sido o começo da historia humana e que o documento mais antigo nos confirma como tal. Si o estado actual daqueles selvagens fosse o primitivo, daria-nos ele uma ideia attrahente, ainda que um pouco humilhante, da marcha evolutiva da humanidade […].

Palavras que hoje nos soam chocantes certamente ecoavam sem nenhum espanto no debate acadêmico do século XIX e, sem sombra de dúvidas, influenciaram muito os tomadores de decisão sobre os direitos dos indígenas. Ao concluir sua avaliação sobre “O Estado de Direito entre os Autóctones do Brasil”, Martius, de forma irresponsável, ou talvez propositalmente direcionada, indagou: “onde estão os monumentos da sua arte, de sua sciencia; onde os ensinamentos da sua fé ou os exemplos de feitos heroicos de fidelidade a uma patria amada?”. Ao fazer isso, intencionava desobrigar o colonizador de considerar a importância da contribuição nativa para a humanidade. Intenção essa que se reproduz hoje com a contínua comparação das obras indígenas com Stonehenge, a Capela Sistina e Jerusalém.

Ironicamente, a história conecta von Martius, a Igreja da Matriz, Nossa Senhora da Conceição em sua praça central em Santarém e os indígenas da região. Martius não relatou esta passagem menos gloriosa de suas aventuras, mas esteve de cara com a morte num princípio de naufrágio nas proximidades de Santarém.

Mais de 200 anos depois desse naufrágio, um crucifixo doado por Martius à Igreja Matriz de Santarém, marca o evento e como ele atribuiu à igreja a sua sobrevivência. Na praça Rodrigues dos Santos, logo acima, entre a Matriz e o bairro da Aldeia, é de onde vem os principais exemplares de cerâmicas tapajônicas, hoje espalhados em diversas coleções e museus do Brasil e de outros países.

Uma obra da administração municipal de Santarém iniciou a construção de um camelódromo no que pode ter sido um dos cemitérios e praça de cerimônias do assentamento indígena milenar da localidade, talvez um dos maiores da Amazônia. A obra não cumpriu o que a lei brasileira exige para o licenciamento ambiental e foi embargada pelo Ministério Público. Desde então, o Poder Público de Santarém, o Ministério Público e Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional travam um embate para saber de quem é a culpa do dano, a responsabilidade de reparação e o cuidado com o patrimônio arqueológico remexido, concretado e esquecido pela Santarém atual.

A igreja de Santarém e o crucifixo de Martius acabam celebrados pela história oficial como verdadeiros representantes da Jerusalém amazônica, no entanto, as centenas de hectares de terra preta com vestígios milenares das populações indígenas seguem invisibilizadas. Esses milhares, milhões de vestígios, falam de uma história completamente diferente, que não existe em função do Ocidente, que não deve ser adjetivada ou comparada com o que era feito em outros continentes. As histórias aqui são auto suficientes, elas têm que ser valorizadas por elas mesmas e não por semelhanças com as referências cristãs ocidentais.

Impactos atuais de um colonialismo estrutural

Aqui podemos conectar alguns pontos que permeiam a definição de direitos ao longo dos tempos. Uma ideia de uma história única, com uma trajetória também única, separa escolhidos e esquecidos por Deus. Uns têm vaga garantida na primeira classe desse trem da história única, outros degeneram e continuarão queimando como lenha na caldeira de sua locomotiva.

Infelizmente essa ideia de mundo não ficou sepultada no século XIX. A eugenia, o olhar voltado para o norte civilizatório como caminho de solução e toda a sorte de apagamentos continuam moldando as Américas miscigenadas. Como nações miscigenadas e como reivindicado pelos movimentos indígenas, a mãe da América Latina é indígena. O mundo da eugenia, quando muito, se esforça em tornar essa mãe indígena esquecida em mais uma imagem de Eva. O medo, a falta de referencial e o apagamento tornou repetitiva uma narrativa sulamericana: “meu avô era europeu e minha avó era indígena”, o resumo discreto da violência histórica sobre as mulheres indígenas, roubadas, violadas, apagadas. Desse avô é comum saber a nacionalidade, a região e até a cidade de origem. Ele tem documento, tem sobrenome, tem história. A avó frequentemente é indígena genérica, não se sabe a sua etnia, que língua falava e de onde foi retirada, ela se tornou imemorial, pré-história, sem história.

Nesse mundo sem história, alguns se sentem no direito de estabelecer Marcos Temporais. Os agentes dos grilos e papéis querem substituir trajetórias milenares e estão amparados por injustiças centenárias que, desatentos, nós ajudamos a legitimar. Num mundo em que monumentos e sítios arqueológicos são no máximo versões selvagens de Stonehenges, Capelas Sistinas e Jerusaléns, Nunes Marques, ministro do Supremo Tribunal Federal, ao emitir seu parecer e voto sobre o Marco Temporal, “avaliou que, sem o marco temporal, a ‘soberania e independência nacional’ estariam em risco.” (Fonte: Agência Câmara de Notícias). No trem dessa história, os mais nacionais de todos, se tornam a ameaça da soberania de seu chão milenar.

Essa mãe da América Latina foi e segue sendo frequentemente violentada. Essa parte dura da história tem que ser relembrada para deixar de ser continuamente repetida. Essa mãe não viveu em Jerusalém, não pintou a Capela Sistina e tampouco erigiu Stonehenge. Se existem duas Jerusalém no mundo, talvez uma, que não é muito original, não tenha necessidade de ser preservada. Por outro lado, se soubéssemos que Ocara-açu representa um lugar de povos que sabem viver com a Amazônia e que esse lugar é único, teríamos a chance de construir outras histórias. Jamais teremos o direito de encontrar uma Machu Picchu na Europa. Então, não violentemos mais uma vez a nossa mãe.

Outras Palavras é feito por muitas mãos. Se você valoriza nossa produção, contribua com um PIX para [email protected] e fortaleça o jornalismo crítico.

Leia Também:

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *