Uma pesquisa para despertar os apoiadores de Lula

Estudo de cientistas da UFRJ e UFRRJ sugere: eleitorado está disposto a reconhecer que partidos de esquerda ajudaram a melhorar as condições de vida. Mas os vê muito próximos do sistema que produz desigualdades estruturais e privilégios. O que isso diz às eleições de 2026?

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Em meio a um momento no qual a direita e a extrema direita estão sem rumo, correndo o risco de irem para as eleições de 2026 fragmentadas, surge a oportunidade de a esquerda se organizar de forma mais efetiva não apenas para o processo eleitoral, mas indo além, saindo da posição defensiva em que foi colocada nos últimos anos. E a pesquisa Retratos do Progressismo no Brasil, lançada em 26 de novembro, traz pistas importantes sobre os desafios e as bandeiras que podem e devem ganhar relevância para que essa agenda possa ser elaborada.

Realizado pelo Núcleo Ypykuéra com o Observatório Político e Eleitoral (Opel), ligado à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e à Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), o levantamento foi feito com base em grupos focais presenciais distribuídos em nove capitais de estado, representando as cinco regiões brasileiras: Belém (PA), Belo Horizonte (MG), Brasília (DF), Fortaleza (CE), Porto Alegre (RS), Recife (PE), Rio de Janeiro (RJ), Salvador (BA) e São Paulo (SP). Os participantes foram divididos em dois grupos: um que votou em Luiz Inácio Lula da Silva (PT) no primeiro e no segundo turnos nas eleições de 2022, e outro que votou apenas no segundo turno. Os dois, obviamente, têm perfis distintos, com o primeiro mais alinhado a valores de esquerda/centro-esquerda, enquanto o segundo se caracteriza mais pela rejeição ao bolsonarismo. Contudo, em ambos é possível perceber concepções importantes sobre a perspectiva política no campo progressista.

Um dos pontos que chama a atenção, e talvez represente um norte, é a menção de diversos participantes ao tema da educação, ainda que ele não tenha sido o foco de nenhuma questão específica. Contudo, aparece de forma transversal, incorporado a um conceito de prosperidade que vai além do acúmulo de dinheiro e bens materiais. E a esquerda é percebida como a principal defensora, no campo político, dessa bandeira.

“Apesar de não ser um tema central, por exemplo, do governo Lula, as pessoas, quando falam dele, lembram de ter colocado o filho do pobre na universidade, é quem colocou o filho da empregada doméstica, do trabalhador, em uma universidade”, ressalta o educador popular, ativista socioambiental e articulador comunitário no Rio de Janeiro, Wesley Teixeira, um dos coordenadores da pesquisa. “O mote de melhoria da condição de vida é o que leva a educação a ser um grande fator.”

A centralidade do empreendedorismo

Mais uma vez, uma questão com a qual a esquerda tem dificuldade de lidar apareceu nas conversas da pesquisa qualitativa. Candidatos do segmento já tentaram incorporar o tema em suas campanhas, mas patinam ao elaborar propostas que possam facilitar a vida de quem tem um pequeno negócio e não quer voltar a procurar empregos com remunerações baixas e péssimas condições de trabalho.

“Apesar de muitos intelectuais de esquerda quererem combater esse termo e essa pauta, a esquerda tem um voto popular e as pessoas querem isso, têm esse anseio”, pontua Teixeira. “Também há ainda uma incompreensão entre empreendedorismo e trabalho precarizado. Toda vez que a esquerda vai falar de empreendedorismo, ela entende que empreendedorismo é o entregador de aplicativos, mas empreendedorismo é a pessoa que está vendendo aquela comida que o entregador de aplicativos está fazendo”, explica.

Não deixa de ser interessante que, mesmo com essa dificuldade para lidar com a questão, algumas pessoas considerem o desempenho da esquerda como positivo nesse campo, ao lembrarem da instituição do MEI, por exemplo. Um participante de Belém, eleitor de Lula nos dois turnos, homem de 47 anos, branco, com formação no ensino médio, destacou que o “governo lançou o programa ‘Acredita’, uma linha de crédito para quem quer montar um pequeno negócio. A pessoa consegue um acompanhamento do governo, impulsiona a economia, faz girar a economia”, disse ele. Já uma mulher evangélica de Brasília, branca, de 26 anos e com ensino superior, eleitora de Lula só no segundo turno, fez outro destaque: “A questão da agricultura familiar, por exemplo, é uma forma de empreender e isso é muito bem pautado pela esquerda.”

A principal queixa dos participantes nest área se relaciona justamente com a questão anterior: educação. Embora alguns citem os cursos do Sistema S, outros falam da ausência de orientação, algo que seria fundamental para empreender, na visão dos entrevistados. “Eu, como pequena empreendedora já tem cinco anos, senti que eu não tive apoio nessa questão. Eu me baseei muito em pessoas que também tinham empreendimentos. No YouTube, muita coisa eu aprendi através do YouTube. Eu não senti que tinha nenhum apoio do governo e eu acho que falta muito disso, de educação pra gente saber lidar com questões, principalmente financeiras”, relata uma mulher de 30 anos, branca, com formação no ensino médio, evangélica de Belo Horizonte e eleitora de Lula só no segundo turno.

“Empreender não é só incentivar o cara a tomar um empréstimo. Vai muito além do que a gente imagina. Empreender é você acompanhar, ajudar a empreender, é acompanhar o início, a continuidade e o fim. E não acontece isso”, pontua um eleitor de Lula nos dois turnos, homem pardo de 31 anos, com ensino superior, de Salvador.

Wesley Teixeira aborda um exemplo prático de dificuldades que poderiam ser sanadas por meio de políticas públicas: “Muitas mulheres empreendem a partir do Bolsa Família. Com uma parte dessa renda, a pessoa investe, começa a vender um bolo de pote, e aquilo permite que ela comece a gerar mais renda para a sua própria família, a partir de um benefício que ela recebeu. Agora, observe: se essa mesma mulher abrir um MEI, acaba perdendo esse benefício. Só que a gente sabe que a maioria dos MEIs quebra em até dois anos”, aponta. “Esse é um exemplo de pauta importante de ser modificada. As pessoas poderiam receber benefício e abrir seu MEI, e ter um estágio, um tempo de avaliação se aquele empreendimento é rentável ou não. E, com esse tempo de adaptação, é possível permitir às pessoas empreenderem e gerarem negócios.”

Os depoimentos vislumbram uma possibilidade de conectar dois temas que apareceram na pesquisa como importantes para eleitores do campo progressista, a educação e o empreendedorismo, realizando conexões com bandeiras históricas da esquerda, como a economia solidária, o cooperativismo, a formação de redes e o próprio incentivo à agricultura familiar, lembrado por uma das participantes do estudo.

Antissistema, mas democrático

Existe outro aspecto que tem sido motor da extrema direita no Brasil e em outros países, presente também entre eleitores de esquerda, mas encarado de forma distinta: o sentimento antissistema. Contudo, a rejeição que se expressa fundamentalmente contra a classe política não se traduz em uma recusa da democracia.

“A percepção de que a política e os políticos, como um todo, são corruptos, sem distinção de ideologia, foi amplamente majoritária e representa um golpe duro no campo progressista, que não pode ser evitado ou minimizado ou apenas rechaçado como ‘antipolítica’ ou como ‘lavajatismo’. É preciso dialogar de modo mais concreto com esse sentimento”, pontua o estudo. Contudo, outro ponto destacado entre muitos dos participantes do levantamento é a percepção de que “nem todos são iguais”, o que abre outra janela de oportunidades para o campo progressista enfrentar o sentimento antissistema, ainda mais quando conectado a outra avaliação.

Uma ideia comum tanto ao grupo dos eleitores de Lula nos dois turnos quanto ao daqueles que só aderiram no segundo turno diz respeito ao diagnóstico de que o atual presidente enfrenta obstáculos consideráveis para governar, muito por conta da força da direita no Congresso Nacional, que age para sabotar sua gestão. “Como que a gente elegeu o presidente de esquerda e todos os nossos deputados são de direita, né? (…) Você não elege um presidente que vai governar sozinho. Ele precisa de todos aqueles deputados e senadores que foram eleitos, e a gente tem visto bastante essa questão, né?”, pondera uma mulher de 48 anos, parda, com ensino superior, evangélica, de Brasília. “Minha vida tá pior, mas não que tenha culpa do governo. São reflexos antigos, pela questão também da maior parte do Senado, que realmente dá as canetadas, ser da direita”, diz outra eleitora, de 33 anos, parda, com formação no ensino médio, de Porto Alegre.

“Trata-se do diagnóstico de que há uma série de obstáculos externos ao presidente que o impedem de fazer um governo melhor. Essa paciência do eleitorado é um bom indicativo para a disputa de 2026. Para a pesquisa, entretanto, o mais importante é delimitar a dimensão analítica que emerge desse diagnóstico. As pessoas entendem que o principal obstáculo que impede Lula de governar é a força da direita no Congresso Nacional e isso fortalece a identidade do eleitorado com o presidente e com a esquerda”, aponta o estudo.

Essa insatisfação pôde ser vista, por exemplo, na forte reação promovida nas redes sociais e nas ruas contra a chamada PEC da Bandidagem. Não à toa, o presidente da Câmara dos Deputados, Hugo Motta (Republicanos), ficou incomodado com o movimento, voltando as baterias contra a base governista. Foi uma manifestação que tirou cidadãos do estado de indiferença e demonstrou uma força mobilizadora que colocou os progressistas no centro do palco. Esse sentimento pode ser um fator importante para o engajamento dos eleitores de esquerda e centro-esquerda, além de outros insatisfeitos com o chamado “sistema”, para as eleições legislativas, em geral escanteadas diante dos pleitos para o Executivo, tanto federal quanto estaduais.

Renovação de lideranças

Para lidar com essa descrença que atinge parte do campo progressista, o estudo aponta para a necessidade de a reforma política voltar à pauta, o que poderia ajudar nesse intento de valorização das eleições parlamentares e da própria política. “É preciso retomar urgentemente um projeto de reforma política com o objetivo de revalorizar a democracia e de qualificar os processos de combate às desigualdades. Trata-se de um tema que era um ponto forte do campo progressista enquanto estava na oposição nos anos 1980 e 1990 e que foi perdido ao longo do século XXI”, pontuam os autores.

“As esquerdas precisam pactuar entre si e apresentar um projeto consistente de correção das desigualdades que o sistema político desenvolveu nesses 35 anos de democracia. Um corte das prerrogativas dos congressistas que as pessoas entendem como privilégios, incluindo as emendas parlamentares, junto com outras medidas, tais como limitação de mandatos e ampliação da transparência e prestação de contas, apresentam enorme potencial de reposicionar a esquerda no tema da corrupção. A recente posição de Lula contra o aumento do número de deputados e a da esquerda contra a PEC da Blindagem são evidências desse potencial”, propõe ainda o estudo.

Existe também um alerta sobre a necessidade de renovação nas lideranças do campo. Como resposta espontânea, sem nomes mencionados nos questionários, a liderança de Lula é evidente, com 33% dos respondentes afirmando se identificar com ele. Trata-se de uma proporção que é quase o dobro da segunda categoria, o “nenhuma”, com 18,7%. Em seguida vem o PT, único partido a ser mencionado como identificação de liderança política, que tem 12,1%. Se o dado mostra a legenda como uma potencial produtora de novas lideranças, o fato de nenhum outro nome ter atingido dois dígitos mostra um vácuo que precisa ser trabalhado.

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