O passado bate à porta da Bolívia

Esquerda vai às urnas rachada neste domingo. Andrónico Rodríguez, seu principal candidato, não empolgou. A chance de 2º turno: conquistar o voto indeciso e em branco. Após 14 anos, poder pode voltar para oligarquia: a neoliberal ou extremista

Foto: David Lombieda / Reuters
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Por Pablo Stefanoni , no Nuso | Tradução: Rôney Rodrigues

A Bolívia votará nas eleições de 17 de agosto em um cenário político inédito nos últimos 20 anos: o outrora poderoso Movimento ao Socialismo (MAS) enfrenta o processo eleitoral dividido em três facções e corre o risco de ficar em terceiro ou quarto lugar. Pela primeira vez desde o final dos anos 1990, a esquerda não estaria no segundo turno, que, segundo as pesquisas, oporá dois candidatos de direita (um mais moderado e outro mais radical): o político e empresário liberal-desenvolvimentista Samuel Doria Medina e o ex-presidente Jorge “Tuto” Quiroga, ligado às redes radicais de Miami.

As lutas internas que começaram assim que o MAS retornou ao governo em 2020, após ser derrubado um ano antes, o que virou um verdadeiro processo de autodestruição. O MAS está hoje dividido entre arcistas – seguidores do presidente Luis Arce Catacora –, que ficou com a sigla do MAS por meio da manipulação da Justiça; evistas – adeptos de Evo Morales, inabilitado eleitoralmente e confinado na região cocalera do Chapare para evitar prisão –; e androniquistas –que apoiam a candidatura do presidente do Senado, Andrónico Rodríguez.

Eduardo del Castillo, candidato “oficial” do MAS, não alcança 2% das intenções de voto. Alheio ao mundo camponês, que é a “alma” do MAS, Del Castillo era um dos homens fortes do governo de Arce, que acabou desistindo de concorrer a uma reeleição impossível devido à sua escassa capacidade de gestão e a uma crise econômica inédita desde os conturbados primeiros anos da década de 2000. Como ministro do governo, Del Castillo foi o rosto mais visível da perseguição política e judicial contra Evo Morales, líder incontestável do MAS desde sua fundação.

O candidato mais bem posicionado do campo do MAS, que após seu lançamento teve chances de disputar o segundo turno, é Andrónico Rodríguez, ex-protegido de Morales e por ele escolhido como sucessor na liderança dos sindicatos de camponeses cocaleros. Com 36 anos, representa novas gerações de camponeses com formação universitária e fortes vínculos urbano-rurais. Mas a decisão do jovem líder de concorrer à Presidência enfureceu Morales, que agora pede a anulação do voto como um “referendo” contra o processo eleitoral – o que contribuiu para desgastar a candidatura de Andrónico.

Após meses de reflexão – durante os quais vários presidentes e ex-presidentes, como Nicolás Maduro, Raúl Castro e José Luis Rodríguez Zapatero, tentaram mediar a crise do MAS –, Andrónico finalmente lançou sua candidatura. Antes disso, distanciou-se de seu mentor ao evitar conclaves evistas e adotar um discurso autocrítico e renovador, razão pela qual Morales hoje o considera um traidor. Mas ele não conseguiu fincar raízes no movimento camponês – a principal base social do MAS –, e alguns de seus primeiros apoios vieram de figuras questionáveis, vistas como oportunistas.

A escolha de sua candidata a vice-presidente também não o ajudou. Em teoria, a jovem ministra Mariana Prado – considerada na época parte da ala alvarista (do ex-vice-presidente Álvaro García Linera) – complementava o candidato camponês, com seu perfil de tecnocrata urbana e “branca”. Mas sua candidatura enfrentou um caso policial que a afetou indiretamente, porém de forma persistente. Seu ex-companheiro cometeu um feminicídio, e ela foi acusada – especialmente por feministas como María Galindo – de tê-lo beneficiado em seu depoimento judicial. “Olha aqui, Andrónico de merda, se você se candidatar com a Mariana Prado, vou fazer sua vida um inferno de segunda a segunda, porque a Mariana Prado é uma desgraçada que defendeu um feminicida”, disparou Galindo em seu estilo habitual virulento – e, de fato, iniciou uma campanha impiedosa contra Prado.

Andrónico Rodríguez conseguiu uma sigla emprestada para concorrer fora do MAS arcista, com bons resultados iniciais nas pesquisas. Mas, ao enfrentar o governo do MAS e Evo Morales, sua campanha tornou-se árdua e ameaça perder força. Só poderia salvá-lo, até certo ponto, se parte do grande número de indecisos e potenciais votantes brancos/nulos optasse por um voto útil de esquerda para evitar o colapso. O que poderia ser uma candidatura renovadora foi sabotada principalmente por Morales, que ampliou a lista de “traidores” até García Linera, seu vice-presidente e “copiloto” por 14 anos.

Em meio a uma crise econômica marcada pelo esgotamento do modelo nacionalista de esquerda do MAS – queda na produção de gás, alta inflação, escassez de combustíveis e falta de dólares, que dão um ar anos 1990 ao cenário atual–, a política boliviana parece incapaz de se renovar. Doria Medina foi ministro no governo de Jaime Paz Zamora (1991-1993) e candidato à presidência por seu partido, Unidade Nacional, em várias ocasiões. Apesar de ser vice-presidente do Comitê da Internacional Socialista (IS) para América Latina e Caribe, isso diz mais sobre a “elasticidade” ideológica da IS do que sobre o “socialismo” de Doria Medina, um dos maiores empresários da Bolívia. O economista acumulou fortuna na indústria de cimento, possui grandes propriedades imobiliárias e hotéis, e um pé na gastronomia: é dono das franquias de Burger King e Subway no país. “Não sou de direita dura. Na Bolívia, sou considerado de centro, então posso dialogar com todos. Sou pragmático e acredito que a Bolívia precisa de pragmatismo”, disse em entrevista em 2024.

Para conquistar a Presidência após tantas tentativas frustradas – marcadas por sua falta de carisma –, ele construiu uma ampla aliança que vai do ex-prefeito de La Paz Juan del Granado (centro-esquerda) ao hoje preso ex-governador de Santa Cruz Luis Fernando Camacho (direita), incluindo parlamentares do partido do ex-presidente Carlos Mesa (centro). Também tem apoio do empresário mais rico da Bolívia, Marcelo Claure, que compartilha com Elon Musk a vontade de influência política e a fascinação por trollagens nas redes. Doria Medina se apresenta como o economista capaz de resolver a crise após 15 anos de estabilidade e crescimento – o “milagre econômico” do MAS –, hoje visto com ceticismo.

O político e empresário destacou, em entrevista ao Infobae, que seu plano de governo visa estabilizar o país nos primeiros 100 dias. O foco será resolver o déficit fiscal, atribuído a três fatores: subsídios a combustíveis, gastos com estatais ineficientes e desperdício na política. Seu slogan é “Cien días, carajo!”. Acredita que, se eleito, os investimentos voltarão e os bolivianos tirarão seus dólares do “colchão bancário”.

Ele afirma não ter copiado Javier Milei (cujo lema é “¡Viva la libertad, carajo!”). O empresário sofreu um grave acidente aéreo em 2005 e sempre considerou sua sobrevivência uma espécie de mensagem. A frase que supostamente pronunciou – “Carajo, não posso morrer!” – ao ver que ainda estava vivo marcaria, ironicamente ou não, sua carreira política. Também sobreviveu a um câncer e a um sequestro pelo Movimento Revolucionário Túpac Amaru (MRTA) do Peru: libertado após 45 dias, mediante pagamento de mais de US$ 1 milhão.

Seu principal adversário é “Tuto” Quiroga, que assumiu a presidência por sucessão constitucional (2001-2002) após a morte de Hugo Banzer – o ex-ditador dos anos 70 que retornou ao poder democraticamente em 1997. Em 2005, Quiroga perdeu para Evo Morales, que iniciou seu longo reinado político com 54% dos votos.

Militante de uma direita radical, foi arquiteto da estratégia que derrubou Evo em 2019, levando Jeanine Áñez (hoje presa) ao poder. Prometeu romper laços com Venezuela, Cuba e Irã (“Não terei relações com as três tirânias trogloditas totalitárias, os três piratas do Caribe”), mas admitiu avaliar a permanência da Bolívia nos BRICS (devido a laços comerciais com Índia e China). Sua defesa da democracia, frisou, limita-se à América Latina: “Azerbaijão, Catar… China, Vietnã… respeito seus sistemas, mas não os compartilho. Não gosto de partido único, mas respeito”.

Na mesma entrevista, criticou o Mercosul (“não quero participar da parte comercial, é uma prisão”) e propôs um “triângulo sul-americano” para explorar lítio com Argentina e Chile. Com ares noventistas, disse que manteria uma “posição agressiva” para buscar tratados de livre comércio com vários países, incluindo os Estados Unidos. Diferenciou-se, no entanto, do protecionismo de Donald Trump. “Não gosto de países que aumentam tarifas. Eu vou reduzir tarifas e entendo perfeitamente que minha resposta se refere a um Estados Unidos que já não está aberto ao livre comércio. E não é um problema apenas da atual administração. Por isso, assim como Chile e Peru, vou assinar meus próprios acordos comerciais com a Europa, com países da Ásia e da região”, respondeu à rede CNN.

Seguindo a esteira de Milei na Argentina, e até tentando superá-lo retoricamente, disse que usará “motosserra, facão, tesoura e tudo o que encontrar” para reduzir o gasto público. Doria Medina registra cerca de 21% nas pesquisas, e Quiroga se aproximou com 20%. Em terceiro lugar aparecem Rodrigo Paz, filho do ex-presidente Jaime Paz Zamora, e o prefeito de Cochabamba e ex-candidato presidencial Manfred Reyes Villa. Andrónico Rodríguez aparece em quarto ou quinto, com cerca de 7%. Mas cerca de 30% declara que votará em branco, nulo ou que ainda não decidiu o voto, o que pode alterar os resultados, e há dúvidas sobre como será a votação no campo.

A quantidade de votos nulos e em branco também marcará a legitimidade do novo governo, que enfrentará um ajuste em um país marcado por rebeliões sociais — como bem sabe Quiroga, que, como vice-presidente, viveu a Guerra da Água em Cochabamba no ano 2000. Morales contestou o processo eleitoral e buscará não ser detido por uma acusação de “tráfico de pessoas agravado”, por ter mantido uma relação, segundo a acusação, com uma pessoa que era menor de idade no momento em que o vínculo começou. Esse processo, iniciado sob a presidência “interina” de Áñez, foi reativado pelo governo de Arce para neutralizar Morales em meio à guerra interna.

Dessa forma, a Bolívia se prepara para voltar a um cenário semelhante ao dos anos 1990, em que sucessivas crises econômicas se combinavam com um sistema político fragmentado que exigia constantes acordos parlamentares e que foi se desmoralizando ao se transformar em um mercado de troca de cargos. O próprio triunfo de Morales em 2005 foi apresentado como o fim da chamada “democracia pactuada”. Agora, com um Parlamento que se presume será dominado pela direita, possivelmente essa democracia fragmentada se reedite. Mas o mundo já não está nos anos 1990, e a Bolívia tampouco. Quando o entrevistei em 2005, Doria Medina me disse que “não é questão de colocar [na Presidência] uma pessoa de poncho ou pollera, a solução é levar adiante mudanças na economia”. Poderia repetir o mesmo hoje, 20 anos depois. Mas esses setores indígenas e populares têm hoje uma relação diferente com o poder, ainda que o discurso sobre a regeneração nacional a partir dos povos originários tenha se desgastado.

Abre-se um ponto de interrogação sobre a estabilidade política do futuro governo. E sobre o futuro do MAS: será que esse espaço de base camponesa-popular, que nestes anos foi politicamente hegemônico, conseguirá superar seu estado de decomposição, desânimo e desconcerto, ou voltará também ao cenário dos anos 1990, quando diversas facções camponesas e de esquerda gastavam grande parte de suas energias competindo entre si? Hoje, numa Bolívia que celebrou um bicentenário sem brilho, os candidatos que até ontem eram “o passado” dizem que, se vencerem em 17 de agosto, quem será “o passado” será o MAS, e que sua crise é “terminal”. Que será o fim de um longo ciclo político.

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