Um mapa mais real da votação no Brasil?

Aspectos econômicos e regionais são insuficientes para explicar escolhas (e contradições) eleitorais. Análise dos pleitos de 2018 e 2022 sugere urbanidade como chave: voto petista é mais urbano/metropolitano; já o bolsonarista, mais interiorizado

Figura 1: Cartogramas em anamorfose da classificação REGIC/IBGE e comparativos dos primeiros turnos das eleições de 2018 e 2022, com detalhe para as regiões metropolitanas de São Paulo e Rio de Janeiro.
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Por Fernanda Padovesi Fonseca, Jaime Oliva, Jacques Lévy, Katia Canova, Eduardo Dutenkefer, Stéphane Gallardo, Vinicius S. Almeida, Maiara Santana e Jessica Luchesi, na coluna Outras Cartografias

A eleição presidencial no Brasil ocorre em combinação com as eleições dos governadores dos estados e, também, com as eleições parlamentares (Senado, Câmaras federais e estaduais). Todas essas eleições possuem dinâmicas próprias, já que afetadas diferentemente conforme a escala da sociedade política pertinente. As dinâmicas de todas essas eleições se relacionam, mas nem sempre espelham a eleição principal: a presidencial. Logo, focar na eleição presidencial não permite contemplar tudo o que esse conjunto de eleições nos disse sobre a evolução do quadro político no Brasil, mas sua importância justifica uma interpretação própria de seus resultados.

1. Uma cartografia multiescalar

Para definir alguns parâmetros de interpretação, antes é preciso lidarmos com interpretações correntes que, em boa medida, empregam parâmetros naturalizados.

O primeiro deles é a dominância da escala macrorregional (as grandes regiões brasileiras: Sul, Sudeste, Nordeste, Norte e Centro-Oeste) presente nas observações desde as sondagens eleitorais e, depois, no exame dos resultados. Assim agem os institutos de pesquisa e os meios de comunicação e agem também os partidos políticos e, numa medida, também seguem essa escala as próprias interpretações acadêmicas. Tudo isso, a despeito da disponibilização rápida e farta de dados eleitorais de outras escalas, pelos órgãos eleitorais. Um pouco por essa razão, frequentam o cenário das interpretações a identificação de “dois Brasis”, a afirmação de “um Nordeste que quer impor o seu candidato ao restante do país”, a oposição de “um Brasil moderno (desenvolvido) a um Brasil arcaico (subdesenvolvido)”. Essas conclusões que enxergam um contraste nas eleições nessa escala não são totalmente despropositadas, mas são muito gerais e ocultam outras dinâmicas importantes e mais complexas que atravessam esse recorte escalar. Algumas interpretações até caem em armadilhas, pois enxergam mais do que o contraste eleitoral na escala regional permite concluir. O Partido dos Trabalhadores (especialmente o candidato Lula) tem tido votações bem mais elevadas que seus adversários na região Nordeste, algo que não acontece com nenhum candidato nas outras regiões. Daí o contraste. Mas o PT e o candidato Lula têm votações competitivas em todas as regiões do país e o PT venceu em todas as regiões em 2010 e por isso não dá para dizer que “uma região impõe seu candidato ao restante do país”. Outra armadilha é assumir, sem cuidados, que a região Centro-Oeste pertence ao Brasil moderno. Chega a ser extravagante em termos cognitivos reduzir a complexidade regional e social dessa parte do país ao “agronegócio” que faz uso intensivo de tecnologia. Não é sustentável, mesmo segundo os parâmetros tradicionais de aferição do desenvolvimento, manter a etiqueta de “moderno” para a região Centro-Oeste. Porém, esse tipo de afirmação está sendo repetido no afã de explicar o contraste que a votação do Nordeste suscita. Para demonstrar que o reducionismo a essa escala macrorregional dá o tom das interpretações, aquilo que se destaca no interior de uma macrorregião como contraditório (por exemplo, Bolsonaro vence no Sul, mas é derrotado na principal cidade da região, Porto Alegre; vence no estado de São Paulo, mas é derrotado na principal metrópole do país, que é a cidade de São Paulo) ao resultado geral é apresentado como um “complicador” para a interpretação (RICUPERO, 14/10/2022). O complicador não está na realidade e sim na escala de análise adotada.

O segundo parâmetro naturalizado é a cartografia adotada que aparece, sem muitos cuidados, com o nome de “o mapa eleitoral”. De forma quase total, o mapa eleitoral que aparece na mídia, assim como o dos institutos de pesquisa apenas, varia segundo a escala, ou o país na escala macrorregional, ou os estados e seus municípios, ou os municípios (despreza-se, nesse caso, a composição das áreas metropolitanas). E esse mapa tem fundo euclidiano/territorial tornando a representação da população/eleitorado problemática. As cidades, por exemplo, aparecem em mapas de sua escala apenas (sem contexto espacial, portanto), pois quando representa-se a escala nacional elas viram pontos inexpressivos a despeito de concentrar grande população. O interessante é que se fala do “mapa eleitoral” como uma entidade preexistente na qual os dados se inserem magicamente, como se fosse algo que não tivesse sido feito por ninguém, como uma janela que nos mostra uma realidade única e natural. Como se mapas não fossem linguagens, não fossem materialidades que participam da produção da informação e do conhecimento.

Apresentamos a seguir uma alternativa a essa cartografia naturalizada que são alguns cartogramas em anamorfose com fundo populacional. Como é a população que vota e não os territórios, esses são realmente mapas eleitorais.

Nesses cartogramas vemos o peso populacional e, consequentemente, dos colégios eleitorais das grandes cidades e também as porcentagens dos votos em Bolsonaro e Haddad (2018) e Bolsonaro e Lula (2022). Bolsonaro como o candidato populista de direita e Haddad e Lula como candidatos progressistas. Para chegar a esses cartogramas foi usada a seguinte metodologia: adotamos a classificação dos centros urbanos (das cidades) em cinco grupos hierarquizados conforme a pesquisa REGIC. São eles, na ordem inversa: 5. Centro Local; 4. Centro de Zona; 3. Centro Sub-Regional; 2. Capital Regional; e 1. Metrópole (cf. Regiões de Influência das Cidades 2018, p. 15). No caso desses cartogramas há destaques e detalhes das duas maiores metrópoles brasileiras (São Paulo e Rio de Janeiro). Nesses visualiza-se a vitória de Lula na metrópole de São Paulo em 2022. Na anamorfose, São Paulo ocupa uma área proporcional à sua população, e nota-se que ela está cercada por áreas de menor votação nesse candidato. Esse perfil da votação no candidato em São Paulo poderia ser totalmente ocasional, mas se houver repetição de alguma maneira nos outros grandes centros urbanos, desenhando padrões, estamos autorizados a tentar algumas interpretações que elucidem uma relação dos perfis das votações com o modo de vida dominante nesses centros. O mesmo pode ser dito em relação à existência de certas regularidades nos perfis de votação nas áreas de centros urbanos menores e no campo.

2. Padrões que se esboçam no Brasil

No capítulo 3 de Geographies du Politique de Jacques Lévy (Les mutations de la géographie électorale) identifica-se um certo padrão em eleições diversas (temáticas e gerais) que ocorreram em vários países da Europa (França, Suíça, Áustria, Reino Unido, Tchéquia, Polônia). Posturas mais abertas em relação a alguns temas (casamento de pessoas do mesmo sexo, questão imigratória, por exemplo) são defendidas por partidos mais democráticos e obtém mais aderência eleitoral nos grandes centros urbanos; o contrário, posturas mais fechadas e partidos mais nacionalistas (populistas), e mesmo de extrema direita, se associam e obtém mais aderência eleitoral em centros urbanos menores e no campo. Verifica-se esse fenômeno se repetindo em eleições mais recentes e nos EUA o padrão confirma fortemente a ideia de fundo: o ambiente de sociabilidade do indivíduo, que corresponde à trama de suas espacialidades, terá influência importante na formação da vontade eleitoral, especificamente, e nas suas posturas políticas e sociais em geral. Dito de uma maneira mais sintética, considerando o dispositivo público maior que uma cidade pode oferecer: a urbanidade faz diferença na formação da vontade eleitoral. Nossa questão é verificar, tendo em vista o desenho eleitoral brasileiro, se há alguma semelhança da nossa situação com os exemplos citados.

Pois bem, agora no primeiro turno da eleição de 2022 há algumas semelhanças que precisam ser reveladas, desde que abandonemos a escala regional como critério soberano para interpretação e que lancemos mão de mapas mais aderentes às dinâmicas eleitorais.

Primeiro é preciso admitir (e reiterar) que o voto no candidato Lula corresponde ao que na Europa foi designado como um voto de abertura e progressista, e que o voto no candidato Bolsonaro é um voto conservador (fechado às inovações) e de extrema-direita populista, tal qual forças emergentes (algumas existentes há tempos) na Europa e nos EUA (o trumpismo). Essa correspondência não nos parece impertinente, e removendo a eventual imagem de “um esquerdismo extemporâneo do PT” (o que não é real), a correspondência é bem próxima. Em segundo lugar, devemos considerar o tamanho do Brasil e sua enorme diversidade social, assim como as mutações políticas ocorridas em razão de uma crise política muito recente (que ainda não terminou) e que se transformou numa crise social mantendo o país instável e em recessão econômica. Um cenário de turbulência não é a melhor situação para que padrões se estabeleçam. Mais difícil ainda é identificá-los. Mas, mesmo em meio à turbulência, as eleições de 2022 parecem ter esboçado alguns padrões que seguem as mesmas tendências europeia e norte-americana, guardadas as diferenças necessárias.

A indicação de tendências semelhantes começa pelas formulações propriamente políticas. Se tivermos como referência as formulações que se digladiam no Brasil podemos estabelecer comparações também com o que acontece na América Latina. Uma radicalização das antinomias entre progressistas e o “neoconservadorismo populista” está instalada de um modo geral no continente, mesmo que sem uma espacialização padronizada tão nítida quanto na Europa e nos EUA. A substância programática dos governos da extrema direita populista na América Latina, Estados Unidos e Europa tem como centralidade uma pauta moral reacionária, hostil à democracia e à pluralidade, sustentada como defesa da família tradicional, passando a ter sentido de soberania nacional (de uma radicalização do nacionalismo) uma vez que instituições globais seriam aliadas de agentes internos inimigos da moral a ser defendida. São numerosos os estudos que mostram que, ao lado de crises políticas e recessões econômicas, o desprezo pelos direitos humanos, materializados principalmente no avanço de políticas de gênero e LGBTQIA+, constituiu o discurso que impulsionou a popularidade e a carreira de candidatos como Bolsonaro, Trump e Viktor Orbán (BIROLI, MACHADO e VAGGIONE, 2020; LACERDA, 2018; SANTOS, 2022).

Esse discurso consegue ganhar espaço nas grandes cidades, inclusive encorajando expressivas manifestações conservadoras no espaço público, além de ser disseminado em cidades menores, onde a resistência a ele é muito menor. A questão moral centrada na questão da família estabelece laços com a classe média e com pobres ao mesmo tempo, porém de forma distinta, o que parece não ser uma chave de análise muito elucidativa em um primeiro momento. Por outro lado, a urbanidade das grandes cidades pode ser entendida como um facilitador de enfrentamento direto ao neoconservadorismo e isso pode contribuir na interpretação da complexidade e heterogeneidade do comportamento eleitoral brasileiro nas grandes metrópoles de um modo geral, pois a urbanidade definida como a densidade e a diversidade de forma ampla, pode incluir e fazer interagir ideias extremas e completamente opostas.

Um outro aspecto que compõe padrões que se esboçam nesse quadro político diz respeito à história do que está consolidado como força política progressista no Brasil, que é algo encarnado especialmente no Partido dos Trabalhadores. O PT se consolidou como força política e eleitoral na virada do século XX para o XXI e a espacialidade de seu crescimento e atuação foram e ainda são as grandes cidades. Apesar de suas origens sindicais, rapidamente ele obtém aderência de forma difusa nos grandes centros, claro que em alguns mais, outros menos. Nesses grandes centros ele disputa o poder político com partidos do “centro democrático” (no Brasil as aspas são sempre necessárias), mais moderados e conservadores que têm penetração também em cidades menores e no campo. Mas, recentemente o fenômeno da ascensão de uma extrema direita, radicaliza antinomias latentes na nossa formação e na sociedade política, e esse centro moderado é absorvido pela extrema direita (os partidos quase desaparecem) em grande medida e uma pequena parte (pelo menos no momento eleitoral) se alinha ao PT. Essa radicalização acentua e sedimenta espacialidades dos votos: nas pequenas cidades do interior do Sul, do Sudeste e do Centro-Oeste do Brasil o voto passa a ser da direita populista. A homogeneidade impressiona. O fenômeno não é inteiramente nacional: as pequenas cidades do interior do Nordeste e de parte do estado de Minas Gerais se desviam dessa tendência e os votos são do PT. Também se manifesta uma forte homogeneidade.

Esse caso desviante de votos do interior no PT tem sido interpretado como uma aderência geral dos pobres aos candidatos do PT, afinal as sondagens mostram uma propensão maior dos votos de baixa renda no PT. Mas essa explicação não é sustentável, afinal boa parte (aliás, a grande parte) do interior de São Paulo e do interior do Rio de Janeiro, embora tenham cidades com alguma dinâmica econômica, têm muita desigualdade, renda per capita muito baixa, enfim, um padrão de pobreza bastante espraiado. E o voto foi em 2018 e 2022 destinado de forma massacrante para a extrema direita. Insistir nessa interpretação é enxergar riqueza e pobreza e determinismo econômico onde eles não se manifestam tão decisivamente. Até o início do século XXI, o voto no Nordeste não era de “esquerda”, muito menos no interior, ainda muito sob o efeito de velhas lideranças tradicionais (“coronelismo”), o que é fartamente sabido. Essa mudança radical da vontade eleitoral na região é uma resposta às políticas federais (da presidência) que foram efetivas e plenamente capitalizadas politicamente, principalmente, por Lula. O chamado “lulismo” não é um fenômeno difuso de um “líder populista” que virou um “pai dos pobres” por conta de seu carisma e outras práticas políticas tradicionais (Ver Os sentidos do Lulismo, André Singer). Tem uma ancoragem concreta num espaço, numa macrorregião do país. Nesse caso, pode-se dizer que a ação política fez e faz diferença e pode interferir e alterar tendências e padrões, especialmente em áreas cuja vida social ainda está em formação. Por isso, achamos que o caso desviante do Nordeste não é uma negação de que o voto mais conservador prospera mais em ambientes de baixa urbanidade, mas sim uma afirmação da política numa área do país que padece de problemas estruturais.

O que enxergamos na distribuição do voto nas eleições de 2022 é uma tendência de maior votação do PT nos grandes centros urbanos, ou, para usar outra linguagem, nos gradientes de urbanidade mais elevados. Essa tendência se manteve, mesmo com a exceção de 2018, quando Haddad perdeu em todas as capitais, mas, com o PT obtendo suas maiores votações nos grandes centros. Na eleição atual, o PT ganha nas maiores capitais e nas grandes cidades de uma maneira geral (perde em várias capitais pequenas e é derrotado por pouco no Rio de Janeiro e Belo Horizonte). Evidente que isso ainda não tem a distribuição tão nítida como no caso europeu, como já notamos, mas pensamos que é suficiente para constatar uma tendência real.

3. Determinismo econômico e gradientes de urbanidade?

A tendência que se pode enxergar, reafirmando, é que o voto mais progressista é mais urbano/metropolitano e o populista de direita está mais interiorizado. A observação dessa tendência não torna desimportantes outras características que se pode notar no quadro político brasileiro e que teve parte da sua expressão revelada em mais esse processo eleitoral.

No entanto, a tendência notada parece ser a mais estimulante para refletirmos sobre as relações existentes entre a formação da vontade eleitoral no contexto atual e as espacialidades de vida dos atores sociais. Podemos começar tentando interpretar o voto progressista atual (do PT) nas grandes cidades, isto é, tentar vislumbrar a dinâmica do voto nas áreas de maior urbanidade. Lula ganhou ou teve votações expressivas nas grandes cidades brasileiras. Ganhou, principalmente, em São Paulo e Porto Alegre, duas capitais encravadas em estados de presença muito forte e estridente da extrema direita. Essas duas cidades fizeram o “contraponto da urbanidade” com seu interior. Assim, como nas capitais nordestinas, isso se deu também em relação ao voto homogêneo ao PT no interior. Uma maior diversidade do voto metropolitano também foi um contraponto da urbanidade (veja a Figura I).

Para interpretar esse “complicador” que é o voto progressista e também mais diversificado nas grandes cidades muitos analistas têm mobilizado novamente o argumento de uma aderência difusa dos pobres ao PT, ao Lula, especialmente (o “lulismo”), agora encarnado na ideia de que Lula recuperou o voto das periferias das grandes cidades. Quer dizer: a oposição principal do voto no Brasil seria mesmo entre “ricos e pobres”, reduzindo a complexidade do quadro político à dimensão econômica, à questão da sobrevivência física.

Contudo, isso não é constatado empiricamente em todas as cidades e não funciona para todas as áreas onde há índices de pobreza elevados. Por isso, estamos diante de uma chave interpretativa naturalizada, sem eficácia para enfrentar a complexidade do quadro político contemporâneo. São vários os exemplos que fragilizam o argumento da distribuição do voto segundo padrões de pobreza e riqueza: Lula não recuperou o voto das periferias da cidade do Rio de Janeiro, terrivelmente empobrecidas. Pobres que estão nas áreas de militância das igrejas evangélicas e de atuação das milícias votaram majoritariamente em Bolsonaro. Votaram na extrema direita, contra seus interesses? No entanto, houve uma votação expressiva ao PT em áreas de classe média, áreas de muita concentração de capital econômico e cultural. O mesmo não se deu em outra área de concentração de capital econômico, mas de baixo capital cultural, de baixa urbanidade (Barra da Tijuca, que só perdeu em votos bolsonaristas para as vilas militares). O contraste é muito grande e é sabido sobre as dificuldades de circulação de ideias (é conhecido que candidatos progressistas não podem fazer campanha em certas áreas) no Rio de Janeiro. São áreas que, por diversas razões, a sociabilidade é fortemente comunitária e controlada por lideranças que interferem até nas disposições políticas. Já São Paulo parece confirmar a recuperação do voto na periferia, porém a “periferia” do município não é só de pobres, há uma classe média baixa bastante difusa, com relativo capital cultural, e na cidade as ideias, os movimentos sociais, as forças políticas de todas as partes da cidade circulam muito mais se compararmos com o Rio de Janeiro. Essa constatação não precisa esconder que Bolsonaro teve mais votos em vários bairros com grande participação no mercado formal de trabalho e com capital econômico elevado. Mas são bairros com urbanidade relativa rebaixada, pois funcionam como uma espécie de subúrbios americanos, áreas fechadas de classe média, classe média alta, pouco expostas à urbanidade (OLIVA, 2004). O que pode explicar a votação pró-Lula elevada em alguns bairros também de capital econômico alto, como Pinheiros? São bairros de capital cultural mais notório e mais expostos à urbanidade, com espacialidades mais públicas. Lula teve grande votação nos bairros de grande vulnerabilidade social, de baixo poder de consumo e de alta informalidade no mercado de trabalho, enfim de pior urbanidade a priori e de condição de justiça espacial. Assim, considerando as duas cidades (São Paulo e Rio de Janeiro) temos situações de pobreza com muitos votos progressistas e com votos de extrema direita. Do mesmo modo, temos votos de extrema direita nas áreas de alta concentração econômica e votos progressistas em áreas de elevado capital econômico. A hipótese interpretativa é que a urbanidade na escala da cidade pode ser diferenciada e que também, mesmo com diferenças, ela pode repercutir mais ou menos, trabalhando distintamente o conjunto urbano. Enfim, o simplismo da explicação pobreza versus riqueza não deve caber também em Porto Alegre, em Florianópolis (perdeu de pouco, no mais bolsonarista dos estados) e ficará sem sustentação nas grandes capitais do Nordeste onde periferias e centros votam PT, mesmo que com alguma diferença a favor das periferias. Por enquanto, é plausível afirmar que essas constatações empíricas e as interpretações mais imediatas já bastam para demonstrar a pertinência de outras chaves interpretativas, pois as realidades políticas estão indicando dinâmicas que escapam das análises convencionais.


Referências

BIROLI, Flávia, MACHADO, Maria das Dores Campos; VAGGIONE, Juan Marco Gênero, Neoconservadorismo e Democracia. São Paulo: Boitempo, 2020.

IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Regiões de Influência das Cidades 2018. Nota Metodológica. Rio de Janeiro: IBGE, 2020.

LACERDA, Marina Basso. Neoconservadorismo: articulação pró-família, punitivista e neoliberal na Câmara dos Deputados. Tese de doutorado. Instituto de Estudos Sociais e Políticos. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2018

LÉVY, Jacques. Géographie du politique. Paris: Odile Jacob, 2022.

OLIVA, Jaime Tadeu. A Cidade sob Quatro Rodas. O automóvel particular como elemento constitutivo e constituidor da cidade de São Paulo: o espaço geográfico como componente social. 2004. Tese (Doutorado em Geografia Humana) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2004. Acesso em: 25/10/2022

RICUPERO, Bernardo. Dois Brasis se enfrentam em 2022? In: A Terra é Redonda. Publicado em 14/10/2022. Disponível em: https://aterraeredonda.com.br/dois-brasis-se-enfrentam-em-2022/. Acesso em: 25/10/2022

SANTOS, Rayani Mariano dos. A mobilização de questões de gênero e sexualidade e o fortalecimento da direita no Brasil. Agenda Política, [S. l.], v. 8, n. 1, p. 50–77, 2022. Disponível em: https://www.agendapolitica.ufscar.br/index.php/agendapolitica/article/view/308. Acesso em: 25/10/2022

SINGER, Andre Vitor. Os sentidos do lulismo: reforma gradual e pacto conservador. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

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