O Chile e a pedagogia das derrotas

Chegada da ultradireita ao Palacio La Moneda revela uma armadilha que as esquerdas costumam cair: urgência de ruptura da ordem neoliberal é trocada pela mediação. Governo Boric conteve a própria insurgência que dizia representar, abrindo portas para o conservadorismo

.

A experiência recente da esquerda chilena não deve ser lida como um simples fracasso político, nem como um desvio moral de dirigentes que teriam se afastado de um projeto original. Ela funciona melhor como lição histórica negativa: mostra, mais uma vez, o destino de processos insurgentes quando são traduzidos em governabilidade. O Chile não inventou nada. Apenas atualizou um roteiro já conhecido.

O levante de outubro de 2019 foi um desses momentos raros em que a sociedade parece sair do lugar. Iniciado pelo aumento da tarifa do metrô em Santiago e rapidamente expandido para todo o país, ele condensou décadas de desigualdade, endividamento e privatização herdadas da ditadura e administradas pela democracia. Não porque tivesse um programa definido, mas porque suspendeu, ainda que brevemente, a normalidade neoliberal. A ordem cotidiana foi interrompida, a autoridade perdeu evidência, o medo mudou de lado. O que estava em jogo não era uma reforma específica, mas a própria capacidade do sistema de se manter de pé.

Havia ali algo difícil de capturar: formas de ação que escapavam à representação, uma criatividade social que não cabia nos canais tradicionais, uma recusa prática à mediação. Assembleias territoriais surgiram fora dos partidos e sindicatos, bairros passaram a deliberar por conta própria, redes informais organizaram abastecimento, cuidado e defesa coletiva. A ação direta não era um meio para pressionar negociações futuras, mas uma prática imediata de ruptura com a normalidade. Barricadas, evasões, ocupações e intervenções simbólicas não buscavam reconhecimento institucional; suspendiam, ainda que provisoriamente, o funcionamento regular da cidade. Esse excesso — e não sua ausência — foi o verdadeiro problema colocado pelo levante.

A resposta veio sob a forma da institucionalização. O processo constituinte e a aposta eleitoral não foram simples concessões arrancadas pela rua, mas mecanismos de deslocamento. O conflito foi retirado do terreno onde produzia efeitos imediatos e transferido para espaços onde tudo precisa ser convertido em linguagem jurídica, calendário político e negociação permanente. A crise deixou de ser vivida para ser administrada.

Os dados são claros. Ao longo do governo de Gabriel Boric, foram aprovadas dezenas de leis voltadas à segurança pública. Leis que ampliam penas, restringem ocupações, reforçam atribuições policiais e endurecem o tratamento penal de protestos. Nenhuma dessas medidas rompe com o legado repressivo do Estado chileno; ao contrário, o atualizam.

Nos territórios mapuche, o estado de exceção foi mantido e renovado sucessivas vezes. A militarização não diminuiu. Houve operações policiais letais, prisões preventivas prolongadas e continuidade da criminalização da luta territorial. O discurso mudou; a prática permaneceu.

No campo econômico, os pilares do modelo não foram tocados. O sistema previdenciário privado seguiu operando. A estrutura tributária não sofreu mudanças capazes de alterar a concentração de renda. O Chile continuou dependente do extrativismo mineral e da lógica financeira. As reformas aprovadas foram graduais, negociadas e limitadas por compromissos com o mercado.

Mesmo políticas frequentemente apresentadas como conquistas — como a redução da jornada de trabalho ou aumentos do salário mínimo — foram implementadas de forma escalonada, sem alterar a precariedade estrutural do trabalho. Melhoram condições, mas não mudam a lógica.

O processo constituinte, por sua vez, terminou derrotado. O texto rejeitado não conseguiu mobilizar novamente a energia de 2019. Não houve defesa ativa nas ruas. A distância entre a população mobilizada anos antes e o procedimento constitucional era evidente. Quando o texto caiu, não houve reação à altura. O ciclo já estava encerrado.

O efeito político foi imediato. A direita recompôs forças com um discurso simples: ordem, segurança, estabilidade. O terreno estava preparado. A desmobilização prévia facilitou a restauração conservadora.

Nesse movimento, perdeu-se mais do que intensidade. Perdeu-se o antagonismo. O que antes aparecia como ruptura passou a ser tratado como transição. A política institucional assumiu a tarefa de resolver a crise que a sociedade havia aberto, e ao fazê-lo, começou a fechá-la.

O processo constituinte cumpriu essa função. Não fracassou apesar de suas limitações institucionais; esgotou-se porque sua razão de existir era conter o conflito. Ao separar mobilização de decisão, produziu uma distância crescente entre a energia social que havia explodido nas ruas e os procedimentos que agora falavam em seu nome. Quando o texto constitucional foi rejeitado, o levante já não estava ali para defendê-lo. Sua força havia sido drenada.

É nesse cenário que emerge o governo de Gabriel Boric. Não como ruptura interrompida, mas como forma política adequada ao encerramento do ciclo. Um governo jovem, progressista, capaz de dialogar com as linguagens do levante, mas também de restaurar a normalidade que ele havia colocado em suspenso.

O neoliberalismo chileno não foi desmontado. Foi administrado com outra tonalidade. Seus pilares permaneceram: a estrutura econômica, a lógica da acumulação, a centralidade do mercado, o aparato repressivo. As reformas existiram, mas operaram no plano da compensação, não da transformação. Ajustaram efeitos sem tocar causas.

A repressão, longe de ser um desvio inesperado, tornou-se parte desse arranjo. As leis de segurança, a criminalização das ocupações, o tratamento dos conflitos territoriais indicam que o progressismo, quando governa após um levante, precisa conter aquilo que diz representar. Quanto mais reivindica a herança da rebelião, mais se vê obrigado a impedir que ela retorne.

A derrota do ciclo iniciado em 2019 não se deu apenas pela força policial. Ela ocorreu quando a crise passou a ser representada. No momento em que a esquerda assumiu a tarefa de falar em nome do conflito, o conflito perdeu autonomia. A governabilidade substituiu o risco. A mediação substituiu a ruptura.

Nesse sentido, a esquerda não foi simplesmente superada pela direita. Ela organizou as condições para sua volta. Ao encerrar o levante sem transformar as estruturas que o produziram, deixou aberto o caminho para forças que prometem ordem sem mediações, disciplina sem linguagem progressista.

A experiência chilena deixa uma lição desconfortável. O progressismo não é uma etapa intermediária rumo à ruptura. Ele é, muitas vezes, o mecanismo que impede que a ruptura avance. Governar uma crise estrutural sem enfrentá-la é estabilizá-la em favor da ordem existente.

Outras Palavras é feito por muitas mãos. Se você valoriza nossa produção, contribua com um PIX para [email protected] e fortaleça o jornalismo crítico.

Leia Também:

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *