2026: Tarcísio e a herança do “mito”
Com a iminente prisão de Bolsonaro, jornalões e elites vão desenhando a candidatura de uma “direita civilizada”: o governador de SP. Mas há dúvidas: ele será capaz de disputar o legado bolsonarista com os filhos? E isso poderá ajudar ou atrapalhar sua empreitada?
Publicado 02/09/2025 às 16:29

Para Mircea Eliade, os mitos são histórias sagradas que narram os acontecimentos primordiais e fabulosos da origem de todas as coisas. Eles são considerados verdadeiros na medida em que não somente explicam a origem do que existe, mas também por servirem de modelos para a vida privada, práticas sociais e para os ritos culturais. O ex-presidente Bolsonaro está em transição. Logo, deixará de ser um ator político decisivo, por um período razoável, para se tornar um modelo que tanto sonhou ser – um mito.
De 2 a 12 de setembro, o Brasil se voltará para assistir ao julgamento do alto comando responsável pelo frustrado Golpe de Estado, em 8 de janeiro de 2023. Exatamente, neste período, ocorrerá o dia da Independência do Brasil. Certamente, junto as celebrações da pátria, haverá manifestações políticas, não somente de grupos reconhecidamente de esquerda, mas de todos aqueles que compreendem a relevância da iminente prisão de Bolsonaro e outros réus – três generais, um almirante, um deputado federal e mais dois figurões do seu governo. Apenas o tenente-coronel delator Mauro Cid pode almejar uma pena mais leve. A direita, particularmente a extrema-direita, também irá às ruas em sua uma última tentativa de intimidar o STF, antes que as sentenças sejam pronunciadas pelos ministros desse tribunal.
A Procuradoria-Geral da República (PGR) acusa o ex-presidente de ter cometido os seguintes crimes: organização criminosa armada; tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito; golpe de Estado; dano qualificado pela violência e grave ameaça; e deterioração de patrimônio tombado. As penas poderão ultrapassar a 30 anos de prisão, o que implicaria sete anos de regime fechado.
Na semana que passou, as duas forças antagônicas da política nacional moveram suas peças para se reposicionarem no novo cenário que se anuncia. Eles buscam se colocar da melhor forma no momento de maior fragilização de Bolsonaro, desde que ascendeu à condição de maior dirigente da direita nacional.
O presidente Lula mudou sua marca de governo. Sai “União e Reconstrução” e entra “Do Lado do Povo Brasileiro”. A escolha da nova identidade sinaliza que o governo entendeu que a cisão política do país não será resolvida com a condenação dos golpistas. O próprio presidente Lula reconheceu, na última reunião ministerial, realizada em 25 de agosto, que Bolsonaro é a grande liderança política da direita. O aggionarmento da consigna do governo é necessária por vários motivos. Primeiro, alerta para o permanente compromisso que um governo, situado no espectro político da esquerda, deve possuir com políticas públicas relevantes para os cidadãos do país. Depois, o governo também assinala o seu papel na permanência do contencioso político e comercial com os EUA, que poderá se agravar em breve. Por fim, o esforço de recuperação do estatuto da nacionalidade, que tem sido um dos principais fatores de mobilização da direita. Ainda como estratégia publicitária, o governo federal lançou uma série de livretos que sumarizam, por estado, as suas principais realizações, sob o título “Brasil dando a volta por cima”. Nela, é utilizada uma narrativa abrangente e pouco hierarquizada dos principais programas do governo federal. Ela insinua uma abordagem programática para a disputa eleitoral que se avizinha.
A direita também foi adiante. O governador Tarcísio de Freitas também se moveu e, atrás dele, moveram-se os grandes jornais. Ao se apresentar como candidato à presidência, prestou honras ao seu mais desejado cabo eleitoral. Embora os jornalões se apressem em afirmar que a toxicidade de Bolsonaro recomendaria distância do ex-presidente, o governador Tarcísio preferiu agitar, em Barretos, o boneco do ex-presidente, e, em São Bernardo, jurar-lhe anistia imediata, caso venha a ser eleito em 2026.
Trata-se de uma promessa curiosa. Afinal, se anistiado viesse a ser por um presidente eleito de direita, Bolsonaro poderia ser candidato em 2030, retirando de Tarcísio de Freitas (ou outra variante) a possibilidade de obter um segundo mandato na presidência. Só os mais íntimos saberão o quanto há de exigência ou de improviso na declaração do governador de São Paulo. Não deixa de surpreender que as juras ao Capitão não fizeram com que o governador Tarcísio deixasse de ser saudado pelos jornalões como a alternativa de centro-direita, sob a incessante narrativa de que o Brasil precisa se livrar da exaustiva polarização política. As editorias dos grandes jornais estão sempre dispostas a vender um produto inexistente: uma terceira via que expresse um direitismo civilizado.
O governador de São Paulo sabe que Bolsonaro é ainda o grande detentor dos votos da direita. Portanto, mesmo quando encarcerado, ainda será o mais relevante fiador político para essa parcela do eleitorado. Tão relevante quanto o candidato da direita, deverá ser o porta-voz do ex-presidente na disputa de 2026. É pouco provável que nessa função venha estar alguém que não seja um dos integrantes da sua família.
A proximidade de Tarcísio de Freitas com o mercado financeiro lhe deixará menos à vontade de fazer um discurso antielite, como fez de forma eficaz o seu padrinho político. Contudo, seu maior desafio será conter a concorrência no seu campo político, sobretudo com os herdeiros de sangue do ex-presidente.
Neste jogo político que se reconfigura, os desafios para a direita parecem estar maiores do que os que serão travados pela esquerda. Afinal, desde que a reeleição foi restituída por e para favorecer o então presidente Fernando Henrique Cardoso, quatro pleitos ocorreram neste contexto. Somente em uma ocasião, o incumbente não saiu vitorioso – justamente Jair Bolsonaro. Ele havia realizado um governo ruinoso, enfrentado de forma irresponsável e inepta uma pandemia, e concorria contra a mais relevante figura política contemporânea do Brasil. Mesmo assim, perdeu por um triz.
Na origem e na essência, Tarcísio de Freitas é feito da uma matéria muito parecida com a do mito que cultiva. E por isso mesmo, resta saber se terá coragem de enfrentar a disputa de 2026 como o candidato à presidente pela direita ou por parte dela. Ainda é cedo para saber o quanto terá sobrado do mito Bolsonaro para lhe ajudar ou atrapalhar a sua empreitada.
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