Chile e Equador vão às urnas com medo
Dois países sul-americanos votam no domingo acossados por estratégias da ultradireita, que exploram percepções distorcidas de insegurança. Ações reabrem portas para agendas autoritárias. Os dois casos iluminam riscos que já se insinuam no Brasil de 2026
Publicado 14/11/2025 às 18:27 - Atualizado 14/11/2025 às 18:28

O próximo domingo (16) reserva duas eleições importantes para dois países sul-americanos e que podem ter reflexos no resto do continente. No Chile, as eleições presidenciais contam com um duelo com candidatos da extrema direita e direita, de perfis distintos, testando o gosto do eleitorado em relação a quem deve enfrentar Jeannette Jara, a postulante de esquerda, em um muito provável segundo turno.
Já no Equador, um referendo e uma consulta popular, propostos pelo presidente do país, Daniel Noboa, trazem quatro questões aos eleitores. A primeira, que, na prática, diz respeito também às nações vizinhas e ao equilíbrio geopolítico da região, é sobre seguir ou não com a proibição de se estabelecerem bases militares estrangeiras ou instalações estrangeiras para fins militares, e de ceder bases militares nacionais a forças armadas ou de segurança estrangeiras. As outras se referem ao uso de fundos públicos para partidos políticos, redução no número de integrantes da Assembleia Nacional equatoriana e, na consulta, se a população concorda com a instituição de uma Assembleia Constituinte.
Embora cada uma das eleições tenha suas particularidades, ambas têm algo em comum: o uso da política do medo e da manipulação dos sentimentos populares em relação à questão da violência e da segurança pública por parte da direita. E mostram de que forma o tema, que já está em voga no Brasil, pode ser utilizado como ativo eleitoral em 2026.
O caso chileno
Segundo uma pesquisa do instituto Activa divulgada em abril deste ano, a criminalidade ocupa o topo das principais preocupações dos chilenos, sendo um problema central para 50,8% dos entrevistados. Na sequência, aparecem a imigração, com 32,1%, e o tráfico de drogas, mencionado por 20,7% dos eleitores. A intersecção entre as três questões tem sido bem explorada pelo presidenciável do Partido Republicano, Jose Antonio Kast, o extremista de direita que tenta pela terceira vez chegar ao Palácio La Moneda.
Neste processo eleitoral, as temáticas habituais de suas campanhas anteriores, como sua rejeição ao aborto e ao casamento homoafetivo, deram lugar à imigração e sua suposta ligação com a criminalidade. No último debate antes das eleições de domingo, ele se referiu aos 330 mil imigrantes ilegais vivendo hoje no país dizendo: “Vamos convidá-lo a deixar o Chile”. “É muito mais barato pedir-lhes para colaborar para voltar à sua terra natal do que mantê-los aqui”, afirmou, descartando a possibilidade de regularizações em massa em uma gestão sua.
Ele propõe ainda “fechar as fronteiras adequadamente” e, neste sentido, já falou em erguer um muro nas fronteiras, abrir uma vala e mobilizar 3 mil militares para conter a entrada de imigrantes, além de eliminar qualquer “benefício social” aos estrangeiros em situação irregular, com voos charter conduzindo as pessoas expulsas, financiados (sabe-se lá de que forma) pelos próprios imigrantes. Ele também defende a proposta geralmente ineficaz, mas que segue como um mantra de políticos de direita, de penas mais severas e fórmulas baseadas no populismo penal.
A duas semanas da realização do pleito, pouco antes do período em que é proibida a divulgação de pesquisas eleitorais no Chile, Kast ocupava a segunda posição nas sondagens, com índices próximos a 20%, mas já era ameaçado pela ascensão de Johannes Kaiser, do Partido Libertário Nacional, também de extrema-direita, que adota um figurino de pretenso “Milei chileno”. Kaiser ganhou projeção como youtuber, após criar o canal El Nacional Libertario, e prometeu “expelir todos os estrangeiros ilegais” e “recuperar a estrutura valiosa do país” no encontro televisivo que encerrou a participação dos presidenciáveis no primeiro turno.
Assim como Donald Trump, Jair Bolsonaro e similares, construiu um discurso contra o multilateralismo e prometeu retirar o Chile de múltiplas organizações internacionais como a Corte Interamericana de Direitos Humanos, dizendo ainda que apoiaria um novo golpe de Estado se as mesmas circunstâncias de 1973 ocorressem. Também se mostrou favorável à construção de um campo de refugiados para pessoas que permanecessem retidas antes do retorno a seus países de origem, sugerindo um acordo semelhante ao mantido pelos Estados Unidos com El Salvador para deportar estrangeiros alegadamente ligados ao crime organizado a prisões estrangeiras.
Manipulação do medo
Diferentemente de outros países próximos, o Chile está longe de ter números de criminalidade que pudessem justificar algum tipo de pânico social. Os registros oficiais do governo mostram uma queda na taxa de homicídios pelo terceiro ano consecutivo, com uma redução de 13,8% no primeiro semestre de 2025 em comparação com o mesmo período de 2024. A taxa de homicídios triplicou na última década no Chile, passando de 2,5 para 6,7 por 100.000 habitantes, mas o país continua sendo um dos mais seguros da América Latina, com um índice quase três vezes menor que o Brasil.
Uma reportagem da BBC ressalta que um levantamento da Ipsos de outubro aponta que 63% dos chilenos citam o crime e a violência como as questões com as quais estão mais preocupados, um nível maior de preocupação do que no México (59%) ou na Colômbia (45%), conforme o mesmo estudo, ainda que as taxas de homicídios nesses países sejam mais de quatro vezes maiores que as do país andino.
“Alguns candidatos abusam daquela percepção distorcida de insegurança e a ampliam, pois é uma questão que gera fortes emoções de ameaça, medo, angústia e raiva, que mobilizam votos a favor do candidato que se oferece para eliminá-los. Se um candidato está nessa questão, os outros se sentem compelidos a segui-lo. E continuamos a aumentar o problema”, avalia o advogado e consultor Alejandro Reyes Vergara, em artigo.
Embora não negue o aumento e a mudança no perfil da criminalidade nas últimas décadas, Vergara aponta outro fator que pode piorar a percepção das pessoas em relação ao problema, a mídia. “O Conselho Nacional de Televisão apresentou em maio os resultados do ‘Monitor de la TV: Temas y Voces en Noticieros y Matinales (2024)’, que mede a distribuição de tempo na TV aberta. Nas manhãs, 40% do tempo é gasto em notícias da polícia, e mais de 20% é gasto em crimes sexuais. Por outro lado, no noticiário, o maior tempo de tela ainda é policial/judicial, com 30% com preferência em crimes sexuais. Como não ficarmos aterrorizados, presos e acuados? Quem é responsável por isso que nos causa insegurança, desconforto, tensão e má qualidade de vida a todos os chilenos?”, questiona.
Equador ao lado dos EUA
No Equador, diferentemente do Chile, o quadro de agravamento da violência é real e de uma dimensão muito maior. Em artigo publicado no Outras Palavras, em 2024, já retratávamos como, àquela altura, o presidente Daniel Noboa era saudado por extremistas de direita brasileiros nas redes sociais por ter decretado estado de exceção e de conflito armado interno, autorizando militares do país a agirem como se estivessem em situação de guerra.
Aquilo consistia em uma licença explícita para que fossem desrespeitados os padrões da polícia diante de um contexto de violência resultante de múltiplos fatores: ausência do Estado em setores essenciais, adoção de modelos punitivistas/proibicionistas ultrapassados e facções criminosas aumentando seu poder e estabelecendo fortes conexões políticas dentro do aparelho estatal do país.
De lá pra cá, Noboa avançou em seu ímpeto autoritário, foi barrado pelo Judiciário em diversas de suas iniciativas, em especial na área de segurança pública, por afrontar a Constituição do país. Como outras figuras políticas de extrema direita, investiu retoricamente contra a Justiça, mas não ficou apenas no discurso, avançando para a proposição de mudança de um ponto central da Carta Magna e indo além, colocando em pauta que um novo texto seja feito.
O jornalista Lee Brown, que viveu anos no país, lembra, no Morning Star, que o Equador já havia sediado uma base militar estadunidense até 2009, quando o acordo foi descartado sob o governo de Rafael Correa. À época, o mandatário equatoriano ironizou a situação, afirmando que os EUA poderiam manter sua base se “nos deixassem colocar uma base em Miami”. “Mas os tempos mudaram no Equador. Na semana passada, antes do referendo, a secretária de Segurança Interna dos EUA, Kristi Noem, fez uma viagem de alto nível para visitar suas instalações militares – uma visita que levou mais do que um cheiro de autoridades coloniais inspecionando seus territórios”, diz Brown.
Em um cenário no qual Trump estimula a ideia de combate a “narcoterroristas” na Venezuela, Colômbia e México, o Equador poderá servir em breve como um centro fundamental para operações militares em toda a região. “O objetivo mais amplo dessa estratégia dos EUA é claro: reverter a crescente independência da América Latina e seu movimento em direção à cooperação multipolar. Na última década, a região fortaleceu os laços dentro do continente e com o Sul global – particularmente a China e as nações dos Brics – desafiando o domínio tradicional de Washington”, pontua o jornalista.
O que acontece no Chile e no Equador mostra como a direita pode se aproveitar politicamente de situações de insegurança, de formas distintas e com objetivos muitas vezes alinhados a elite locais, mas não somente a eles. E figuras políticas brasileiras já deram mostras do que podem fazer em atitudes parecidas, invocando a intervenção dos Estados Unidos em assuntos nacionais, e também agindo ainda de forma mais sutil, como nas alterações legislativas que podem favorecer setores como a indústria de armas, por exemplo. Possuem expertise nesse tipo de manipulação.
Carregando uma forte carga emocional, a discussão sobre segurança pública, aliada à descrença nas instituições e em um sentimento antipolítica que permanece forte para boa parte da sociedade brasileira, forma um caldo propício para o surgimento de propostas que atentam contra a dignidade humana e candidaturas que reforcem uma realidade estrutural de violência por parte do Estado contra segmentos já excluídos. O campo progressista não pode dar as costas para o tema da violência, tampouco ser engalfinhado no debate adotando um tom apenas moderado defendendo ou uma receita atenuada do que a direita faz ou propõe. A disputa em torno do PL Antifacção prova que, mesmo com inúmeras dificuldades, é possível estabelecer essa conversa em outro nível.
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